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Furto qualificado: interpretação e crítica

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01/05/2009 às 00:00
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4.Chave falsa

Examinemos o inciso III:

Furto qualificado

§ 4º - A pena é de reclusão de 2 (dois) a 8 (oito) anos, e multa, se o crime é cometido:

(...)

III - com emprego de chave falsa;

A consulta aos dicionários nos permite confirmar os vários sentidos da palavra "chave", a demandar a eliminação da ambiguidade com a imediata percepção de que se trata, num primeiro momento, de "artefato de metal que movimenta a lingueta das fechaduras". E chave falsa, em consequência, seria "a que abre uma fechadura que não seja a dela" [16].

Júlio Fabbrini Mirabete nos ensina que no conceito de chave falsa "se inclui não só a imitação da verdadeira, como também todo instrumento de que se utiliza o agente para fazer funcionar o mecanismo de uma fechadura ou dispositivo análogo (gazuas, grampos, tesoura, arames etc.), possibilitando ou facilitando, assim, a execução do crime (RT 479/352; JTACrSP 67/244; RJDTACRIM 6/95)" [17].

Oportuna, pois, a transcrição de ementa do STJ, que ratifica o ponto de vista externado:

Conforme entendimento há muito consolidado nesta Corte Superior, o conceito de chave falsa abrange todo instrumento, com ou sem forma de chave, utilizado como dispositivo para abrir fechadura, incluindo mixas, tal como se dá na espécie (STJ. Quinta Turma. HC 101495 / MG. Relator: Min. Napoleão Nunes Maia Filho. Data do julgamento: 19/06/2008).

Por outro lado, deve a chave falsa ser utilizada em mecanismo (fechadura) que funcione como obstáculo à subtração da coisa. No caso de automóveis não vale a conduta diretamente voltada para a ignição do motor:

Furto qualificado pelo emprego de chave falsa, utilizada unicamente para acionar o motor do veículo. Desclassificação para furto simples que se impõe. "A utilização de chave falsa diretamente na ignição do veículo para fazer acionar o motor não configura a qualificadora do emprego de chave falsa (CP, art. 155, § 4º, III). A qualificadora só se verifica quando a chave falsa é utilizada externamente à res furtiva, vencendo o agente o obstáculo propositadamente colocado para protegê-la" (STJ – 5ª Turma, RESP 43.047-SP, rel. Min. Edson Vidigal, DJU 15.09.1997). (TJSC. Segunda Câmara Criminal. Apelação Criminal n. 2007.017032-2, de Balneário Camboriú. Relator: Des. Sérgio Paladino. Data da decisão: 19/06/2007).

Com relação à chave original, verdadeira, não vemos como possa equiparar-se à chave falsa. Se ela foi encontrada, por descuido da vítima, na porta de entrada, subsiste o furto simples. Se foi obtida, porém, por meio fraudulento, justifica-se o reconhecimento de outra qualificadora (fraude).


5. Concurso de pessoas

Furto qualificado

§ 4º - A pena é de reclusão de 2 (dois) a 8 (oito) anos, e multa, se o crime é cometido:

(...)

IV - mediante concurso de duas ou mais pessoas.

O concurso de agentes, proclama Luiz Regis Prado, "reflete-se com inegável clarividência na magnitude do injusto, já que a ação delituosa praticada em tal circunstância reveste-se de maior êxito não só pela divisão de tarefas entre os rapinadores, como também pelo mútuo incentivo à concreção do delito" [18].

O comentário é pertinente e valeria, em tese, para qualquer outro delito patrimonial, mas já vimos que o legislador reserva o "privilégio" para os autores de furtos (e roubos). Receptadores, por exemplo, embora sempre contem com a eficiência de outros delinquentes (assaltantes, traficantes, latrocidas etc.), são agraciados pelo legislador com a pena de reclusão de 1 a 4 anos, e multa. É certo que a lei endureceu a situação dos receptadores profissionais (CP, art. 180, § 2º). Nada obstante, através de censura à técnica legislativa ("deve saber"), já se tentou e ainda hoje se tenta neutralizar o comando normativo, em detrimento do interesse social inerente à reforma implantada.

De qualquer modo, inexiste forma qualificada no concurso de pessoas em crimes como os de estelionato e apropriação indébita. Afora o roubo, reservou-se o agravamento da resposta penal ao delito de furto, que já se encontra cercado de uma série de circunstâncias impeditivas do reconhecimento de sua forma simples.

Fazemos estas observações para salientar, mais uma vez, a importância do intérprete no processo histórico de construção do direito penal. Todo intérprete parte de si mesmo, de sua formação cultural, de seus valores, de suas idiossincrasias. Assim, Nélson Hungria teve o cuidado de apregoar a necessidade da "presença in loco dos concorrentes, ou seja, a cooperação deles na fase executiva do crime", a par de uma "consciente combinação de vontades na ação conjunta" [19].

Somente nesse caso é que se pode cogitar da "magnitude do injusto" mencionada por Luiz Regis Prado. Como esclarece Luiz Flávio Gomes, "a tipicidade não se esgota na adequação literal ou gramatical da conduta, sendo mister, sempre, o plus da afetação concreta do bem jurídico" [20].

Esse "plus" inexiste, em termos de tipo qualificado, na simples constatação de que alguém, induzido ou instigado por outrem, age isoladamente do início ao fim da execução, afastando em consequência a chance de "maior êxito" na realização do furto.

Cumpra-se a lei: nesse caso, e outros semelhantes, o crime foi cometido (CP, art. 155, § 4º) por apenas uma e não por duas ou mais pessoas.

Portanto, até mesmo a letra se harmoniza com o espírito da norma. Disso se aperceberam, entre outros, Weber Martins Batista [21]; José Henrique Pierangeli [22]; Celso Delmanto [23]; Cezar Roberto Bitencourt [24]; Maria Thereza Rocha de Assis Moura e Marta Saad [25]; Rogério Greco [26].

Na correta observação de Cezar Roberto Bitencourt, "o próprio Supremo Tribunal Federal já reconheceu a necessidade da participação efetiva dos agentes na execução do crime. Argumentou, então, com muita propriedade, o relator, Min. Djaci Falcão, que ‘se o legislador visa, no caso, a punir mais gravemente a soma de esforços para a prática do crime, circunstância a que se agrega a da redução da capacidade de defesa da vítima, razão, a nosso ver, dessa agravação, parece-nos evidente que o preceito deva ser interpretado, teleologicamente, como endereçado à hipótese de cooperação de agentes na fase de execução do crime, única hipótese em que aquelas duas circunstâncias se fazem realmente presentes’. Mais não precisaria ser dito" [27].

Veja-se esta ementa do Superior Tribunal de Justiça:

A qualificadora do concurso de pessoas tem lugar em face da maior ameaça ao bem juridico tutelado. No caso de furto onde apenas um dos agentes subtrai a coisa, cabendo ao outro ocultá-la, não se configura a qualificadora do concurso de pessoas. Seria necessário que ocorresse a cooperação de ambos na subtração da coisa para que fosse aplicada a qualificadora (STJ. REsp 90451 / MG. Relator: Ministro Anselmo Santiago. Data do julgamento: 10/06/1997).

Mas há divergências, na doutrina e na jurisprudência.

Por outro lado, sedimentou-se no STJ o entendimento de que não cabe aplicar ao furto qualificado pelo concurso de agentes o aumento de pena preconizado no roubo (1/3 a 1/2, a incidir sobre os limites do furto simples). Não haveria lacuna na lei nem ofensa aos princípios da isonomia ou proporcionalidade:

Recurso especial. Furto qualificado pelo concurso de agentes. Aplicação analógica da majorante do roubo, prevista no art. 157, § 2º, II, do Código Penal. Impossibilidade. Não deve ser aplicada, analogicamente, a majorante do crime de roubo prevista no art. 157, § 2º, inciso II, do Código Penal, ao furto qualificado pelo concurso de pessoas, já que inexiste lacuna na lei ou ofensa aos princípios da isonomia e da proporcionalidade (STJ. Quinta Turma. REsp 1052564 / RS. Relator: Min. Jorge Mussi. Data do julgamento: 28/08/2008).

Havendo regra específica a ser aplicada nos crimes de furto qualificado pelo concurso de pessoas (artigo 155, § 4º, IV, do CP), é inaceitável sua substituição pela do artigo 157, § 2º, do mesmo diploma, sob a alegação de ofensa ao princípio da proporcionalidade (STJ. Sexta Turma. AgRg no REsp 983291 / RS. Relator: Min. Paulo Gallotti. Data do julgamento: 27/05/2008).

O tema também é pacífico em ambas as turmas do Supremo Tribunal Federal. Foram, pois, mantidas e preservadas as regras do sistema legal e constitucional [28].


6. Furto qualificado especial

§ 5º - A pena é de reclusão de 3 (três) a 8 (oito) anos, se a subtração for de veículo automotor que venha a ser transportado para outro Estado ou para o exterior (Incluído pela Lei nº 9.426, de 24 de dezembro de 1996).

Introduziu-se no Código Penal uma figura de furto qualificado ainda mais grave do que as anteriores. A pena mínima passou de dois para três anos de reclusão. Por um lapso, todavia, omitiu-se a pena cumulativa de multa.

Trata-se de furto de veículo automotor (automóvel, caminhão, lancha, motocicleta etc. ) que venha a ser transportado para outro Estado ou para o exterior. Inexiste propriamente uma nova consumação, mas um adendo típico que determina e consolida, de modo específico, a metamorfose do crime cometido. Enquanto o bem subtraído não ultrapassa o limite territorial subsiste apenas o delito-base efetivamente praticado, mesmo que o flagrante se dê a poucos metros de distância do marco divisório.

Só se admite a tentativa da forma qualificada se a execução do furto se confunde com a travessia da fronteira e o crime não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente.

Conforme José Henrique Pierangeli, "pelo menos quatro razões levaram à providência legislativa: a) o crescimento alarmante do furto e do roubo de veículos a motor, inclusive veículos de carga, que normalmente são levados para lugar distante; b) um elevado prejuízo para a vítima, que quase sempre ocorre; c) as dificuldades para a recuperação da res furtiva, e para a determinação da autoria, e a consequente impunidade do agente; d) o crime organizado, que se faz presente na maioria das ações que são objeto da qualificadora" [29].

A informação é procedente. Em contrapartida, cabe a observação crítica de Alberto Silva Franco: "De novo, no balanceamento entre os bens jurídicos em jogo – vida e integridade física, de um lado, e patrimônio, de outro – deu-se especial ênfase ao patrimônio. O crescimento assustador dos acidentes provocados pelo veículo automotor e o número cada vez maior de pessoas atingidas pelo emprego desse indispensável meio de locomoção não foram suficientes para sensibilizar os reformadores do Código Penal" [30].

Vejamos duas hipóteses corriqueiras, colhidas da jurisprudência:

Crime contra o patrimônio. Furto qualificado. Automóvel transportado para outro Estado (art. 155, § 5º, do CP). Ocorrência e autoria do delito claramente estampadas no processado, mormente diante da confissão do acusado e dos depoimentos dos policiais que efetivaram a prisão em flagrante (TJSC. Segunda Câmara Criminal. Apelação Criminal n. 2006.006480-6, de Sombrio. Relator: Juiz Túlio Pinheiro. Data da decisão: 25/04/2006).

Crimes contra o patrimônio. Art. 155, § 5º, do Código Penal. Furto qualificado. Veículo transportado para o exterior. Autoria e materialidade demonstradas. Depoimento preciso das testemunhas indicando o apelante como autor do delito. Absolvição impossível. Sentença mantida. Recurso desprovido (TJSC. Primeira Câmara Criminal. Apelação Criminal n. 2005.026552-2, de Itapiranga. Relator: Des. Solon d''Eça Neves. Data da decisão: 18/10/2005).

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Qual a estrutura jurídica do tipo? Na grande maioria das vezes o agente, antes de cometer o furto, imagina e planeja a etapa complementar preconizada em lei. Entretanto, verifica-se que o texto do § 5 º não exige necessariamente a presença antecipada desse objetivo de transporte do bem para o exterior ou para outra unidade da Federação – em que se inclui, por óbvio, o Distrito Federal. Basta que, na sequência, o próprio autor do furto, por si ou por terceiros, se encarregue da transposição dos limites territoriais, configurando-se então o delito em sua forma qualificada especial.

Todos os que concorrem para o fato, sabendo da futura movimentação do veículo, incidem na figura delituosa em análise. Mas é preciso distinguir. Aquele que, ciente do furto de que não participou, se encarrega do aludido transporte, responde pelo crime de receptação dolosa, simples ou qualificada. Por motivos análogos, inexiste a forma qualificada do § 5º em relação ao executor da subtração de um automóvel se quem o adquiriu vier a circular com o veículo em outro Estado ou no exterior (CP, art. 13, § 1º). O provável delito deste último se esgota no ato de aquisição do veículo automotor.


7.Observações finais

As contradições teórico-dogmáticas constituem a marca registrada de todo e qualquer jurista, sem uma única exceção, porque o direito se constrói aleatoriamente, em função dos gostos e preferências ocasionais de um intérprete condenado à mudança e à liberdade de escolha. Imagine-se o que se passa quando as variáveis interpretativas, que se contam às centenas, se somam aos diferentes temperamentos e ideologias personalizadas de cada operador jurídico, encarregado de decifrar o indecifrável.

Assim, a exegese do furto simples ou qualificado, com suas divergências doutrinárias e jurisprudenciais, não haveria mesmo de escapar desse impasse que acaba caracterizando o direito e o próprio direito penal.

Além disso, nota-se um descompasso normativo entre as penas cominadas aos delitos contra o patrimônio praticados sem violência ou grave ameaça à pessoa (por exemplo: furto, estelionato e apropriação indébita). Relembrando: a qualificadora do concurso de pessoas (dois ou mais agentes) só vale para o furto; a subtração com fraude é reputada mais grave do que o estelionato propriamente dito; o abuso de confiança só complica a situação jurídica de quem subtrai; a detenção vigiada remete o fato ao art. 155 e parágrafos, impedindo o reconhecimento da apropriação indébita, em detrimento do "nullum crimen, nulla poena sine lege". E assim por diante.

Os crimes de furto, apropriação indébita e estelionato, que lembram indevida cobiça patrimonial, deveriam estar nivelados normativamente em termos de cominação de pena. Todos eles retratam obtenção de vantagem ilícita em prejuízo alheio. A ênfase no detalhe (apropriação, subtração ou fraude, para efeito de eventual diminuição ou endurecimento da pena) atende a ultrapassados preconceitos e não se coaduna com a regra maior, de índole constitucional, de tratamento igualitário e resposta punitiva proporcional à natureza do fato praticado.

Em suma, o problema poderia ser amenizado se desaparecessem do sistema as arbitrárias distinções em relação a certos crimes que guardam consigo, em essência, o mesmo desvalor da conduta e resultado.

Trata-se de uma questão de justiça e bom senso, por força da similitude de comportamentos no campo da reprovação ético-social. Teríamos, em consequência, maior chance de tratamento isonômico por parte do poder judicante, até hoje seriamente dividido em suas decisões e, pois, objetivamente injusto no processo hermenêutico de identificação da estrutura jurídica desses delitos em suas formas simples e qualificadas.

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Sobre o autor
João José Caldeira Bastos

professor de Direito Penal da Escola Superior da Magistratura do Estado de Santa Catarina, professor de Direito Penal (aposentado) da Universidade Federal de Santa Catarina

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BASTOS, João José Caldeira. Furto qualificado: interpretação e crítica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2130, 1 mai. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12743. Acesso em: 24 abr. 2024.

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