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A função política da jurisdição constitucional.

Breves considerações sobre ativismo judicial, controle de constitucionalidade e judicialização da política

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30/05/2009 às 00:00

Resumo:


  • A jurisdição constitucional desempenha um papel político significativo, atuando na interpretação e aplicação da Constituição.

  • O controle de constitucionalidade realizado pelos tribunais constitucionais é uma manifestação de sua função política, garantindo a supremacia da Constituição e protegendo direitos fundamentais.

  • A judicialização da política ocorre quando o judiciário intervém para assegurar a concretização dos direitos fundamentais, especialmente em casos de omissão do Estado, o que levanta questões sobre os limites da atuação judicial.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

        SUMÁRIO : INTRODUÇÃO. 1. A DOUTRINA DA SEPARAÇÃO DOS PODERES. 2. DIREITO E POLÍTICA. 3. FUNÇÃO POLÍTICA DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL, GUARDIÃO DA "DECISÃO POLÍTICA FUNDAMENTAL". 3.1. Hermenêutica constitucional, ativismo judicial e abstração dos objetivos do Estado segundo a Constituição Federal. 3.2. Controle de constitucionalidade. 3.3. Judicialização da política. CONCLUSÕES. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.


INTRODUÇÃO

        Esta modesta contribuição tem o condão de analisar, ainda que de modo superficial, o papel político da jurisdição constitucional.

        Para tanto, examinar-se-ão a seguir alguns conceitos e nuances atinentes àquela função que conduzam para uma melhor compreensão, por parte do leitor, de fenômenos atuais e em evidência como o ativismo judicial, o controle de constitucionalidade e a judicialização da política.


1. A DOUTRINA DA SEPARAÇÃO DOS PODERES

        A doutrina da separação dos poderes encontra fundamento na limitação do poder político de uma função estatal pela outra. Num escorço desta doutrina, tão breve quanto singelo e despretensioso, por não se tratar do foco principal do presente trabalho, podemos resumi-la tendo sua origem em Aristóteles. A doutrina [01] atribui a este filósofo as raízes remotas de uma separação social calcada na Constituição mista. [02]

        Posteriormente, remonta-se a John Locke uma evolução daquela doutrina. Tem-se o poder político do Estado originado numa convenção (contrato social), e não mais num fato natural (descendência ou representatividade divina do monarca). De igual sorte, desenvolve o autor a supremacia da lei e a separação dos poderes legislativo e executivo, evitando-se a arbitrariedade do feitor da lei também aplicá-la. Locke discorre ainda sobre os poderes federativo (decorrentes da soberania) e de prerrogativa. [03]

        Em Montesquieu, também se defende a separação entre o legislador e o executor da lei, colocando a função de julgar num papel secundário, restrito ao ditame legal. Surge de forma mais evidente a separação consagrada pelo Estado liberal. [04]

        No Estado moderno, "a teoria da separação dos poderes passou a identificar-se com uma teoria da diferenciação dogmática" das funções estatais, mais de acordo com os critérios jurídicos (Alemanha), em contraposição a um sentido político da doutrina (EUA - John Adams – 1775, e Hamilton, em O Federalista). Na Alemanha, a cada poder corresponderia exclusivamente uma função estatal materialmente definida (no que tange à função jurisdicional: conservar e tutelar o ordenamento jurídico mediante o "proferimento de decisões individuais e concretas, dedutíveis das normas gerais, declarando a conformidade ou a não conformidade dos factos com estas e determinando as eventuais consequências jurídicas"). [05]

        Após essa breve reflexão, é possível abstrair da evolução da doutrina da separação de poderes que, após uma hegemonia do Executivo na pessoa do monarca absolutista, passou-se à supremacia do Parlamento [06]. Atualmente, com o atrofiamento dos demais poderes, consoante se analisará a seguir, assume o judiciário uma posição mais em voga, o que faz com que muitos autores digam, em tom profético, que se estaria adentrando numa "era do judiciário". [07]


2. DIREITO E POLÍTICA

        Rios de tinta já foram gastos na busca para se caracterizar a origem do poder do Estado, se político ou jurídico. Kelsen defendia esta última corrente, dizendo que o Estado era uma "realidade normativa", nascida do Direito e exercida por império para consecução dos fins jurídicos. [08]

        Evoluindo-se nesta investigação, concluiu-se que em todo e qualquer Estado há uma função "irredutivelmente política e não apreensível normativamente." [09] Atualmente, tem-se por indissociáveis os aspectos jurídico e político do Estado, sendo possível dizer que a "política e o direito são as duas faces de uma mesma moeda, que é o poder, e precisam andar juntas". [10]

        Nesse mesmo diapasão, Canotilho leciona que "a política e o direito são apenas duas das múltiplas dimensões das mesmas estruturas globais da sociedade e do mesmo processo global (...) não são, no Estado constitucional, categorias antagónicas." [11] Desse modo, é correto concluir que é bastante tênue o limite divisor do direito e da política, sendo que, em certos casos, poderia haver uma concorrência dos dois campos.

        Dito isso, cabível afirmar que o Estado vincula-se a necessidades e objetivos, "em função dos quais se estabelecem os meios". É na persecução desses objetivos que o Estado age politicamente, sempre buscando o máximo de juridicidade de modo a atuar legitimamente e mantendo a estabilidade da ordem jurídica. [12] Ainda sobre a função política do Estado, pode-se melhor explicitá-la segundo as lições de Nuno Piçarra:

        "Entende-se que dela faz parte a orientação e direcção da sociedade política em geral, a determinação do interesse público, a interpretação dos fins do Estado, a fixação das suas tarefas e a escolha dos meios materiais, técnicos e organizatórios adequados para as realizar e, ainda, a manutenção e o desenvolvimento da ordem jurídica estadual." [13]

        Inicialmente, essa função política é de titularidade do governo, sendo atribuída a um órgão superior do Estado cujos titulares, em regra, são os delegatários dos poderes executivo e legislativo do Estado [14], devendo estes se sobrepor ao judiciário na decisão de políticas públicas, posto que legitimados democráticos para tanto. [15]

        Na atuação política do Estado, um dos principais instrumentos indiscutivelmente é a lei, funcionando esta como ato típico da decisão política [16], seja para legitimar ações governamentais, conferindo-lhes juridicidade, seja para autorizar medidas. Pode-se dizer, assim, que passamos a assistir uma "instrumentalização do jurídico pelo político." [17]

        No entanto, seria impossível que se estabelecessem regras para todos os objetivos estatais. Ademais, o implemento dos objetivos políticos do Estado seria deveras moroso se dependesse, em cada medida, de específico suporte legal. Jellinek afirma que "um governo que agisse apenas segundo leis prévias seria um absurdo político." [18]

        O legislativo não pode estabelecer regras ignorando o que foi ou está sendo realizado pelo executivo, desconhecendo os seus meios de atuação. Tampouco o executivo será capaz de aguardar um "lento processo de elaboração legislativa, nem sempre adequadamente concluído, para só então responder às exigências sociais, muitas vezes graves e urgentes." [19]

        Há ainda nesta questão outro ponto a merecer enfoque. A heterogeneidade do sistema representativo no legislativo acaba favorecendo a edição de leis amplas, com conceitos abertos, oriundas de processos tecnicamente imperfeitos, pois, do contrário, sequer seriam aprovadas, dado o jogo de poderes existente num parlamento com conflitos freqüentes e profundos. [20] Isto sem falar na suscetibilidade de ingerência do executivo em fazer passar seus projetos.

        Neste ponto específico, apenas para ilustrar, já no século XVIII vivia-se no parlamento inglês a influência política do Gabinete, representando o Rei, que buscava a aprovação de suas medidas através de corrupção e influência dos membros da Câmara Baixa "mediante a atribuição de cargos públicos, pensões e subsídios. [21]

        Atualmente, tendo por algumas das causas os pontos expostos acima, vive-se uma crise da lei que "vem ligada à ‘falência’ dos Parlamentos como legisladores." É de Manoel Gonçalves Ferreira Filho a análise:

        "É notório que os Parlamentos não dão conta das ‘necessidades’ legislativas dos Estados contemporâneos; (...) As normas que tradicionalmente pautam o seu trabalho dão – é certo – ensejo a delongas, oportunidade a manobras e retardamentos. Com isso, os projetos se acumulam e atrasam. E esse atraso, na palavra do governo, no murmúrio da opinião pública, é a única e exclusiva razão por que os males de que sofre o povo não são aliviados. (...) O modo de escolha de seus membros torna-os pouco freqüentados pela ponderação e pela cultura, mas extremamente sensíveis à demagogia e à advocacia em causa própria. Os interesses não têm dificuldades em encontra porta-vozes eloqüentes, o bem comum nem sempre os acha. (...) Ora, a incapacidade dos Parlamentos conduz à sua abdicação." [22]

        Esses pontos à parte, a lei, em regra, será mesmo geral e abstrata [23], de modo a perpetuar-se no tempo e normatizar o máximo de situações concretas, fazendo valer sua eficácia. [24] Essa abstração dos objetivos e intenções da norma cada vez mais vem sendo revista, ou mesmo realizada, pelo judiciário, que o faz em processos de hermenêutica que levam em conta não só a intenção do legislador, mas uma ampliação dos conceitos normativos em conformidade com a Constituição, esta com enunciados ainda mais abertos, [25] fazendo valer, preponderantemente, a primazia dos direitos fundamentais.

        Ainda que as causas da amplitude e abstração normativa mencionada acima sejam a má escolha dos representantes pelo povo, incapaz de "compreender os problemas do Estado e escolher bons governantes," [26] ou mesmo a tradicional tensão entre os poderes, o que importa é que a questão existe, embaralhando ainda mais direito e política. Tanto não se pode excluir o povo do processo, por medida antidemocrática, como não se vislumbrou, até o momento, sistema a substituir a tripartição de poderes, devendo surgir quem solucione, de modo institucional, as questões postas a análise, decidindo por último.

        "No âmbito da sociedade política, se ninguém pode dizer o que é justo, é preciso que alguém defina, pelo menos, o que é jurídico, (...) o importante, sim, é que alguém decida por último e que essa decisão seja acatada por todos." [27] Vê-se, pois, que estas questões, somadas a outras, deságuam no judiciário, que acaba por dar a palavra final, exercendo poderosa função política, mormente na jurisdição constitucional.

        No que diz respeito à própria aplicação da lei, é certo que afloram contornos políticos. O direito positivado caracteriza-se por uma legislação humana, enquanto sua validade se determina por sua aplicação. Apesar de a política ter seu principal reflexo na legislação, face à "concorrência de diferentes concepções de justiça, a pergunta sobre qual delas deva ser normativa é objeto, por sua vez, de decisões políticas." [28] Abaixo, discorrer-se-á de modo mais aprofundado sobre essa investigação que dá ensejo à atuação política por parte da jurisdição constitucional.

        Portanto, feitas essas considerações, pode-se dizer que a jurisdição constitucional depara com diversos desafios que passam pela discussão do tênue limite, se é que não haveria também pontos coincidentes, entre direito e política. A jurisdição constitucional moderna exerce inequívoca função política, tanto realizando controle de constitucionalidade, mesmo por omissão, quanto ao proceder a uma revisão judicial de questões políticas levadas ao seu exame. [29]

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        Concluindo este pensamento, se antes a função política era considerada como estranha ao trinômio executivo, legislativo e judiciário [30], atualmente vem sendo exercida por estes três poderes. O presente estudo ater-se-á a algumas das formas com que a função política é levada a cabo pelo judiciário, com foco na jurisdição constitucional.


3. FUNÇÃO POLÍTICA DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL, GUARDIÃO DA "DECISÃO POLÍTICA FUNDAMENTAL"

        Cediço que o tribunal constitucional realiza o juízo de conformação de leis e embates levados ao seu exame de acordo com a Constituição. [31] Nesse juízo, porém, deve se levar em consideração que "questões constitucionais não são originariamente questões jurídicas, mas sim questões políticas." [32] Vale dizer que a Constituição do Estado, após períodos de autoritarismo e concentração de poderes, apareceu como instrumento hábil para uma "pretendida limitação da disposição política sobre o direito." [33] Ficando a cargo da jurisdição constitucional a palavra final sobre os "dizeres" da Constituição, clara se verifica sua função política.

        Nesse passo, a jurisdição constitucional tem, gradativamente, saído da inércia e de um "‘judicial self restraint’ quanto aos juízos de natureza política contidos nas leis cuja constitucionalidade se trata de apreciar," [34] e desempenhado um papel mais ativo na abstração da função política do Direito, atuando como verdadeiro concretizador das funções políticas do Estado.

        No Estado de Direito contemporâneo, a questão essencial que se coloca é a de saber se a necessária vinculação da função política deve se processar numa relação de mera compatibilidade com a constituição ou numa relação de conformidade com ela. [35] Nessa complexa análise, intervém a jurisdição constitucional, que, no resguardo da Constituição do Estado, em sede de controle de constitucionalidade ou julgando embates de cunho político segundo a Lei Fundamental, realiza função política de interesse estatal. A seguir, algumas breves considerações sobre modos de exteriorização do exercício da função política pela jurisdição constitucional.

        3.1. Hermenêutica constitucional, ativismo judicial e abstração dos objetivos do Estado segundo a Constituição Federal

        Como dito acima, quando da feitura de normas amplas e abstratas, o legislativo acaba por deixar a cargo dos tribunais a tomada de medidas de fundamental alcance sócio-político ou de amplas repercussões a este nível. [36] Observa-se um crescente "deslocamento do centro das decisões politicamente relevantes do Legislativo e do Executivo (...) em direção ao Poder Judiciário." [37]

        No tocante à jurisdição constitucional, essa atuação se dá de forma evidente, através de processos decisórios com base numa hermenêutica bastante própria, haja vista que "interpretar sempre foi, também, aplicar; aplicar o direito significa pensar, conjuntamente, o caso e a lei, de tal maneira que o direito propriamente dito se concretize." Afinal, o sentido de algo geral "só pode ser justificado e determinado, realmente, na concretização e através dela." [38]

        No exercício desta interpretação e controle, a jurisdição constitucional vem desempenhando um papel cada vez mais ativo e criativo, como ensina Inocêncio Mártires Coelho:

        "No âmbito da jurisdição constitucional, por exemplo, o exercício dessa criatividade, em rigor, não conhece limites, não só porque as cortes constitucionais estão situadas fora e acima da tradicional tripartição dos poderes estatais, mas também porque a sua atividade interpretativa se desenvolve, essencialmente, em torno de enunciados abertos, indeterminados e plurissignificativos – as fórmulas lapidares que integram a parte dogmática das constituições." [39]

        O judiciário, provocado, sai da anterior condição de poder "invisível e nulo" [40], mera vox legis, para se tornar pensante, abstraindo e implementando, de modo ativo, os objetivos do Estado segundo a Constituição, sem ficar restrito "à frieza da lei, mas à sua correta aplicação" [41], agindo de modo semelhante a um legislador, criando o Direito, ampliando os conceitos normativos e conferindo eficácia à Constituição no caso concreto. Nesse ponto, aduz Segado:

        "En este nuevo contexto se entiende que aunque, por razones en alguna medida de orden práctico, en la línea kelseniana, el control de constitucionalidad se siga acomodando a uma estructura concentrada en un órgano, el Tribunal Constitucional, que tendrá la última palabra en lo que al mismo se refiere, ya no se considere necesaria la conversión del Tribunal en un "legislador negativo", como modo de articular su colaboración con el "legislador positivo", y todo ello frente al poder judicial. La praxis de los Tribunales Constitucionales no ha hecho sino avanzar en esta dirección, certificando la quiebra del modelo kelseniano del legislador negativo." [42]

        Ao assim proceder, a jurisdição constitucional interpreta dispositivos abstraindo intenções, pensando até o fim o que havia sido inicialmente pensando pelo legislador [43], desempenhando inegável função política. Conveniente citar, aqui, os ensinamentos de Carl Schmitt:

        "Não é nenhuma questão teórico-jurídica, mas de utilidade prático-política o quanto se quer incumbir instâncias existentes ou a serem instituídas com o estabelecimento normativo do conteúdo de leis constitucionais obscuras e indeterminadas e, através disto, transformar essas instâncias em um contrapeso para a corporação legisladora." [44]

        Ainda sobre o papel político da jurisdição constitucional no exame de controvérsias, segundo uma interpretação de enunciados abertos da Constituição, relevante o magistério de Hans Kelsen:

        E é só aparentemente que não é assim quando, como às vezes acontece, a própria Constituição se refere a esses princípios invocando os ideais de eqüidade, justiça, liberdade, igualdade, moralidade, etc., sem esclarecer nem um pouco o que se deve entender por isso. Se essas fórmulas não encerram nada mais que a ideologia política corrente com que toda ordem jurídica se esforça por se paramentar, a delegação da eqüidade, da liberdade, da igualdade, da justiça, da moralidade, etc. significa unicamente, na falta de uma precisão desses valores, que tanto o legislador como os órgãos de execução da lei são autorizados a preencher de forma discricionária o domínio que lhes é confiado pela Constituição e pela lei. Porque as concepções de justiça, liberdade, igualdade, moralidade, etc. diferem tanto conforme o ponto de vista dos interessados, que se o direito positivo não consagra uma dentre elas, qualquer regra de direito pode ser justificada por uma dessas concepções possíveis. (...) No entanto o limite entre essas disposições e as disposições tradicionais sobre o conteúdo das leis que encontramos nas Declarações de direitos individuais se apagará facilmente, e, portanto não é impossível que um tribunal constitucional chamado a se pronunciar sobre a constitucionalidade de uma lei anule-a por ser injusta, sendo a justiça um princípio constitucional que ele deve, por conseguinte aplicar. Mas nesse caso a força do tribunal seria tal que deveria ser considerada simplesmente insuportável. A concepção que a maioria dos juízes desse tribunal tivesse da justiça poderia estar em total oposição com a da maioria da população, e o estaria evidentemente com a concepção da maioria do Parlamento que votou a lei. [45]

        A amplitude de determinados princípios constitucionais por vezes dá causa a "desdobramentos discricionários, senão arbitrários," por parte do Estado. No exame da correta interpretação daqueles dispositivos, a jurisdição constitucional poderá "amoldar o próprio mérito dos atos administrativos e, conseqüentemente, impor à ação governamental rumos que não são os preferidos pelas autoridades. Ou seja, assumir um papel político." [46] Ocorre que, nessa "concretização e interpretação," são inevitáveis "influências da pré-compreensão, da origem e socialização, das preferências políticas e ideológicas dos juízes." [47] Aqui, pois, mais um traço político no exercício da função jurisdicional. Na interpretação da Constituição pela jurisdição constitucional, enquanto função política, Dieter Grimm elucida:

        "... a jurisdição constitucional parece se constituir em um caso especial (...) ela se encontra muito mais perto da política que os demais. Em virtude de sua alta necessidade de consenso e sua difícil alterabilidade, as normas constitucionais são muito mais lacunares do que o direito escrito. Mas como fundamento da restante ordem jurídica, elas têm um caráter de princípio mais forte e são, por isso, mais indefinidas do que o direito escrito. Isso abre margens maiores de interpretação e exige processos de concretização mais abertos. Todavia, a diferença decisiva reside em que o objeto de regulamentação da Constituição e, assim, o objeto de controle do tribunal constitucional consiste na própria política, incluindo a legislação. Por conseguinte, ao contrário da jurisdição simples, a jurisdição constitucional não pode ser reprogramada por emendas de lei, apenas por emendas constitucionais que, entretanto, só, muito raramente, ocorrem em questões políticas altamente discutíveis." [48]

        Feitas essas considerações, deve se levar em conta que a Constituição deixou a condição exclusiva de mero reflexo da correlação de forças políticas, ou fatores reais de poder, [49] para, com força normativa própria, "imprimir ordem e conformação à realidade política e social." [50]

        Tendo-se o Estado como expoente do poder político, e a Constituição como sua norma fundamental, "então onde quer que se institucionalizem relações de mando, alguém terá de arbitrar os inevitáveis conflitos entre os fatores reais de poder." Esse controle foi atribuído à jurisdição constitucional, que, julgando embates políticos e realizando o juízo de conformação das espécies normativas, tudo segundo a Constituição, desempenha função política, de interesse do próprio Estado enquanto necessidade de auto-preservação. Nesta análise, interpretando a Constituição, esta com enunciados abertos e termos amplos, o tribunal constitucional acaba legislando. [51] Soma-se a estes pensamentos o de Segado:

        "En este ámbito de pensamiento, el Estado de Derecho pasó a concebirse como Estado sujeto al Derecho, que no a la Ley, circunstancia a la que se anudaba, como inexcusable consecuencia, la sustitución del principio de legalidad (Gesetzmässigkeit) por el de juridicidad (Rechtsmässigkeit). El principio positivista de que el Derecho era el producto propio y exclusivo del legislador quedaba así absolutamente degradado y relativizado." [52]

        Sintetizando esta digressão, tem-se que o remédio que vem sendo utilizado contra as omissões estatais e normas amplas e gerais, ou mesmo mal elaboradas, tem sido cada vez mais o chamado ativismo judicial. Se a força normativa da Constituição reside em sua pretensão de eficácia [53], que clama pela aplicação plena de seus dispositivos, por vezes amplos, a jurisdição constitucional tem atuado fortemente para abstrair os significados daqueles preceitos, resguardando a supremacia constitucional e ordenando os fatores sócio-políticos. Quanto à hermenêutica utilizada para tanto:

        "Finalmente, a interpretação tem significado decisivo para a consolidação e preservação da força normativa da Constituição. A interpretação constitucional está submetida ao princípio da ótima concretização da norma (Gebot optimaler Verwirklichung der Norm). Evidentemente, esse princípio não pode ser aplicado com base nos meios fornecidos pela subsunção lógica e pela construção conceitual. Se o direito e, sobretudo, a Constituição, têm a sua eficácia condicionada pelos fatos concretos da vida, não se afigura possível que a interpretação fala deles tábula rasa. Ela há de contemplar essas condicionantes, correlacionando-as com as proposições normativas da Constituição. A interpretação adequada é aquela que consegue concretizar, de forma excelente, o sentido (Sinn) da proposição normatica dentro das condições reais dominantes numa determinada situação. Em outras palavras, uma mudança das relações fáticas pode – ou deve – provocar mudanças na interpretação da Constituição." [54]

        Assim, a jurisdição constitucional rompe de vez com a aplicação robótica do Direito, saindo de um balançar de olhos entre a Constituição e o fato concreto para, por vezes criar, ela própria, o Direito. Se há a crítica de carência de legitimidade para isso, é certo que o tribunal constitucional se torna legítimo pela "aprovação social" de seu comportamento, sem o qual os textos legais permaneceriam "frios e inacabados." [55] Sobre o ativismo, pode-se dizer que:

        "A criatividade judicial, ao invés de ser um defeito, do qual há de se livrar o aplicador do direito, constitui uma qualidade essencial, que o intérprete deve desenvolver racionalmente. A interpretação criadora é uma atividade legítima, que o juiz desempenha naturalmente no curso do processo de aplicação do direito, e não um procedimento espúrio, que deva ser coibido porque supostamente situado à margem da lei." [56]

        Nesse exercício, a jurisdição constitucional, por óbvio, se torna legiferante devido à "supremacia institucional e textura aberta das normas-princípios com que trabalha - , mas também em razão das próprias regras hermenêuticas de que se utiliza, cujos contornos (...) lhe permite manipular a interpretação." [57]

        Em suma, na tradução e interpretação da Constituição e das leis, estas segundo aquela, a jurisdição constitucional ativamente cria o Direito, agindo politicamente na construção do ordenamento jurídico. Essa criação encontra respaldo na atribuição de eficácia a institutos amplos carentes de força por inaplicáveis, atuando politicamente, no interesse do Estado, como meio para consecução dos fins jurídicos, como visto acima, ainda que pesem críticas quanto à ausência de limites expressos.

        Mas não é só a isso que se limita a função política da jurisdição constitucional. Outro ponto é visto a seguir.

        3.2. Controle de constitucionalidade

        No juízo de conformidade das leis com a Constituição, a jurisdição constitucional também age politicamente. Ainda que a legislação concretize a vontade geral, esta, quando manifestada de modo irregular, deve ser relativizada tanto por contrária à decisão política fundamental, quanto para proteger a primazia dos direitos fundamentais. [58]

        O controle exercido pela jurisdição constitucional aparece como remédio a um interesse genuinamente político. Segundo Kelsen, leis inconstitucionais que permaneçam válidas sem um controle que as anulem "equivale mais ou menos do ponto de vista propriamente jurídico a um anseio sem força obrigatória. Há um interesse político em controlar atos contrários à Constituição." [59]

        Indo além, esse juízo exercido pela jurisdição constitucional deve atentar ainda se há regularidade e juridicidade da externalização de um interesse político pelo Estado. Assim, a lei deverá ser chamada ao controle quando seu aspecto político se sobrepuser ao jurídico. Nuno Piçarra assevera:

        "A validade da lei já não está em si própria, mas na sua conformidade ou compatibilidade com os objetivos e os princípios constitucionais. A sua dimensão muitas vezes marcadamente política faz com que a tutela dos princípios constitucionais e dos valores especificamente jurídicos em geral não possa caber, em última instância, ao legislador, mas aos tribunais (nomeadamente ao tribunal constitucional)." [60]

        Ocorre que cada vez mais esse controle jurídico tem sido, também, político. Na análise da constitucionalidade, por vezes, as opiniões políticas dos magistrados, evidenciadas pela interpretação que fazem, se sobrepõem às da representação popular. Esse ponto suscita críticas sobre um "governo dos juízes", se aproximando o Judiciário de uma "terceira Câmara" [61] de tramitação de leis. Uma das possíveis causas para esse paradoxo pode ser a "falência dos Parlamentos", sobre a qual discorreu-se acima, e que abre campo para uma atuação mais ativa dos magistrados. [62]

        A título exemplificativo desse controle, em sede de ação direta de inconstitucionalidade há uma "face política que a tecnicidade de seu exame não logra esconder." Logo na análise de medida cautelar já há campo para exercício do controle pela jurisdição constitucional. Assim, com "pouco, pouquíssimo tempo depois de promulgado o texto, ele pode ser confirmado pelo Supremo Tribunal Federal ou ter suspensa a sua eficácia." A despeito do controle legítimo por parte da jurisdição constitucional, nesta análise, vislumbra-se espaço para um jogo de poderes e interesses, pois tanto poderia haver "uma vitória do proponente da lei — no mais das vezes, o Executivo — ou da oposição. Por esse viés, a aparência política do fato avulta, por mais que a decisão tenha sido estritamente jurídica." [63]

        Não obstante os argumentos acima, reitera-se que o juízo de conformação, precisamente pelo fato de ganhar viés político, é deveras delicado, posto que analisa espécies legislativas enquanto expressões da vontade política dos representantes democráticos do povo. [64]

        Ora, se a "Constituição do Estado de Direito contemporâneo se caracteriza como norma de ordenação do processo político e de conformação social" [65] qualquer controle que se efetue a partir do exame daquela norma possuirá contornos políticos. Mais uma vez valemo-nos das lições de Kelsen, que elucida a função política da jurisdição constitucional no que tange ao controle de constitucionalidade:

        "Garantindo a elaboração constitucional das leis e em particular sua constitucionalidade material ela é um meio de proteção eficaz da minoria contra os atropelos da maioria dominação desta só é suportável se for exercida de modo regular forma constitucional especial que consiste de ordinário em que a reforma da Constituição depende de uma maioria qualificada significa que certas questões fundamentais só podem ser solucionadas em acordo com a minoria a maioria simples não tem pelo menos em certas matérias o direito de impor sua vontade à minoria Somente uma lei inconstitucional aprovada por maioria simples poderia então invadir contra a vontade da minoria a esfera de seus interesses constitucionais garantidos." [66]

        Noutro giro, a jurisdição constitucional também atua de maneira política, contribuindo para a estabilidade democrática e institucional, e no interesse do Estado, quando arbitra conflitos políticos, como dito mais acima, na função de formar "base de consenso de adversários políticos melhor do que em sistemas nos quais, no caso de conflitos constitucionais, a maioria sempre tem razão". [67]

        No rastro do que foi dito, é indispensável ressaltar a importância política do controle de constitucionalidade. Esse juízo, efetuado por um poder judicial de forma independente, supera a importância, "para efeitos da moderação e limitação do poder estatal, os controle de natureza política entre os órgãos constitucionais de direção política (parlamento e governo), os quais estão unificados pelo partido majoritário." Em assim sendo, é possível avaliar o judiciário como "contrapoder da função legislativa enquanto instrumento da função política." [68]

        3.3. Judicialização da política

        Com a jurisdição constitucional, cada vez mais tem o judiciário intercedido para fazer valer os ditames constitucionais. Nessa função, quando omisso o Estado em implementar meios para consecução dos dizeres da Constituição, tem intervindo o judiciário para assegurar a concretização dos direitos fundamentais. Ocorre que essa atuação também tem suscitado diversas críticas no sentido de uma invasão indevida no mérito administrativo, ingressando o judiciário numa seara que não lhe diria respeito.

        Fazendo-se uma breve recapitulação, vale lembrar o fortalecimento do constitucionalismo após 1988, com uma Constituição que buscou canalizar demandas sociais e que culminou numa "’Carta-compromisso’ de transformação social do país". Dessa forma, acabou-se por judicializar importantes questões políticas no Brasil. [69]

        Esse modelo constitucional acompanhou uma tendência mundial, em que "o modelo principiológico adotado pelo Welfare State, aliado ao vultoso número de funções conferidas ao Poder Judiciário, admitiu uma estrutura constitucional onde a decisão judicial passou a ter poderes nunca imaginados." [70]

        Nessa linha, o judiciário, como dito, não mais se restringe aos mecanismos de controle para uma atuação negativa, tendo, os mesmos instrumentos apontados, "servido para que o Judiciário exerça um papel político" e positivo. "Com efeito, decisões judiciais, por ocasião de sua apreciação, têm imposto correções de rumo ou exigências condicionantes, que significam muitas vezes opções políticas." [71] Há, pois, uma transcendência do jurídico pela jurisdição constitucional, que, quando da análise de determinados casos, adentra à seara política. Assim, é de se admitir a possibilidade de que "um tribunal constitucional ultrapasse o limite legal imposto a ele e, sob o pretexto de aplicação constitucional, pratique ele mesmo realização política. A relação de tensão entre direito e política continua assim, a princípio, insuprimível." [72]

        "Têm sido freqüentes as decisões judiciais impondo à Administração Pública condutas destinadas a efetivar programas ou metas previstas na Constituição ou na legislação infraconstitucional." O pretexto legítimo que tem pautado aquelas decisões tem sido, na grande maioria das vezes, "a efetivação de direitos fundamentais, com apoio no artigo 5º, parágrafo 1º, da Lei Magna, que confere a tais direitos aplicabilidade imediata." Seguindo esse entendimento:

        "(...) inúmeras são as decisões que, a fim de concretizar o direito à saúde, têm determinado o fornecimento de medicamentos; para concretizar o direito à educação, impõem a instituição de vagas escolares; afora as que vêm dispor sobre a proteção de minorias, de espécies animais ameaçadas de extinção etc. Isso especialmente por meio de Mandados de Segurança, individuais ou coletivos, ou por meio de Ações Civis Públicas. Essas decisões envolvem, muitas vezes, delicados problemas para o Executivo, que está jungido a normas orçamentárias e a limitações de recursos, o que põe o problema da chamada "reserva do possível". Não os ressente, todavia, o Judiciário, pois o cumprimento de suas decisões é encargo alheio. [73]

        Essa judicialização da política, tão em voga atualmente, clama pela imposição de parâmetros mínimos às decisões dos tribunais, bem como procedimentos de composição da Corte Constitucional que impeçam uma conseqüente politização da justiça.

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Sobre o autor
Guilherme Pupe da Nóbrega

Advogado em Brasília (DF). Pós-graduando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NÓBREGA, Guilherme Pupe. A função política da jurisdição constitucional.: Breves considerações sobre ativismo judicial, controle de constitucionalidade e judicialização da política. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2159, 30 mai. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12910. Acesso em: 20 dez. 2024.

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