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O Código de Trânsito Brasileiro à luz dos princípios do direito sancionador

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15/06/2009 às 00:00
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4. A supremacia das normas e dos princípios constitucionais

No ordenamento jurídico brasileiro, como na maioria dos países ocidentais, a Constituição ocupa lugar de destaque e superioridade, pois como dissemos em outro estudo, "as regras insculpidas na Carta Magna efetivam a gênese do Estado de Direito." [43] É intuitivo que uma norma que é o pacto formador de um Estado deve se sobrepor às demais normas, sob pena de reinar a insegurança.

E é por isso que a doutrina exposta por Kelsen sobre a hierarquia das normas [44] é hoje mundialmente aceita. Por esta teoria, a Constituição (ocupando o lugar de norma fundamental), encontra-se no ápice da ordem jurídica, irradiando seus preceitos e princípios [45] por todo o arcabouço jurídico que lhe é inferior. Isto vale dizer que as normas infraconstitucionais, para serem consideradas válidas, não podem, sob pena de declaradas inconstitucionais, afrontar nenhuma das regras explícitas e implícitas [46] (v.g., alguns princípios) prestigiadas na Lei Máxima.

Como ensina Canotilho, "a desconformidade dos actos normativos com o parâmetro constitucional dá origem ao vício da inconstitucionalidade. A doutrina costuma distinguir entre vícios formais, vícios materiais e vícios procedimentais: ... vícios materiais: respeitam ao conteúdo do acto, derivando do contraste existente entre os princípios incorporados no acto e as normas ou princípios da constituição." [47]

Queremos salientar neste texto, como já dissemos, [48] que também os princípios constitucionais são normas de caráter fundamental e superior a demais regras infraconstitucionais. Neste sentido, a lição de Larenz é esclarecedora: "Entre os princípios éticos-jurídicos, aos quais a interpretação deve orientar-se, cabe uma importância acrescida aos princípios elevados a nível constitucional." [49]

Mas o que são os princípios num ordenamento jurídico? O tema comportaria (e merece), tomos e tomos, mas em suma, os princípios são, no dizer de Bobbio "normas fundamentais ou generalíssimas do sistema." [50] No sentir de Celso Antônio Bandeira de Mello, o princípio jurídico é "mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para a sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico." [51]

Por estas lições, e pelo estágio atual da matéria, hoje é superada a polêmica que se travava sobre a cogência dos princípios, mormente dos princípios constitucionais. A doutrina desenvolveu-se; rompeu-se o antigo discurso (positivista) que negava aos princípios, status de norma. [52] Hoje o discurso principialista encontra-se na vanguarda, e é reconhecido como válido e útil ao desenvolvimento da interpretação e aplicação do direito, bem como útil para a ciência do direito. [53] Se "a importância dos princípios está em que eles fundamentam as regras," [54] mais repugnante que ofensa à normas escritas, é ofensa aos princípios constitucionais.

Já no âmbito da teoria geral do direito, como adverte Limongi França, a remissão aos princípios é exercício capaz de "atestar" a boa interpretação e aplicação do direito, tanto que "a consagração dos Princípios Gerais de Direito, na qualidade de forma complementar do Direito Normativo, constitui um fato universal", e, se a legislação não faz expressa remissão à utilização deles, "a Doutrina se encarregou de dar a esses princípios fôros de regra obrigatória." [55]

Superado este particular, voltemos ao nosso ponto central. Como adverte o Prof. Celso Antônio Bandeira de Mello, "uma norma ou um princípio jurídico podem ser afrontados tanto à força aberta como à capucha. No primeiro caso expõe-se ousadamente à repulsa; no segundo, por ser mais sutil, não é menos censurável." [56] O que queremos salientar com esta passagem é que, nas entrelinhas, à "capucha", encontraremos no CTB ofensas à princípios constitucionais. Vejamos.


5. Princípio da proporcionalidade

Um dos mais graves problemas da ciência do Direito foi (e ainda hoje é) resolver casos onde uma lei formalmente perfeita revelava-se inadequada para solver uma lide. Ou porque o resultado de sua aplicação ofende o senso médio de justiça vigente, ou a sanção é demasiadamente rigorosa em face do caso concreto.

Com a influência de doutrina estrangeira, [57] surgiu em nossas letras jurídicas estudos sobre a possibilidade da não aplicação da norma injusta (no sentido de desproporcional), baseada em princípios constitucionais implícitos. Para evitar que possa administração, "sob o manto da legalidade, tornar-se arbitrária", [58] já que "nem tudo que é legal é constitucionalmente válido", [59] criou-se, entre outros, o mecanismo da "ponderação de bens". [60] Assim surgiu o princípio da proporcionalidade, [61] desenvolvido ainda mais após importantes julgados do Tribunal Constitucional Alemão.

Mas, segundo os doutores, foi a Suprema Corte Americana que deu início à construção deste princípio, [62] ao decidir que a legislação norte americana deveria estar sempre em "conformidade com os critérios do just and fair standarts, ajustando-se às idéias de razoabilidade e interdição à arbitrariedade." [63]

Sobre este instituto jurídico, Suzana de Toledo Barros asseverou: "... o principio da proporcionalidade ... tem fundamental importância na aferição da constitucionalidade de leis interventivas na esfera de liberdade humana, porque o legislador ... poderá editar leis consideradas inconstitucionais, bastando para tanto que intervenha no âmbito dos direitos com a adoção de cargas coativas maiores do que as exigíveis à sua efetividade". Deve o princípio servir para que as sanções sejam aplicadas "levando em conta uma igualdade proporcional", que exige do legislador "uma ponderação de resultados". [64] Exemplo disso se encontra na eloqüente frase de Jellinek: "não se deve usar canhões para matar pardais."

No tocante a penalidades administrativas, Fabio Medina Osório observou que "o Estado está sempre obrigado a respeitar o princípio máximo da proporcionalidade e o princípio de interdição à arbitrariedade", [65] pensamento que também é exposto por Régis de Oliveira, na conclusão de sua obra sobre sanções administrativas. [66] Manuel Guerra Reguera também sustenta a plena validade deste princípio na seara do direito administrativo sancionador. [67]

Sendo o fim do Estado um direito "fundamentalmente justo", [68] surge o princípio da proporcionalidade como um elemento (ferramenta) capaz de servir de esteio (fundamento) para um controle de "justicidade" ou "eticidade" das normas, possibilitando, por meio de um método comparativo de direitos fundamentais, retirar a eficácia de uma norma desarrazoada, sem o rompimento do ordenamento jurídico.

Para Eduardo García Enterría, os princípios, como o da proporcionalidade, devem ser utilizados por tribunais para afastar norma iníqua porque são "una condensación, a la vez, de los grandes valores jurídicos materiales que constituyen el substractum mismo del Ordinamiento y de la experiencia reiterada de la vida juridica. Pues bien, hay que afirmar que la Administración está sometida no sólo a la Ley, sino también a los principios generales de Derecho, y ello por una razón elemental, por que la Administración no es señor del Derecho, como puede pretender serlo." [69]

Tudo isto para justificar o que bem disse Tércio Sampaio Ferraz Jr. "o Direito deve ser justo ou não tem sentido a obrigação de respeitá-lo." [70] E é por isso que, para definir os contornos do princípio da proporcionalidade, é tão necessário trabalhar com noções de ética e justiça. A justiça e a proporcionalidade são elementos indissociáveis. Parece-nos instintivo que o justo deva ser proporcional. E a correlação entre os dois institutos é objeto de estudos desde a Grécia antiga. [71] Tanto que afirmou Aristóteles: "O justo é, por conseguinte, uma espécie de termo proporcional." [72]


6. A sanção de pontos, a penalidade de suspensão direta, e a proporcionalidade

Dito isso, é de salientar-se que uma lei que impõe sanção deve se ater a proporcionalidade entre o dano e a extensão da pena. [73] Em estudo relativo ao Direito Penal-Constitucional, Mauricio Antonio Ribeiro Lopes acentua que "o princípio da proporcionalidade exige que se faça um juízo de ponderação sobre a relação existente entre o bem que é lesionado ou posto em perigo (gravidade do fato) e o bem de que pode alguém ser privado (gravidade da pena). Toda vez que, nessa relação, houver um desequilíbrio acentuado, estabelece-se, em conseqüência, uma inaceitável desproporção." [74] A proporcionalidade entre dano e sanção é algo de intuitivo, preocupação de mestres de todas as searas jurídica, como, v.g., Carnelutti. [75]

Comentando as penas criminais previstas no CTB, Giovani Ferri observou incongruências que ferem a proporcionalidade. [76]Mutadis mutandis, o mesmo acontece com as infrações administrativas. No tocante as sanções administrativas houve exagero. Infrações meramente administrativas podem levar o cidadão a perder o direito de dirigir, medida de exagerada carga punitiva em face do dano social causado pela sua ação.

José María Quirós Lobo afirma que o princípio da proporcionalidade, no âmbito do direito administrativo sancionador, aparece (e deve aparecer) de dois modos: proporção abstrata, que sujeita o legislador a observar a equação conduta/penalidade no momento de criar o tipo sancionador, e proporcionalidade subjetiva, que sujeita o aplicador da norma a ponderar todas as circunstâncias concorrentes no momento de graduar a penalidade. [77] Ángeles de Palma del Teso, no mesmo sentido, afirma que "el principio general del Derecho de proporcionalidad mantiene una íntima relación con el Derecho punitivo", "ya que a su amparo tuvo lugar el proceso de racionalización de las penas," pois "la pena proporcional a la culpabilidad es la única pena útil." [78]

Da nossa exposição, gostaríamos de salientar que, se o legislador exagerar na dosagem da sanção, ferindo o princípio da proporcionalidade abstrata, pode o aplicador corrigir os excessos, utilizando-se do princípio da proporcionalidade subjetiva. Se houver, contudo, desvio de finalidade, pode o julgador anular o ato punitivo por completo. Por exemplo. Se o magistrado ou o julgador administrativo, verificar, baseado em provas e circunstâncias constantes no processo, e na situação subjetiva do apenado (já que a proporcionalidade deve ser aferida em face da culpabilidade, como nos ensina Ángeles del Teso [79]), que a penalidade dos pontos ou de suspensão direta é desmedida, pode afastá-la, mesmo se mantiver a sanção pecuniária. Contudo, se verificar que a penalidade desviou-se do fim punitivo (quando, por exemplo, serve apenas para enriquecer os cofres públicos), deve anular o ato infracional.

No tocante aos pontos, tal penalidade acessória é, em alguns casos, tremendamente injusta. Isto porque a maior fonte de injustiças do código de trânsito é não diferenciar infrações de trânsito propriamente ditas, das infrações administrativas previstas na legislação de trânsito.

Como asseverou Rizzato Nunes "os motoristas cometem diariamente infrações ditas de trânsito que não representam o mínimo perigo ou risco quer para o trânsito em si, quer para a segurança e integridade física das pessoas. (...) Ora, ainda que se admita que infrações desse tipo possam gerar a imposição de uma multa pecuniária, nada justifica que se imponha a perda ou a suspensão do direito de o motorista continuar dirigindo." [80]

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Um dos exemplos de infração que não pode gerar anotação de "pontos" no prontuário do motorista nos é dado por Gladston Mamede: a falta de pagamento da taxa, nos locais onde se encontra regulamentado o sistema rotativo de estacionamento. O Jurista mineiro esclarece que o mecanismo de pontos constitui "fenomenal inovação", mas vem sendo utilizado de "forma deturpada" pelas autoridades de trânsito, verbis: "Assim, para aqueles que deixam seus veículos nos chamados ‘estacionamentos rotativos’, multam-nos por estacionar seus veículos ‘em desacordo com as condições regulamentadas especificamente pela sinalização’ (art. 181, XVII, do CTB) e atribuem-lhes a perda de três pontos pelo cometimento de infração leve de trânsito. Trata-se, porém, de abuso de direito! Se observarmos com atenção, a área reservada ao estacionamento rotativo caracteriza-se como local de estacionamento permitido, ainda que o uso do espaço implique o pagamento de uma taxa ou de uma tarifa. ... De todo relevante observar que o estacionamento em tais áreas especiais, ainda que sem efetuar o pagamento da taxa ou da tarifa, o motorista em nada prejudica o trânsito; vale dizer: não há lesividade ao trânsito, nem ilícito de trânsito ... o motorista comete apenas um ilícito tributário, mas nunca uma infração de trânsito." [81]

Conclui-se, então, que aquele motorista que praticou fatos tidos como infração meramente administrativa sequer deveria sofrer imposição de pontos na CNH, uma vez que estas infrações não se relacionam de modo algum com o trânsito, ou com o modo com a pessoa se porta na condução do veículo. Ou que esses pontos não devem ser computados para a finalidade de suspender o direito de dirigir.

O que queremos reafirmar é que a penalidade além de ser proporcional, deve manter com o ato infracional uma relação lógica de causa-efeito, ou melhor dizendo, meio-fim. Não há argumentação que justifique a penalidade de suspensão do direito, por exemplo, a quem estacionou sem pagar a taxa de estacionamento rotativo. Segundo Larenz, no tocante à sanções, "tem eco a idéia de que o meio e o fim têm que estar numa relação adequada, que o prejuízo do bem jurídico protegido não deve ir mais além do que requer o fim aprovado." [82]

Carlos Ari Sundfeld ensina que "ao Estado de Direito não basta a submissão das autoridades públicas à lei – senão, é evidente, a superioridade da lei seria um fim em si. Fundamental que o sistema sirva à preservação da liberdade. Por isso a lei não pode tudo. A própria Constituição lhe prescreve limites: os direitos individuais (...) os quais hão de ser preservados, ainda quando o legislador preferisse suprimi-los (...) O legislador não pode cultivar o prazer do poder pelo poder, isto é, constranger os indivíduos sem que tal constrangimento seja teleologicamente orientado. O princípio da mínima intervenção estatal na vida privada exige, portanto, que: a) todo condicionamento esteja ligado a uma finalidade pública ... b) a finalidade ensejadora da limitação seja real concreta e poderosa; c) a interferência estatal guarde relação de equilíbrio com a inalienabilidade dos direitos individuais; e d) não seja atingido o conteúdo essencial de algum direito fundamental." [83]

Outra não foi a conclusão dos magistrados que integraram o "Grupo de Estudos da Justiça Federal de Primeira Instância" (Curitiba/PR, abril 96). A ementa da conclusão ficou assim redigida: "O princípio da proporcionalidade é um desenvolvimento do princípio do Estado de Direito. Significa ele, em termos simples, que o Estado, para atingir os seus fins, deve usar só dos meios adequados a esses fins e, dentre os meios adequados, só aqueles que sejam menos onerosos ao cidadão." [84]

Quando à penalidade de "suspensão direta" do direito de dirigir, cabe evocar também o princípio da proporcionalidade para, em alguns casos, afastar esta severa sanção. Apesar de algumas dessas infrações serem realmente danosas, como a conhecida por "racha" (CTB, art. 173), ou a de dirigir sob a influência de álcool ou entorpecentes (CTB, art. 165) [85], temos para nós que, na maioria das outras infrações, o legislador infraconstitucional exagerou.

Hoje, o direito de dirigir, é fundamental para realização da maioria das atividades do homem moderno. O Des. Nagib Slaibi Filho, desenvolvendo raciocínio insofismável, comprova que em nossos dias "o direito de transitar nas vias terrestres, nos termos da lei, integra-se no direito de cidadania, posto como princípio fundamental do Estado Democrático de Direito (Constituição, art. 1º)." [86] Dos profissionais mais gabaritados aos mais humildes, todos necessitam de seus veículos para bem desempenhar seus relevantes serviços à sociedade. E nesta lida diária com compromissos variados e tempo escasso, todos estão sujeitos a, aqui e ali, cometerem infrações.

Não defendemos aqui a impunidade, e a conseqüente selvageria. Defendemos que as penas sejam justas, atingindo sua finalidade educativa, e que não se traduzam em meio de destruição da vida profissional dos cidadãos. Em suma: "Faça-se justiça; porém salve-se o mundo e o homem de bem que no mesmo se agita, labora, produz." [87]

Mas a aplicação do princípio da proporcionalidade deve ser bem pesada pela autoridade provocada a manifestar-se sobre o caso, sob pena de tornar-se argumentação vazia de conteúdo, utilizada como mera cláusula de estilo, para afastar qualquer tipo de sanção, inclusive as justas e merecidas.

A lei possui papel importantíssimo e é certo que, ao afastar sua aplicação, cria-se uma certa ruptura do ordenamento. Como bem defenderam os jusnaturalistas e os positivistas, [88] a lei é garantia de segurança jurídica. Mas, esta busca de segurança jurídica não pode converter-se em obsessão, uma vez que a lei não abarca todo o Direito. [89] E, tão pouco, um dispositivo legal pode ser encarado isoladamente, sem que se leve em conta o restante do ordenamento jurídico, em especial as regras contidas na constituição. [90]

Já é clássica a magistral lição de Carlos Maximiliano de que "o Direito é um meio para atingir fins colimados pelo homem em atividade; a sua função é eminentemente social, construtora; logo não mais prevalece o seu papel antigo de entidade cega, indiferente às ruínas que inconscientemente ou conscientemente possa espalhar." [91]

Ao apenar o motorista que ultrapassa uma única vez o limite de velocidade com a suspensão do direito de dirigir, o CTB interfere de maneira abusiva em direitos fundamentais, como o direito de locomoção, o direito de exercício profissional. Trata-se de penalidade desmedida, que se desvia da finalidade a que se destina, que não salva nem o mundo e nem o homem, parafraseando as elegantes palavras de Maximiliano.

Suzana de Toledo Barros traça um roteiro interessante, para verificar se a restrição (pena) atende ao princípio da proporcionalidade, que trazemos a colação: "A relação entre carga de restrição [penalidade] e os resultados para o atingido bem devem ser sopesados, de maneira a garantir uma medida, senão a mais justa, ao menos que não seja injusta. Procurar-se-á, portanto, examinar se o legislador não adotou cargas coativas desmedidas, desajustadas ou excessivas, ocasião em que poderá ser utilizado o conceito de ‘núcleo essencial’." [92]

E, até o critério estabelecido pelo CTB para as infrações que levam a pena de suspensão direta é estranho. Por exemplo, ultrapassar semáforo fechado – a chamada "roleta russa" – é algo de mais perigoso que se pode fazer no trânsito, uma vez que as pessoas confiam que ninguém lhes cruzará o caminho. Contudo, a esta infração, não está prevista a penalidade de suspensão direta (art. 208).

No particular caso do art. 218, inc. I alínea ‘b’ e art. 218, inc. II alínea ‘b’ (suspensão direta do direito de dirigir por excesso de velocidade), temos por convicção que houve exagero por parte do legislador. É certo que motoristas imprudentes e reincidentes, que habitualmente dirigem em excesso de velocidade merecem penas gravíssimas, e até a suspensão do direito de dirigir, ou mesmo a cassação deste direito. Mas aquele que sequer colocou em risco o bem jurídico protegido, ou, o fê-lo por apenas uma vez, não merece penalidade tão gravosa, que lhe restringe exageradamente um direito fundamental.

Aliás, sobre a questão estrita do limite de velocidade, os administradores não chegaram a um consenso ainda. De canetada a canetada mudam-se os limites nas vias, de maneira que, a velocidade que hoje causa perda do direito de dirigir, amanhã pode ser a tolerada como limite máximo. Além disso, os radares – colocados, muitas vezes de maneira sub-reptícia – convertem-se, muitas vezes em meras máquinas de arrecadação. Não raramente o motorista é surpreendido com uma mudança brusca do limite de velocidade da via, e justamente ali é instalado um desses famigerados equipamentos. A malfada MP 75/02, que tentou por fim ao abuso na utilização de radares, não foi aprovada no Congresso Nacional graças a um poderoso lobby de administradores públicos que os utilizam em flagrante desvio de finalidade.

O que se dizer da perda do direito de dirigir pelo fato de não se auxiliar a autoridade policial na feitura de boletim de ocorrência (CTB, art. 176). Parece-nos que a norma fere o princípio nemo tenetur sine deterege, uma vez que o infrator pode prejudicar sua defesa, ao auxiliar a autoridade confeccionar algum documento sobre o ato dito por infrator. Ninguém está obrigado a produzir prova contra si, e nem auxiliar autoridade neste mister (CF/88, art. 5º, inc. LXIII).

E trafegar de motocicleta, em plena luz do dia, com os faróis apagados (art. 244); sequer podemos taxar esta conduta como imprudente! A penalidade prevista é demasiadamente grave, em relação ao que visa proteger, e, que na realidade sequer pune. Destrói! Milhares de brasileiros utilizam-se de suas motocicletas para prover sua subsistência (motoboys). Apenar os infratores de maneira tão drástica é ameaçar-lhes a subsistência, ou pior, empurrá-los a marginalidade, obrigá-los a trafegar sem habilitação e, aí sim, colocar em risco toda a sociedade.

Como bem disse Sundfeld, o regramento da vida humana pelo Estado deve ser pautado pelo respeito a princípios, e entre eles o da racionalidade e da razoabilidade. [93]

Não se pode esperar de alguém que dependa de seu veículo (e, conseqüentemente, da habilitação) para viver, deixe de realizar suas atividades em face da suspensão do direito de dirigir. Muitos continuarão trafegando, e, para encobrir sua condição irregular, provavelmente cometerão mais e mais ilícitos. Muitos o farão estimulados pela absoluta falta de presença do Estado na fiscalização do trânsito.

E é por isso estas penalidades ferem o sentimento médio de justiça, valor constitucionalmente eleito (CF, art. 3º , inc. I), sendo, então, inaplicáveis. Juarez Freitas, em estudo já clássico entre nós, asseverou que o jurista "sem sucumbir aos arroubos de um Direito livre, deve compreender que a única forma de ser fiel a uma norma iníqua é não aplicá-la, pois esta é a sua correta aplicação. E mais: toda norma injusta, por contrariar os princípios de justiça, esculpidos no topo do ordenamento jurídico, é, substancialmente e manifestamente, inconstitucional." [94]

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Sobre o autor
Márcio Manoel Maidame

Advogado. Mestre pela FADISP. Especialista pela PUC/SP. Professor e Coordenador do Curso de Direito da Faculdades Atibaia (FAAT).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MAIDAME, Márcio Manoel. O Código de Trânsito Brasileiro à luz dos princípios do direito sancionador. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2175, 15 jun. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12974. Acesso em: 17 abr. 2024.

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