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O Código de Trânsito Brasileiro à luz dos princípios do direito sancionador

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15/06/2009 às 00:00
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9. Infração de trânsito e prescrição

Como toda penalidade, as multas de trânsito também prescrevem. O fundamento jurídico da prescrição é, entre outros, a segurança jurídica. [114] Como disse Celso Bastos, o direito não prestigia a negligência. [115] A máquina estatal punitiva deve perseguir os infratores dentro de um tempo razoável, ou a penalidade perde o caráter educacional, tornando-se mera vingança.

No âmbito do direito punitivo, outra não é a lição dos mestres. [116] Mirabete diz que, com o decurso do tempo, acontece o "desaparecimento do interesse estatal na repressão do crime, que leva ao esquecimento do delito e à superação do alarma social causado pela infração penal. Além disso a sanção perde sua finalidade quando o infrator não reincide e se readapta a vida social." [117]

Como não há expressa disposição na nova lei de trânsito sobre prescrição, poder-se-ia objetar que, no tocante as infrações de trânsito, dever-se-ia respeitar a norma geral do Código Civil, ou seja, a prescrição vintenária.

Como já dissemos, o art. 314 do atual CTB recepcionou as antigas resoluções e portarias que regulavam o trânsito, desde que não contrariasse a novel legislação. Então, a prescrição das infrações de trânsito está hoje regulada pela Resolução do Contran 812/96. Esta norma regula a prescrição de acordo com a gravidade do ato e das sanções cominadas. Absurdo outro entendimento, mormente o que defende a prescrição geral, de vinte anos.

Mantendo-se este raciocínio – da Resolução 812/96 [118] –, temos que, para as infrações leves e médias (art. 259, incs. III e IV), a prescrição é de 1 ano; Para as infrações graves (art. 259, inc. II), a prescrição é de dois anos; E para as infrações gravíssimas (art. 259, inc. I), a prescrição é de três anos. Para as infrações cuja penalidade é a de "suspensão direta", [119] a prescrição é de quatro anos (Resolução Contran 812/96, art. 1º, inc. II). As infrações administrativas de trânsito que prescrevem a penalidade de cassação do direito de dirigir prescrevem em cinco anos (inc. III).

O prazo de início da prescrição é a data do fato tido como contrário à lei de trânsito, e a causa de interrupção de prescrição é a notificação para a interposição do recurso administrativo. A interrupção deverá ser devidamente documentada (Resolução Contran 812/96, art. 1º, § 1º).

A via do executivo fiscal, para a cobrança da multa pecuniária, tem prescrição diferenciada. Pelo art. 3º desta Resolução, de acordo com a natureza da pena: a prescrição ocorre da seguinte forma: Nas penalidades de advertências, em um ano (inc. I); nas de multa, em três anos (inc. II); Nas de apreensão de CNH, com suspensão do direito de dirigir, em 4 (quatro) anos; IV - nas cassações de CNH, com 5 (cinco) anos.

Nada impede o reconhecimento da prescrição intercorrente, se interposto recurso administrativo, o processo não for julgado dentro dos prazos considerados pela Resolução 812/96.

Mesmo que se entenda que não se aplica às atuais infrações de trânsito a portaria 812/96 do Contran, em hipótese nenhuma a prescrição das multas de trânsito pode ultrapassar os cinco anos, em respeito tanto ao Decreto 20.910/32 quanto ao art. 54 da Lei 9.784/99. [120]


10. Conclusão

O ramo da ciência do direito que visa estudar a aplicação de sanções não penais pelo Estado é o direito administrativo sancionador, que, para a exegese destes atos punitivos, tempera elementos e institutos do Direito Penal, tendo em vista a unidade do jus puniendi do Estado, sem se desvincular, ou renegar que há características peculiares deste tipo de medida aflitiva.

Obviamente, toda a ciência e aplicação do direito deve levar em conta a supremacia das normas e princípios constitucionais: Assim, são plenamente eficazes, no âmbito do direito administrativo sancionador, princípios constitucionais como o da proporcionalidade e razoabilidade das leis restritivas de direitos fundamentais.

O direito ao trânsito seguro é direito fundamental, integrando os direitos de cidadania, vitais para o pleno desenvolvimento do cidadão perante a sociedade. Assim, restrição a este direito deve ser proporcional e razoável, sob pena de esbarrar no vício da inconstitucionalidade.

Uma das maiores falhas da legislação de trânsito brasileira é não diferenciar infrações meramente administrativas das infrações de trânsito propriamente ditas. Este fato causa distorções no momento de aplicação de algumas as penalidades previstas na lei de trânsito, que devem ser declaradas inconstitucionais, por ferir concomitantemente os princípios da igualdade, individualidade da pena, proporcionalidade e razoabilidade.

O Estado, como criação cultural, só se justifica quando tem por fim a justiça e a ética. O Estado Brasileiro, eminentemente ético e moral, tem como fins supremos a justiça, a igualdade, a dignidade da pessoa humana, a valorização do trabalho e a livre iniciativa, e algumas das penalidades do Código de Trânsito ferem estes fins.

Os tribunais administrativos e as autoridades de trânsito têm autonomia (dada pela Constituição) de declarar como causa de pedir (incidentalmente) lei inconstitucional, e para tal mister, aplicar os princípios constitucionais (por exemplo, da proporcionalidade).

O Estado brasileiro não tem investido na melhoria das condições de tráfego, não se submetendo às leis de trânsito na mesma proporção que a impõe aos cidadãos. Utiliza a lei de trânsito como mais uma fonte de arrecadação, caracterizando, em algumas das leis e regulamentos que edita, desvio de finalidade, quando prioriza a arrecadação em face dos verdadeiros fins colimados pelo CTB.

A falta de segurança generalizada leva os motoristas a dirigir de maneira "anormal", e as infrações cometidas nestas circunstâncias, onde para respeitar a lei de trânsito o motorista arrisca a si ou à sua família, não devem subsistir, pelo fato de que inexigível conduta diversa.

A responsabilidade por infração de trânsito é intransferível, por respeito ao princípio constitucional da pessoalidade da pena, não se travestindo em obrigação propter rem. Somente há responsabilidade subsidiária entre autor da infração e o proprietário do veículo se este último violar a norma, e não informar o condutor infrator.

É inconstitucional a Resolução do Contran 108/99.

Em havendo desrespeito ao devido processo legal, as penalidades são nulas. Existe uma relação de prejudicialidade entre o processo administrativo de imposição de multa de trânsito e o conseqüente processo de imposição da penalidade de suspensão ou de cassação do direito de dirigir.

A penalidade de suspensão do direito de dirigir (tanto a originada pelos vinte pontos, quanto a originada por infrações que cominam a "suspensão direta") decorre de uma infração de trânsito que lhe é anterior. Logo, esta penalidade não pode ser aplicada antes da decisão final no processo administrativo que apura esta infração.

A exigência de pagamento da multa para o recurso em segunda instância administrativa fere a garantia de ampla defesa, tendo em vista o Pacto de San José da Costa Rica, que garante aos acusados o direito de defesa e recurso à autoridade superior.

O recurso administrativo, ultrapassado trinta dias, sempre receberá efeito suspensivo, sendo inexigível, no momento do licenciamento, o pagamento de infrações sobre as quais ainda penda julgamento na seara administrativa.

Os "pontos" relativos a infrações meramente administrativas ferem princípios constitucionais como o da individualização da pena, da proporcionalidade e da igualdade e da racionalidade, pois não há relação lógica e sustentável entre o ato tido como lesivo à ordem jurídica, e a penalidade que poderá ser imposta ao infrator.

Da mesma maneira, a penalidade de "suspensão direta" do direito de dirigir, na maioria dos casos por nós estudados, fere os mesmos princípios, por se tratar de pena gravíssima, que deveria ser reservada a atos de efetiva lesão aos bens juridicamente protegidos pelo CTB, tendo em vista a agressiva restrição ao direito fundamental de trânsito.

Ambas as penalidades (a dos pontos e a de suspensão direta) ferem o princípio da igualdade, posto que os condutores de veículos que estejam em nome de pessoa não habilitada ou em nome de pessoa jurídica, não sofrem os efeitos dessas sanções.

A prescrição das sanções administrativas de trânsito não segue a regra geral vintenária, devendo-se aplicar a Resolução Contran 812/96.

Enfim. Estas penalidades ou evoluem, ou devem ser banidas, pois são incapazes de atingir o fim colimado. Rogamos às autoridades legislativas que em breve reformem a sistemática dos "pontos" no CTB, porque afrontam vários dos cânones constitucionais. E aos Juízes e Tribunais pátrios, rogamos sejam sensíveis a estas incongruências da legislação de trânsito, para garantir aos jurisdicionados o acesso ao trânsito, quando afrontados em seus direitos, por penalidades injustas e desiguais, como as que aqui descrevemos.


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Sobre o autor
Márcio Manoel Maidame

Advogado. Mestre pela FADISP. Especialista pela PUC/SP. Professor e Coordenador do Curso de Direito da Faculdades Atibaia (FAAT).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MAIDAME, Márcio Manoel. O Código de Trânsito Brasileiro à luz dos princípios do direito sancionador. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2175, 15 jun. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12974. Acesso em: 25 abr. 2024.

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