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Acidente de trabalho e riscos psicossociais

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5. O suicídio do trabalhador como acidente de trabalho.

Qualquer dos riscos psicossociais podem, lamentavelmente, resultar no suicídio do trabalhador, o que nos leva à questão se seria possível qualificar o suicídio como acidente do trabalho. Um poderoso argumento em contrário é considerar a ruptura do nexo causal em virtude de um ato de auto-lesão que, como ato doloso, está excluído do enquadramento como acidente de trabalho, conforme letra "b" do apartado 4 do artigo 115 da lei geral de seguridade social espanhola. Entretanto, não se pode equiparar o suicídio a um ato doloso. Ainda que a liberdade esteja submetida a determinismos, um ato doloso é sempre voluntário – ou essencialmente voluntário, ao prevalecer a vontade sobre os determinismos. Já, no suicídio, a vontade, como faculdade mental ligada à vida, foi submetida – diga-se redundantemente – a determinismos determinantes de uma intenção suicida, destruidora da vida e da própria vontade. Talvez estas razões ontológicas tenham levado a jurisprudência alemã a entender que a intenção de suicidar-se é um ato não voluntário, não rompendo, em suma, o nexo causal.

Também é comum argumentar-se contra a qualificação do suicídio como acidente de trabalho mencionando a possibilidade de fraude, pois quem já estivesse decidido a suicidar-se o faria em local e horário de trabalho para favorecer os beneficiários da pensão por morte. Tal possibilidade dificulta, no caso do suicídio, a aplicação da presunção de que infortúnios ocorridos no local e horário de trabalho sejam acidentes de trabalho (artigo 115, inciso 3º da Lei Geral de Seguridade Social), mas não de todo, pois assim deveria ser considerado um suicídio em que estivesse descartada a hipótese de intenção fraudulenta. Diga-se, a propósito, que, em princípio, a má fé não se presume. Muitas são as sentenças onde se alude à questão do suicídio, ainda que, em bom número, decidam em contrário à pretensão de enquadramento do suicídio como acidente laboral. O Tribunal Supremo, em antigas sentenças de 28/01/1969 e de 29/10/1970 (citada na de 15/12/1972), não reconheceu tal enquadramento, ainda que não negasse, de maneira geral, a possibilidade de qualificar o suicídio como acidente de trabalho em casos diferentes. Assim, ocorreu em suas posteriores sentenças de 12/1/1978 e de 16/11/1983, as quais qualificaram com de trabalho o suicídio do trabalhador em conseqüência de enfermidade mental derivada de um acidente do trabalho.

As citações judiciais podem ser atualizadas com a mais moderna jurisprudência, em que aparecem sentenças que reconhecem a qualificação do suicídio como acidente de trabalho. Há duas significativas:

Uma, do Tribunal Superior de Catalunha, de 30/5/2003, considerou acidente de trabalho o suicídio de um trabalhador "que de chefe de seção passou a controlar uma máquina cujo manejo desconhecia...o que foi entendido pelo trabalhador como uma situação vexatória, dado que, no posto anterior, tinha certas responsabilidades, que, para uma homem como o autor que apenas saiba ler e escrever, era fundamental para afirmação de sua personalidade laboral e para o reconhecimento empresarial de seu trabalho. Segundo próprias palavras do falecido, era uma pessoa ordenada em excesso, com maior dedicação do que exigia o trabalho; não folgava os feriados a que legalmente tinha direito, porque, para ele, o trabalho vinha sempre em primeiro lugar; trabalhava já há 35 anos na empresa e acreditava que a empresa o apoiaria. Havia passado a uma situação de menosprezo ou vexame a partir do momento em que perdeu toda responsabilidade e teve até de aprender com colegas que, antes, eram seus subordinados como utilizar o computador incorporado à máquina que lhe foi destinada; nesse novo posto não se sentia produtivo ... situação depressiva (que) não melhorou ante à falta de alternativas viáveis para o trabalhador – descartou o assessoramento sindical e o enfrentamento com a empresa por temer prejudicar suas filhas, também nela empregadas -, mas, ao contrário, se transformou em uma depressão maior quando passou a suspeitar que a empresa, na verdade, queria que ele antecipasse sua aposentadoria. Tão grave situação concluiu com a auto-agressão como forma de resolver o conflito que a decisão empresarial havia produzido em seu cérebro" Trata-se de um caso do chamado "tecnostress".

Outra decisão do Tribunal Superior de Galícia, de 04/04/2003, considerou acidente de trabalho o suicídio de um trabalhador uma vez que "desde oito dias antes do suicídio o trabalhador havia comentado que não era dono de si (e) que em casa algo estava acontecendo; havia deixado de se alimentar, mais ainda assim teve de seguir trabalhando, fazendo rondas, o que implicava uma acumulação de "stress" laboral; no mesmo dia do acidente tentou infrutiferamente comunicar-se telefonicamente com seu domicílio; e a acumulação de todos estes fatores pessoais e laborais conjuntamente com o padecimento, influenciaram de forma decisiva para o desenlace autolítico, pelo que dito desenlace tem uma conexão causal com o trabalho".


6. Riscos psicossociais e prevenção de riscos.

Se as conseqüências de um assédio moral, sexual ou de gênero ou de um "stress" laboral são acidente de trabalho e se a prevenção dos acidentes de trabalho é uma obrigação do empresário – é a denominada dívida de seguridade – a conclusão evidente é a existência de uma obrigação do empresário em prevenir os riscos psicossociais. É de se notar que os riscos psicossociais, talvez por conta do menor avanço científico no âmbito da saúde psíquica, encontram algumas dificuldades para alcançar uma adequada concreção de medidas preventivas. Não é difícil observar como a doutrina científica costuma acudir a medidas gerais para a prevenção dos riscos psicossociais, como evitar a excessiva hierarquização, criar canais de comunicação ou melhorar as relações humanas na empresa. São medidas que, por sua generalidade, correm o risco de ser ineficazes.

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Mais concreção se aprecia em propostas de atuação que decorrem de uma denúncia de assédio moral, quer dizer, não previamente ao ato de violência, mas sim, em uma atuação posterior. O empregador está obrigado a tratar a denuncia de maneira confidencial, séria e sem represálias contra quem denuncia, adotando, depois de colher as informações oportunas, as medidas que, no caso concreto, sejam razoáveis. Em caso de demonstrado o assédio moral, deverá ser imposto ao assediador a sanção disciplinar adequada e a vítima deverá ser apoiada em sua recuperação. Deste modo, não somente se reparam as conseqüências do ato violento, senão que, além disso, transmite-se uma mensagem de que o assédio não ficará impune.

Com respeito ao assédio sexual, tem-se adotado medidas mais específicas de prevenção, como 1) a publicação de uma declaração de princípios onde se comprometa o empregador a manter "tolerância zero" com o assédio sexual; 2) o estabelecimento de um procedimento informal de solução a instruído por um (a) assessor (a) confidencial; 3) a tipificação das infrações disciplinares aplicáveis em casos de assédio sexual.

Não pretendemos entrar em detalhes mais particulares, o que obrigaria a um estudo mais aprofundado da prevenção dos riscos psicossociais. O que se pretende é deixar claro que, ainda que sua concreção, atualmente, esteja longe do desejável, o empresário possui uma dívida de seguridade ante os riscos psicossociais. Uma dívida de seguridade cujo não cumprimento pode gerar oportunas conseqüências jurídicas. Deste modo, a adoção de medidas de prevenção do assédio sexual e o adequado tratamento da denúncia da vítima podem exonerar a empresa da responsabilidade indenizatória por perdas e danos que, em caso diverso, poderia recair sobre a empresa em eventual ação de responsabilidade civil, mesmo no caso que o assediador não seja diretamente o empresário, respondendo este por culpa "in eligendo" ou "in vigilando".

Um exemplo judicial deste modo de argumentar é uma Sentença de 24/7/2003 do Tribunal Superior de Justiça de Andaluzia, onde se confirma a condenação da empresa em indenizar o trabalhador no valor de 6.000 euros por um assédio sexual de um companheiro de trabalho porque "a empresa não adotou medida alguma para pôr fim ao assédio que lhe era denunciado... pelo que essa atitude passiva ... em relação à conduta ilícita do empregado co-réu leva consigo a responsabilidade solidária da empresa".


Notas

  1. O texto original usa a expressão "acidente de trabalho" , referindo-se às enfermidades decorrentes de assédio moral ocorrido no ambiente de trabalho, ressaltando sua natureza trabalhista e previdenciária. Na legislação espanhola, tal como na brasileira, a doença profissional se equipara a acidente de trabalho.
  2. Nem em português (nota do tradutor).
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Sobre o autor
José Fernando Lousada Arochena

Magistrado no Tribunal Superior da Galícia, La Coruña (Espanha)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AROCHENA, José Fernando Lousada. Acidente de trabalho e riscos psicossociais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2180, 20 jun. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13019. Acesso em: 30 abr. 2024.

Mais informações

Tradução de Luiz Alberto de Vargas, Juiz do Trabalho no Rio Grande do Sul.

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