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Alta programada: afronta ao princípio da dignidade da pessoa humana

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22/05/2009 às 00:00

Resumo:


  • O programa de alta programada do INSS, baseado no Decreto nº. 5.844/06, prefixa a data de alta médica sem considerar a real condição do segurado.

  • Esse mecanismo gera controvérsias, levando sindicatos e trabalhadores a contestarem judicialmente sua legalidade e afronta aos princípios constitucionais, como a dignidade da pessoa humana.

  • A alta programada resulta em retornos precoces ao trabalho, prejudicando a recuperação dos segurados, gerando impactos econômicos e sociais negativos, e desrespeitando direitos fundamentais e a legislação vigente.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Resumo

O presente estudo tem por escopo analisar, sob prisma sócio-jurídico, o mecanismo implantado pelo Instituto Nacional do Seguro Social – INSS - denominado COPES (Cobertura Previdenciária Estimada), e popularmente conhecido como programa data certa ou alta programada, com base legal dada pelo artigo 1º, do Decreto nº. 5.844, de 13 de julho de 2.006, consistente na prefixação de data de alta médica pelo perito da autarquia previdenciária, independentemente de submeter o segurado a novo exame médico.


I) Definição e sistemática da alta programada

A alta programada está prevista no artigo 1º, do Decreto nº. 5.844, de 13 de julho de 2.006, que alterou o artigo 78, do Decreto nº. 3.048/99.

Tal procedimento já era adotado administrativamente independente de qualquer normativa legal específica, apenas por força da Orientação Interna Conjunta nº 01 Dirben/PFE, de 13 de setembro de 2.005, considerada pseudo-norma jurídica, porquanto o qualificativo "interna" significa que se trata de algo secreto, só acessível ao pessoal integrante dos quadros administrativos do Instituto Nacional do Seguro Social. [01] Decorre do programa conhecido como COPES (Cobertura Previdenciária Estimada), atualmente denominado DCB (Data de Cessação do Benefício) e popularmente conhecido como data certa ou alta programada.

Por este mecanismo e de conformidade com o que preceitua o Decreto nº. 5.844/06, já na perícia inicial em que confirmado o diagnóstico de doença incapacitante do exercício de atividade laboral e concedido o benefício de auxílio-doença comum ou acidentário, o medico perito, mediante avaliação, estipula, com fulcro em sua expertise o prazo que entender suficiente para a recuperação da capacidade para o trabalho do segurado, ao término do qual será suspenso automaticamente o pagamento do benefício, dispensada nessa hipótese a realização de nova perícia.

Na prática, a alta programada dá-se da seguinte forma: o trabalhador passa por uma perícia na qual o médico confronta o código da enfermidade ou lesão diagnosticada com o tempo estimado de permanência em gozo do benefício apresentado pelo programa de computador utilizado pela autarquia e que se baseia em estudos estatísticos de diagnóstico, tratamento e tempo de recuperação de milhares de benefícios concedidos, sendo lançado no sistema informatizado do INSS a data de alta do segurado e o conseqüente encerramento do benefício.

Alcançada a data prevista, o sistema acusa a "capacidade" do beneficiário para retornar à sua atividade laborativa, independentemente de avaliação das condições subjetivas do infortunado.

Difere, assim, do tradicional procedimento em que se designam retornos periódicos até que o benefício seja cessado em razão das circunstâncias legais.

A justificativa da autarquia para a adoção da alta programada é que este mecanismo aprimora o sistema previdenciário ao disciplinar a concessão do benefício temporário em todos os postos de atendimento do INSS, tornando mais rígidos e seguros os processos de concessão de auxílio-doença, suprimindo fraudes na obtenção de benefícios e racionalizando as perícias, de modo que o segurado não se submete a elas desnecessariamente.

No que tange ao tempo de afastamento estimado, a alegação é no sentido de que este é flexível à extensão e gravidade da doença ou lesão, conforme dados estatísticos da autarquia, de modo que coexistem prazos mais exíguos ou mais dilatados para recuperação e tratamento.

A utilização do programa traria, também, a vantagem de evitar que a concessão do benefício fique a critério do perito, além de possibilitar que a Previdência Social faça uma auditoria nos afastamentos.

Pelo Decreto nº. 5.844/06, que disciplina a alta programada, caso o prazo concedido para a recuperação se revele insuficiente, o segurado poderá solicitar a realização de nova perícia médica, na forma estabelecida pelo Ministério da Previdência Social.

A princípio, por conta da mobilização dos trabalhadores, sindicatos e centrais sindicais, que pressionaram o Ministério da Previdência num esforço para evitar mais prejuízos àqueles que necessitam do auxílio-doença, inclusive através do ajuizamento de ações judiciais, restou pactuada a possibilidade de prorrogação da alta programada.

Assim, o prazo máximo de licença para a maioria dos casos passou a ser de um ano, e dependente somente da avaliação do médico perito. Antes, o prazo máximo era de 180 dias. Para a generalidade dos casos e de dois anos para os casos mais graves.

Transcorrido o prazo, se o segurado continuar incapacitado, tem que requerer o Pedido de Prorrogação (PP) ou o Pedido de Reconsideração (PR), que gera uma nova perícia médica.

O PP pode ser feito indefinidamente até 15 dias antes do fim de cada período da licença. Caso o PP seja negado, o assegurado poderá entrar com o PR, inclusive solicitando exame com outro médico perito. Em caso de recusa, resta-lhe ainda recurso à Junta de Recursos da Previdência Social (JRPS).

Apesar de ter avançado em relação à regra anterior, o INSS não resolveu o problema de pagamento do benefício entre o fim da alta programada e a nova perícia.

Em que pese possa o beneficiário protocolar o PP e/ou PR, fato é que o agendamento, de forma geral, não é feito dentro desse prazo, e nos casos em que a cessação do benefício é mantida pelo perito do INSS, nem o órgão segurador nem o empregador assumem o pagamento, sendo o ônus repassado ao trabalhador.


II) Tratamento pelos Tribunais

Longa batalha judicial se seguiu para suspensão da alta programada.

Neste contexto, o Sindicato dos Bancários da Bahia propôs, em 27 de setembro de 2005, a primeira ação judicial contra o COPES em todo o Brasil, consistente na Ação Civil Pública nº 2005.33.00.020219-8, que tramita na 14ª Vara Federal da Seção Judiciária da Bahia, tendo a Justiça Federal, em 21 de dezembro de 2005, concedido liminar determinando a manutenção do auxílio-doença até o julgamento do PP e PR, o que, de fato, suspendia os efeitos do programa previdenciário.

Tendo sido ajuizadas mais de uma dezena de ações coletivas em todo o país, em 13 de julho de 2.006, o INSS suscitou o denominado Conflito de Competência (CC nº 64732/BA), e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) ordenou o sobrestamento dos referidos processos, inclusive com a suspensão das liminares deferidas.

Também designou, para resolver a questão, em caráter provisório, a 14ª Vara Federal da Bahia que reconheceu a legalidade do COPES (Cobertura Previdenciária Estimada), se baseando no Decreto 5.844/2006.

Diante disso, o Sindicato da Bahia interpôs o recurso de Agravo de Instrumento nº 2007.01.00.006913-9/BA, distribuído à Segunda Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, tendo a Relatora, Desembargadora Federal Neuza Alves, deferido a liminar na data de 26 de abril de 2007. [02]

Esta decisão determinou que a suspensão do benefício de auxílio-doença somente se desse após a realização de perícia médica pelo INSS atestando a cessação da incapacidade do segurado para o trabalho, estando a autarquia impedida provisoriamente de sustar o auxílio-doença antes de ser apreciado o PP e/ou PR, que culmina por designar nova perícia, preenchendo a lacuna que possibilitava ao trabalhador ficar sem receber tanto da Previdência Social quanto do empregador.

No entanto, na data 29 de maio de 2007, a juíza recuou e decidiu suspender a liminar até que o mérito seja julgado pelo STJ (Superior Tribunal de Justiça).


III) Implicações sociais

Inegável passe a Previdência Social por uma situação de crise, atribuída a fatores administrativos (sonegação, fraudes na concessão de benefícios e má aplicação dos recursos arrecadados); conjunturais (aumento da economia informal, desemprego, comportamento dos salários, dentre outros); e estruturais (envelhecimento populacional em razão do aumento da expectativa de vida, queda da taxa de natalidade etc.). [03]

Por sua importância econômica e social, assegurar a sustentabilidade, viabilidade e aperfeiçoamento do sistema previdenciário através de alterações e reformas, trata-se de necessidade emergencial, como forma de evitar o colapso da rede protetiva. Contudo, tais medidas que visam reverter o perverso horizonte de incertezas não podem ser adotadas em detrimento do direito dos beneficiários, tal como vêm ocorrendo na prática.

É neste contexto que se inserem os entraves opostos aos trabalhadores pela Previdência Social para deferimento do pedido de benefício, em especial para as prestações previdenciárias que demandem perícia médica, cuja constatação do evento determinante seja aferível com base na expertise do profissional, de contornos subjetivos, tal como se dá no caso do auxílio-doença.

Os fundamentos do órgão previdenciário para implantação do programa não convencem. A alta programada, que em nada corresponde com a evolução do quadro clínico do paciente, ocorre tão somente por conta do transcurso do prazo que o médico perito entendeu suficiente para a recuperação da capacidade de trabalho do beneficiário, ou seja, por mero rigor burocrático.

É inequívoco que muitas enfermidades, notadamente as de menor complexidade, podem ter seu prazo de tratamento e recuperação previsto pelo profissional competente, porém, cada caso é um caso, sendo imprescindível a análise da situação concreta.

Premente, por conseguinte, a necessidade de o beneficiário passar pela perícia antes de retornar ao exercício de sua atividade laboral, mesmo porque apenas o exame médico pode, de fato, constatar a aptidão do trabalhador, não podendo o diagnóstico que aponta doença comum, de menor gravidade, servir como fundamento para a alta, já que o quadro clínico pode não ter evoluído da forma esperada.

Ademais, é necessário levar em conta que o profissional médico que atende o segurado quando da perícia inicial pode não ser especialista na área da doença que apresenta o segurado, tal como comumente ocorre, tendo aquele, portanto, menores condições ainda de precisar a data da alta.

Sem embargo, também reverbera a gravidade da quaestio, as constantes queixas formuladas pelos segurados de que os médicos peritos não dispensam a atenção devida à análise das patologias, limitando-se a examinar fria e superficialmente o paciente, a ponto de permanecerem mais tempo preenchendo os formulários próprios do INSS do que diagnosticando o caso. E, ainda, a postura não menos freqüente de sequer apreciar os exames feitos por médicos e clínicas particulares, ou de analisá-los, porém não levá-los em consideração, dando parecer contrário à prova dos laudos.

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A finalidade do procedimento administrativo deixou de ser o de habilitar o segurado para percepção do auxílio-doença comum ou acidentário, caso presentes o evento determinante (incapacidade temporária para o seu trabalho ou para a sua atividade habitual por mais de 15 dias consecutivos) e carência (apenas em se tratando de auxílio-doença não-acidentário), e transmutou-se em entrave para a obtenção do benefício, vez que, independentemente da presença da inaptidão, o que se passou a buscar com o processo é, pura e simplesmente, a não-renovação do benefício, ou seja, que o segurado permaneça o menor tempo possível afastado, desonerando os cofres previdenciários, a despeito de retornar ao mercado de trabalho sem suficientes condições para exercer sua atividade laboral.

A suspensão da alta programada é, de fato, medida que se impõe, porquanto seus efeitos são nefastos aos trabalhadores.

Dada a alta médica pelo órgão previdenciário e cessado o pagamento do benefício, o segurado vê-se compelido a retornar ao labor, em função da necessidade de manter sua subsistência e de sua família.

No caso do segurado não ter condições de assumir seu posto de trabalho e a alta programada ter se mostrado realmente indevida, uma vez que a recuperação não tenha se dado no lapso temporal programado, o trabalhador passa a exercer sua atividade de forma ineficiente, o que acarreta, em casos não raros, sua dispensa e a pecha de "incompetente".

Neste sentido, também não se pode afastar a possibilidade do segurado, muitas vezes assintomático, imaginar-se de fato recuperado, retornando ao trabalho e terminando por piorar sua enfermidade.

Isto quando o próprio empregador não recusa o retorno do trabalhador, escorado em laudo do médico assistente que acusa a sua incapacidade para assumir o trabalho e recomenda a continuidade do afastamento, não recebendo o empregado, no caso em tela, nem do INSS, nem do empregador.

Têm sido recorrentes os casos em que o beneficiário afastado durante anos do serviço, e que apenas não teve seu benefício de auxílio-doença convertido em aposentadoria por invalidez em razão da ineficiência administrativa, ser obrigado a retornar ao trabalho por ter recebido alta.

Se o cargo não ficou vago, o trabalhador é sumariamente demitido; se faz jus à estabilidade (em se tratando de acidente do trabalho), ao término do referido período também é dispensado e, enfermo, o trabalhador não consegue novo emprego por sequer passar no exame admissional.

A alta programada promove o retorno dos trabalhadores ao serviço mesmo que ainda não tenham recobrado a capacidade laboral.

Para o trabalhador que mantém seu contrato de trabalho, a situação gera o risco evitável de agravamento de suas enfermidades ou lesões, e o problema que antes poderia ser sanado pelo afastamento do operário pelo tempo razoável para sua recuperação e tratamento, através do benefício auxílio-doença, se converte num quadro mais funesto, vez que pode desencadear para seqüelas com redução da capacidade laboral ou invalidez do trabalhador, demandando o pagamento de benefícios que onerarão de forma significativamente maior os cofres previdenciários (v.g., auxílio-acidente e aposentadoria por invalidez).

À evidência, o problema antes adstrito à seara previdenciária assume agora contornos de comprometimento da saúde pública, isto porque a cessação do benefício em decorrência do transcurso do prazo de recuperação e tratamento estimado sem que o segurado esteja efetivamente apto ao retorno à sua atividade laboral acarreta, invariavelmente, o exercício do trabalho de forma a agravar sua enfermidade ou lesão, piorando seu estado de saúde.

Por corolário, o Estado, que responderia a princípio apenas pela incapacidade laboral do trabalhador (por intermédio da Previdência Social), pagando pelo período de afastamento no intuito de que, uma vez restabelecido pudesse retornar ao serviço, passa a se responsabilizar também, em decorrência de sua omissão, pela saúde do trabalhador (através do Sistema Único de Saúde - SUS), porquanto o exercício da atividade sem que o trabalhador esteja realmente apto, descamba, inevitavelmente, para o agravamento de suas condições de saúde.

Justifica-se, portanto, o propalado inchaço deficitário da Seguridade Social (que abrange saúde, previdência social e assistência social) a partir, dentre outros fatores, da incúria da Previdência Social no seu mister de propiciar os meios indispensáveis à subsistência da pessoa humana, quando inapta ao trabalho, pelo tempo necessário para seu restabelecimento.


IV) Incompatibilidade com a legislação pátria

Ao conceder alta ao filiado ainda incapacitado para o retorno ao trabalho, obrigando-o a reassumir seu labor para manutenção de sua subsistência e de sua família, em face da cessação do pagamento do benefício, a autarquia previdenciária afronta a Constituição Federal, que estabelece em seu artigo 1º os fundamentos que regem a República Federativa do Brasil, merecendo destaque o princípio da dignidade da pessoa humana e os direitos sociais, quais sejam: "a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição", previstos taxativamente no artigo 6º do Texto Magno.

Sinaliza, ainda, em seu artigo 194, que a seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social,com base nos objetivos elencados em seu parágrafo único.

Não bastasse, afronta seu art. 170, caput, porquanto impossível conciliar referido mecanismo com o princípio fundante da ordem econômica, qual seja, a valorização do trabalho. Com efeito, o exercício da atividade pelo trabalhador lesionado ou enfermo ultraja o escopo da norma de assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social.

Patente, também, o descaso com o art. 196, da Carta Magna, que trata do dever do Estado e direito de todo cidadão à saúde, mediante políticas sociais e econômicas que visem a redução do risco de doença e de outros agravos, isto porquanto a permanência do trabalhador incapacitado no meio ambiente do trabalho enseja o natural desgaste físico e psicológico, aviltando a previsão constitucional de promoção, proteção e recuperação da saúde do cidadão e, principalmente, dos objetivos da própria seguridade social.

Cabe ao Estado a criação de uma rede de proteção capaz de atender os anseios e necessidades de todos na área social, mantendo um padrão mínimo de vida, sendo que ao tratar da Seguridade Social na Constituição Federal de 1988, o constituinte claramente adotou o Estado de bem-estar social, [04] cujo sentido encontra-se atrelado à idéia de cooperação, ação concreta do ideal de solidariedade, ao passo que por justiça social entende-se o escopo do desenvolvimento nacional, diretriz axiológica para o intérprete e aplicador das normas protetivas. [05]

Os objetivos da Seguridade Social encontram-se elencados no artigo 194, parágrafo único, da Carta Magna.

Ao estabelecer prognóstico que libera o trabalhador para sua atividade sem que o mesmo esteja devidamente apto, o INSS não cumpre seu dever de propiciar ao segurado os meios indispensáveis de manutenção até sua cabal recuperação para o trabalho, habilitação para o desempenho de atividade outra para a qual tenha condições ou aposentação por invalidez.

Com efeito, a Lei nº. 8.213/91 (Plano de Benefícios da Previdência Social) em seu artigo 1º, preceitua que é dever da Previdência Social, mediante contribuição, assegurar aos seus beneficiários os meios indispensáveis de manutenção, por motivo de incapacidade, desemprego involuntário, idade avançada, tempo de serviço, encargos familiares e prisão ou morte daqueles de quem dependiam economicamente.

Dispõe, ainda, em seu artigo 62, que o segurado em gozo de auxílio-doença, insusceptível de recuperação para sua atividade habitual, deverá submeter-se a processo de reabilitação profissional para o exercício de outra atividade. Não cessará o benefício até que seja dado como habilitado para o desempenho de nova atividade que lhe garanta a subsistência ou, quando considerado não-recuperável, for aposentado por invalidez.


IV) Alta programada e o princípio da dignidade da pessoa humana

Ao visar desonerar os cofres previdenciários ou, quando muito, buscar aprimorar o sistema e racionalizar procedimentos, em detrimento, contudo, dos filiados da Previdência Social, através da imposição de mecanismos que dificultem ou impeçam a obtenção do benefício, o Estado sacrifica o fundamento da dignidade da pessoa humana. Retrocede em importante conquista social, consistente na proteção contra o risco social ao não possibilitar ao trabalhador efetivamente incapacitado para o trabalho condições mínimas de sobrevivência, desrespeitando-o na sua existência (vida, corpo e saúde) e degradando-o na sua condição de pessoa humana.

Os direitos sociais, em que se insere a seguridade social, inicialmente limitados às garantias concernentes à liberdade formal, como os direitos civis e políticos, conquistou importância, inclusive internacional, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e o Pacto de Direitos Sociais (1966), que previram, de modo genérico, a previdência social, em que pese a Organização Internacional do Trabalho (OIT) já manifestasse sua importância em 1919.

Todavia, a proteção social como direito humano apenas se deu com o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, da Organização das Nações Unidas (ONU), ratificado pelo Brasil por meio do Decreto nº. 591, de 06/07/92, aprovado conjuntamente com o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos.

A posteriori, em 25/09/92, o Brasil adotou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos - Pacto de São José da Costa Rica, de 22/11/69, complementada com o Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais – Protocolo de San Salvador, ratificado pelo Brasil em 21/08/96, garantindo os direitos humanos e assegurando o direito à proteção social.

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 consagrou a dignidade da pessoa humana como princípio fundante do Estado Democrático de Direito e um dos pilares estruturais da organização do Estado brasileiro (art. 1º, CF).

Anterior e hierarquicamente superior, a dignidade da pessoa humana é mais que um direito fundamental, sendo a razão de existir do próprio Estado e das leis, a viga-mestra que imanta toda a Constituição, projetando-se sobre todo o ordenamento jurídico.

Os princípios de direito, e notadamente os princípios constitucionais, apresentam as características de coercitividade e de imperatividade, sendo que em âmbito constitucional a coercitividade se expressa num grau ainda mais contundente do que nas outras normas jurídicas, já que as regras e os princípios constitucionais, mais que meras normas jurídicas, são normas de hierarquia superlativa, submetendo todo o conjunto normativo inferior às suas disposições expressas e aos desígnios dos valores consagrados em seu bojo, mesmo que implícitos, abrangendo o ordenamento normativo não apenas enquanto sistema teórico, mas vinculando também todos os seus efeitos práticos.

Immanuel Kant atribuiu a condição de valor ao atributo da dignidade humana ao conceber o homem como ser racional, existente como um fim, e não como um meio. Isto em razão de concebê-lo como dotado de um valor intrínseco, próprio da sua essência, superior a qualquer preço, [06] tornando-o impassível de manipulação, conferindo-lhe uma dignidade absoluta, objeto de respeito e proteção [07].

É premente que seja este o norte a ser tomado pelo legislador quando da elaboração da norma e do gestor ao executá-la, considerando o homem como o centro do universo jurídico, porquanto o Estado existe em função da pessoa humana, que constitui sua finalidade precípua, e não meio da atividade estatal.

Por corolário, cabe-lhe garantir independência e autonomia ao ser humano, afastando qualquer atuação que iniba o seu desenvolvimento como pessoa ou imponha condições desumanas de vida.

Ingo Wolfgang Sarlet estabelece intima ligação entre o ente dignidade e o ente direitos fundamentais, [08] do que decorre que a dignidade da pessoa humana deve servir como limite e função do Estado e da sociedade, na medida em que ambos devem respeitar (função negativa) e promover (função positiva ou prestacional) a dignidade, manifestações essas sentidas pelo respeito e promoção dos direitos constitucionais da pessoa e do cidadão.

Fábio Konder Comparato leciona que a dignidade do ser humano, como fonte e medida de todos os valores, deve estar sempre acima da lei, ou seja, de todo direito positivo [09].

Destarte, forçoso concluir que a dignidade da pessoa humana se constitui no principal valor constitucional, sendo fundamento e fim dos direitos fundamentais, sem o qual se faz impossível a consolidação do Estado Social e Democrático de Direito. [10]

A preocupação da norma deve ser sempre satisfazer ao máximo as necessidades humanas, sendo responsabilidade do Estado, contornar as dificuldades e desequilíbrios sociais, já que no Estado de Direito o indivíduo tem em face deste não apenas direitos privados, mas também direitos públicos.

Imprescindível, portanto, que se reconheça que a idéia de justiça não se determina pela norma, já que é intrínseca no ser humano, que com ela nasce acabando por desenvolvê-la no decorrer da vida, fruto das necessidades e do convívio em sociedade, sendo desejoso de uma existência digna, expressada pela receptividade de seu pensamento e conduta.

Vale lembrar também que, embora o direito não deva distinguir entre dois seres humanos, é imperioso que torne as diferenças mais equânimes, reequilibrando eventual disparidade de forças causada pela vulnerabilidade.

Emblemática a definição de Alexandre de Moraes, para o qual a dignidade da pessoa humana deve ser vista como a harmonização do aspecto histórico (sucessão de conquistas contra o absolutismo, seja pelo Estado ou pelo líder de uma comunidade), normativo (contra a injustiça), filosófico (respeito ao próximo ou a si mesmo, sem necessidade de sanção), direito individual protetivo (em relação ao próprio Estado ou a pessoa individualmente considerada) e como dever fundamental de tratamento igualitário. [11]

Embora haja discordância quanto a ser exclusiva dos direitos sociais, [12] fato é que estes, inclusive a seguridade social, demandam do Poder Público uma obrigação positiva, de atuação concreta, notadamente com a inclusão social do indivíduo, satisfazendo sua necessidade de subsistência em decorrência, e.g., da privação de sua capacidade laboral, garantindo uma existência material mínima, direito público subjetivo da pessoa humana, em contraposição à obrigação estatal de satisfazer a necessidade ou interesse social ou econômico tutelados pelo Direito.

O sempre impecável doutrinador Ingo Wolfgang Sarlet bem explicita a aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana sob o prisma da inclusão social do indivíduo a partir da atuação positiva do Estado, ao expor que

"... uma proteção jurídica da dignidade reside no dever de reconhecimento de determinadas possibilidades de prestação, nomeadamente, a prestação do respeito aos direitos, do desenvolvimento de uma individualidade e do reconhecimento de um auto – enquadramento no processo de interação social. (...) Como, ainda, bem refere o autor, tal conceito de dignidade não implica a desconsideração da dignidade (e sua proteção) no caso de pessoas portadoras de deficiência mental ou gravemente enfermos, já que a possibilidade de proteger determinadas prestações não significa que se esteja a condicionar a proteção da dignidade ao efetivo implemento de uma dada prestação, já que também aqui (...) o que importa é a possibilidade de uma prestação. (...)".

[13]

Por conseguinte, em função de ser valor intrínseco do ser humano, não há como compatibilizar o princípio da dignidade da pessoa humana com o Decreto nº. 5.844/06, tendo em vista a força axiológico-normativa daquele princípio, considerado a principal fonte hermenêutica de qualquer Estado Democrático de Direito. [14]

Na medida em que lança à própria sorte um infindável número de trabalhadores incapacitados para o trabalho ou enfermos inaptos para o exercício de sua atividade habitual em razão de uma pretensa racionalização e otimização do sistema previdenciário, o mecanismo em relevo, antes mesmo de ser incongruente com o modelo de Estado adotado pelo Brasil, se revela em descompasso como próprio ser humano, entendido como fim e epicentro da ordem jurídica, e não como meio.

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Sobre o autor
Marcel Thiago de Oliveira

Advogado e Assessor Jurídico da Câmara Municipal de Rio Claro / Graduado em Ciências Jurídicas e Mestrando em Direito pela Universidade Metodista de Piracicaba - UNIMEP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Marcel Thiago. Alta programada: afronta ao princípio da dignidade da pessoa humana. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2151, 22 mai. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12882. Acesso em: 23 dez. 2024.

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