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A (in)constitucionalidade material da imposição do regime da separação obrigatória de bens para os maiores de sessenta anos

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05/06/2009 às 00:00
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5 CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE E CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL

Será objeto de análise, neste capítulo, a questão da exigência de constitucionalidade formal e material dos atos normativos para que subsistam validamente dentro de um sistema jurídico que tem na Constituição Federal seu fundamento maior de validade. De modo que, aquelas normas editadas sem a observância de tal premissa deverão ser afastadas, definitivamente, através do controle concentrado de constitucionalidade, ou casuísticamente, pela via do controle difuso. Como consequência desta premissa inafastável de constitucionalidade das leis, também trataremos do fenômeno da "constitucionalização do direito civil."

5.1 DO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS

A aferição da constitucionalidade ou inconstitucionalidade de determinado ato normativo perpassa, necessariamente, pelo campo da interpretação. Neste processo, o intérprete não poderá se afastar de algumas premissas que delineiam a questão. De qualquer modo, constitucionalidade e inconstitucionalidade são conceitos relacionais, haja vista que sempre serão alcançados tendo por referencial o Texto Maior de determinado ordenamento, o qual exsurge como fundamento de validade de todos os demais atos normativos.

Segundo ensina o professor Luís Roberto Barroso [171], " toda interpretação constitucional se assenta no pressuposto da superioridade jurídica da Constituição sobre os demais atos normativos do Estado". Será justamente em virtude dessa supremacia do Texto Constitucional, que nenhum ato jurídico poderá subsistir validadamente se incompatível com a Norma Maior que lhe confere fundamento [172]. Para Kelsen [173]:

A ordem jurídica não é um sistema de normas ordenadas no mesmo plano, situadas uma ao lado das outras, mas é uma construção escalonada de diferentes camadas ou níveis de normas jurídicas. A sua unidade é produto da conexão de dependência que resulta do fato de a validade de uma norma, que foi produzida de acordo com outra norma, se apoiar sobre essa outra norma, cuja produção, por sua vez, é determinada por outra; e assim por diante, até abicar finalmente na norma fundamental. (...) Se começarmos levando em conta apenas a ordem jurídica estadual, a Constituição representa o escalão do direito positivo mais elevado.

Para Luís Roberto Barroso, [174] a idéia de supremacia constitucional é erigida sob dois conceitos basilares da ciência constitucional, quais sejam: a distinção entre poder constituinte e poder constituído, e entre constituições rígidas e flexíveis. A primeira distinção soa importante na medida em que reforça a idéia propugnada por Sieyès, de que uma nova Constituição significa uma nova ordem das coisas, isto é, não há limite imposto pelo direito positivo anterior a ser observado pelo poder constituinte originário, já que este se afigura como sendo juridicamente ilimitado. Logo, como sugere Canotilho [175], se toda constituição tem um poder constituinte que lhe precede, então toda constituição é obra da criação deste poder originário e soberano. [176]

O poder constituído, por sua vez, não poderá exceder as fronteiras traçadas pelo poder constituinte, seja este originário ou derivado, antes terá que se adequar ao estipulado no Texto Constitucional, sob pena de ruptura com a ordem vigente [177].

A segunda distinção sugerida pelo autor se refere às constituições rígidas e flexíveis. Nas primeiras, a reforma da Constituição reclama processo específico, mais rigoroso, digamos assim, do que aquele exigido no processo de elaboração de normas infraconstitucionais. Nas flexíveis, a contrario sensu, o modo de reforma da Lei Fundamental coincide com aquele utilizado para edição de leis ordinárias [178].

Nesse sentido, Luís Roberto Barroso [179], conclui:

(...) a supremacia da Constituição é tributária da idéia de superioridade do poder constituinte sobre as instituições jurídicas vigentes. Isso faz com que o produto do seu exercício, a Constituição, esteja situado no topo do ordenamento jurídico, servindo de fundamento de validade de todas as demais normas. Essa supremacia somente se verifica onde exista Constituição rígida. Aliás a rigidez interage, em uma relação recíproca de causa e efeito, com o outro fenômeno que contribui para a primazia da ordem constitucional: a vocação maior de permanência e estabilidade que acompanha a Lei Fundamental, em contraste com a mutabilidade da legislação ordinária.

Neste contexto, portanto, de supremacia e rigidez constitucional é que se dirá se uma norma afigura ou não inconstitucional. De qualquer modo, como destaca Jorge Miranda [180], "a inconstituciuinalidade não se concebe a não ser num Estado constitucional."

O controle de constitucionalidade de uma norma poderá ser analisado, a priori, sob dois aspectos: formal e material. Pelo primeiro, afirma Paulo Bonavides [181] :

Há um controle estritamente jurídico. Confere ao órgão que o exerce a competência de examinar se as leis foram elaboradas de conformidade com a Constituição, se houve correta observância das formas estatuídas, se a regra normativa não fere uma competência deferida constitucionalmente a um dos poderes.

O segundo, por sua vez, arremata o citado autor [182]:

É um controle criativo, substancialmente político. (...) incide sobre o conteúdo da norma. Desce ao fundo da lei, outorga a quem o exerce competência com que decidir sobre o teor e matéria da regra jurídica, busca acomodá-la aos cânones da Constituição, ao seu espírito, à sua filosofia, aos seus princípios políticos fundamentais.

Todavia, além desse enfoque que permite a classificação do controle de constitucionalidade em formal e material, no sistema brasileiro podemos vislumbrar outros três critérios classificatórios: quanto à titularidade do poder de realizá-lo, quanto aos seus efeitos e quanto a forma de provocá-lo [183].

Com relação à titularidade, poderá ser difuso ou concetrado. Será difuso sempre que a competencia para "fiscalizar a constitucionalidade das leis é reconhecida a qualquer juiz chamado a fazer a aplicação de uma determinada lei ao caso concreto submetido a apreciação judicial [184]". Ao revés, será concetrado, "quando a competencia para julgar definitivamente acerca da constitucionalidade das leis é reservada a um único órgão, com exclusão de quaisquer outros". [185] No Brasil, convivem ambos os modelos, sendo o controle concentrado realizado pelo Supremo Tribunal Federal.

O professor Mauro Cappelletii [186], em obra que se propõe ao estudo comparado do controle de constitucionalidade das leis, observa que os sistemas que admitem, como o austríaco, ambas modalidades de controle de constitucionalidade, se mostram mais completos, vez que:

(...) podem existir algumas leis que, ainda que inconstitucionais, fogem, porém, a toda possibilidade de controle incidental, pelo simples fato de que elas não podem, pelo seu particular conteúdo, dar lugar ( ou pelo menos, de fato, não dão lugar) a lides concretas ou, em todo o caso, a concretos episódios processuais civis, penais ou administrativos, para cuja solução ditas leis possam ser consideradas relevantes. Imagine-se, em particular, o caso de uma lei federal que viole a esfera de competência constitucional de um Estado-membro: se não puder surgir ou se, de qualquer modo, não surgir algum caso concreto em que a lei seja relevante, sobre ela, em um sistema de controle que opere, exclusivamente, em via incidental, não poderá nunca ser exercido qualquer controle judicial de constitucionalidade.

Quanto à forma de provocá-lo, o controle de constitucionalidade poderá se dá pela de via incidental ou pela via principal. Pela via incidenter tantum, segundo ensina Zeno Veloso [187], "a alegação de inconstitucionalidade jamais poderá ser a demanda principal, constituindo questão prejudicial, suscitada incidentalmente", na medida em que for relevante para solução do caso concreto. Já pela via principal, "as questões de inconstitucionalidades podem ser levantadas a tìtulo principal, mediante processo constitucional autônomo, junto de um tribunal." Veja que a (in) constitucionalidade será suscitada através de ação própria por aqueles constitucionalmemte legitimados para tanto.

De bom alvitre ressaltar ainda que o controle difuso poderá ser abstrato ou concreto, diferentemente do controle concentrado, que será sempre abstrato. Diz-se abstrato pelo fato de que se dá de forma genérica, impessoal, não havendo análise de um caso concreto específico. É o que se verifica quando o Supremo Tribunal Federal, ao julgar determinado caso concreto, declara em caráter incidental e definitivo, a inconstitucionalidade de ato normativo, e, em seguida, oficia o Senado Federal para que em observância ao disposto no art. 52, X, da Constituição Federal suspenda os efeitos da lei objeto de controle. [188] O controle concreto, por sua vez, conforme lição de Gilmar Ferreira Mendes [189], é aquele em que "tem origem em uma relação processual concreta, constituindo a relevância da decisão pessuposto de admissibilidade

Por último, no que se refere aos efeitos, teremos a regra de que as decisões proferidas em sede de controle difuso somente vincularão as partes envolvidas na relação jurídica processual (intra partes), ao passo que aquelas proferidas na via do controle concentrado, pelo Supremo Tribunal Federal, terão efeito erga omnes, isto é, impõe observâcia obrigatória à todos, ninguém podendo ignorar tais efeitos.

Como visto, a verificação da constitucionalidade das normas infraconstitucionais é condição necessária para que se mantenha a rigidez e supremacia constitucional, que confere unidade e coerência a todo sistema jurídico. No item posterior trataremos, de forma breve, acerca do fenômeno da constitucionalização do Direito Civil, demonstrando que nenhum ramo do direito pode pretender autonomia frente à Carta Magna, sob pena de incorrer em inconstitucionalidade, nos termos acima assinalados.

5.2 DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL

Como é cediço, o Direito Civil encontra-se, dentro da divisão binária clássica do Direito, inserido no contexto do Direito Privado, o que significa que não obstante possuir algumas normas cogentes é informado, sobretudo, pelo princípio da autonomia da vontade, em que dado à presunção de que as partes encontram-se em posições isonômicas em suas relações jurídicas, lhes é permitido determinar-se pela livre manifestação da vontade, isto é, podem realizar todo e qualquer negócio jurídico, tendo apenas por limitação de conteúdo a vedação legal e a preservação dos bons costumes.

Segundo constata Paulo Luiz Netto Lobo [190], em sua gênese, o direito civil já podia ser identificado como o lócus normativo dedicado ao indivíduo como tal. O direito civil constituía o ramo do direito mais distante do direito constitucional.

Tal como é concebido hoje, o direito civil provém da sistematização de Jean Domat, que teve grande contribuição na delimitação do conteúdo do Código de Napoleão. Foi Domat o responsável por primeiro separar as leis civis das públicas. Tão logo promulgado, o Código de Napoleão foi considerado como a "constituição privada", já que suas regras regulavam as relações interpessoais privadas desde o nascimento até a morte, definindo, assim, de maneira nítida o âmbito público do privado. [191]

O Código Civil francês, imbuído por uma ideologia estritamente liberal, consagrava de modo irrestrito a liberdade, a autonomia da vontade e a igualdade formal, já que respirava a consagração dos direitos ditos de primeira geração, que impunha ao Estado um dever de abstenção à esfera privada dos indíviduos. Assim, aqueles matérias reguladas pela Code impunha que o Estado se mantivesse apartado. [192] Diante deste quadro, Julio Cesar Finger [193] observa não ser "difícil perceber que, na medida em que se esperava do Estado a não-intervenção na sociedade e suas relações, refletida nas Constituições tal exigência, também no plano normativo a influência destas no direito privado era nula."

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O direito civil codificado, portanto, surge com a pretensão de ser completo no trato das questões da vida privada dos indivíduos, subtraíndo, desta forma, qualquer tratamento a ser dispensado pelos os textos constitucionais relativo à matéria.

A modificação deste cenário somente foi percebida após a Revolução Industrial, momento em que a atividade industrial estava sendo desenvolvida a todo vapor, permitindo a capatação indiscriminada de mão-de-obra mediante contratos em massa, que submetia os trabalhadores à condições de trabalho e vida humilhantes [194]. O Estado percebeu que não podia deixar as relações privadas somente à cargo dos particulares, mas que precisava intervir em algumas relações privadas a fim de impor equilibrio nessas relações, as quais podiam ser observadas como verticais mesmo entre particulares, já que tamanha era a fragilidade de uma das partes, sendo indiferente invocar a tão exaltada igualdade formal.

A Constituição de Weimar de 1917 e a Mexicana de 1919, despontaram no contexto internacional como marcos da consagração dos direitos de segunda dimensão. Não mais era satisfatório o reconhecimento de abstenção do Estado em determinadas esferas da vida dos cidadãos, era necessário que o Estado passasse a atuar a fim de garantir direitos básicos como, educação, saúde, trabalho etc [195].

O reconhecimento dos direitos de terceira dimensão, por sua vez, foi possível após o 2° pós-guerra, período em que o Estado passou a explorar diretamente algumas atividades econômicas. Percebeu-se, na época, "um redimensionamento na titularidade dos direitos fundamentais, que antes eram eminentemente vinculados aos sujeitos, para oferecerem uma órbita de proteção a determinados grupos sociais." [196] Compõem esta dimensão os direitos denominados de solidariedade ou fraternidade, como o direito à paz, à autodeterminação dos povos etc. [197].

Foi diante dessa nova postura estatal intervencionista, descontente com os frutos colhidos com a igualdade formal, que o direito civil cunhado nos moldes liberais se mostrou insuficiente para oferecer um tratamento justo às relações que se travavam neste novo contexto social.

Aos poucos, como conseqüência direta do Welfare State, foi surgindo uma série de microssistemas autônomos que procuravam dar tratamento mais adequado do que aquele dispensado pela legislação civilista codificada, como, por exemplo, a Lei do Direito Autoral, o Estatuto da Terra, as normas de proteção ao direito do trabalho etc. Isso contribuiu para que o direito civil codificado perdesse de certa forma, a primazia que antes ocupava no contexto normativo. [198]

Paralelamente a esse boom de leis infraconstitucionais esparsas, a Constituição resgatou sua posição no cume do sistema jurídico, estabelecendo pela supremacia da Constituição, a exigência de que "todos os atos praticados sob sua égide a ela se conformem, sob pena de inexistência, nulidade, anulabilidade, ou ineficácia (princípio da constitucionalidade)." [199] Ora, dito isso, outra conclusão não é possível senão a sugerida por Julio César Finger [200]:

(...) todo direito infraconstitucional é direito constitucionalizado, não se podendo, da forma, ter um direito civil autônomo em relação ao Direito Constitucional. Superou-se, também, consequentemente, outra divisão, a qual, mais que metodológica, expressava toda uma visão do ordenamento jurídico: a absoluta separação entre direito público e privado.

Inadmissível, portanto, que qualquer ramo do direito pretenda autonomia em relação à Constituição, sendo, sob este aspecto, redundância falar em constitucionalização do direito civil, já que todas as normas hierarquicamente inferiores terão que observar a supremacia constitucional.

Sendo a Constituição a lei fundamental portadora de valores materiais, arremata o retrocitado autor [201]:

O direito civil, de modo especial, ao expressar tal ordem de valores, tinha por norte a regulamentação da vida privada unicamente sob o ponto de vista do patrimônio do indivíduo. (...) O direito civil, de um direito proprietário, passa a ser visto como uma regulação de interesses do homem que convive em sociedade, que deve ter um lugar apto a propiciar seu desenvolvimento com dignidade. Fala-se, portanto, em despatrimonialização do direito civil, como conseqüência da sua constitucionalização.

Podemos concluir diante do que foi exposto, que o "direito civil constitucionalizado parece estar em busca de um fundamento ético, que não exclua o homem e seus interesses não-patrimoniais, na regulação patrimonial que sempre pretendeu ser." [202] O desafio, na visão de Paulo Luiz Netto Lobo [203], que se coloca para os civilistas é:

a capacidade de ver as pessoas em sua dimensão ontológica e, através dela, seu patrimônio. Impõe-se a materialização dos sujeitos de direitos, que são mais que apenas titulares de bens. A restauração da primazia da pessoa humana, nas relações civis, é a condição primeira de adequação do direito à realidade e aos fundamentos constitucionais.

Respeitando o que se disse até o presente momento, passaremos agora a discorrer acerca do tema principal deste trabalho, qual seja: a inconstitucionalidade material inserta no art. 1641, II do Código Civil 2002, que impõe o regime da separação obrigatória para os maiores de sessenta anos. Procuraremos demonstrar que tal norma não se insere nesse novo enfoque dado ao direito civil, de um ramo despatrimonializado, constitucionalizado, restando, assim, como uma norma materialmente inconstitucional, haja vista não refletir princípios e valores que irradiam do Diploma Constitucional.

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Sobre a autora
Renata Pereira Carvalho Costa

Advogada. Mestranda em Direitos e Garantias Fundamentais pela FDV.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Renata Pereira Carvalho. A (in)constitucionalidade material da imposição do regime da separação obrigatória de bens para os maiores de sessenta anos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2165, 5 jun. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12908. Acesso em: 25 abr. 2024.

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