Artigo Destaque dos editores

A fixação da taxa de juros e o Código de Defesa do Consumidor.

O importante papel desempenhado pelas instituições financeiras no âmbito do Sistema Financeiro Nacional

10/11/2009 às 00:00
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É firme o entendimento do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que as instituições financeiras [01] estão submetidas às disposições do Código de Defesa do Consumidor. [02] Com efeito, nos contratos firmados entre essas instituições e seus clientes, a relação de consumo está perfeitamente caracterizada, notadamente quando se toma em conta que as primeiras prestam serviços aos segundos, os quais correspondem aos consumidores finais de tais serviços.

A respeito do assunto, indispensável a transcrição de alguns dos preceitos da legislação consumerista (Lei n. 8.078/90), os quais bem definem os elementos necessários à configuração da relação de consumo; são eles:

Art. 2.º Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.

Art. 3.º Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.

§ 1.º Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial.

§ 2.º Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.

Pois bem, conforme brevemente referido acima, o que denota haver uma relação de consumo nos contratos firmados entre as instituições financeiras e seus clientes reside no fato de haver um fornecedor (um banco, por exemplo) que presta serviços de natureza bancária, financeira, de crédito ou securitária a um consumidor final desses mesmos serviços. Sobre a questão, bastante elucidativo o voto proferido pelo Ministro Ruy Rosado de Aguiar no Recurso Especial n. 57.974/RS, do qual se destaca o seguinte trecho, in litteris:

O recorrente, como instituição bancária, está submetido às disposições do Código de Defesa do Consumidor, não porque ele seja fornecedor de um produto, mas porque presta um serviço consumido pelo cliente, que é o consumidor final desses serviços, e seus direitos devem ser igualmente protegidos como o de qualquer outro, especialmente porque nas relações bancárias há difusa utilização de contratos de massa e onde, com mais evidência, surge a desigualdade de forças e a vulnerabilidade do usuário. [03]

Compreendido que a relação cliente – instituição financeira constitui uma relação de consumo, resta saber se essa relação é idêntica, para efeito de proteção individual do consumidor, às demais relações de consumo, aquelas estabelecidas entre consumidor e fornecedor de outras atividades que não as de natureza bancária.

Dito de forma mais clara, e já passando ao tema central deste ensaio, o que se pretende investigar é se as disposições do Código de Defesa do Consumidor – aplicáveis, em regra, aos bancos – podem, também, ser invocadas para o controle das taxas de juros, questão bastante atual e que merece atenção especial de nossa parte, mormente quando se toma em conta não serem poucas as lides entre consumidores e instituições financeiras envolvendo a discussão de cláusulas contratuais de empréstimo, em particular, cláusulas ligadas à fixação de juros.

De início, convém esclarecer que a questão comporta discussões, daí por que serão apresentadas duas interpretações sobre ela, ressaltando, na parte final deste trabalho, o entendimento majoritário do Supremo Tribunal Federal acerca da matéria.

A primeira dessas interpretações aparece, ainda que de forma sucinta, na passagem do voto exarado pelo Min. Ruy Rosado Aguiar – acima transcrita – e pode ser sintetizada nos seguintes termos: o consumidor de serviços bancários deve ter seus direitos protegidos como o de qualquer outro consumidor, sobretudo quando se leva em conta ser muito comum, nas relações bancárias, a utilização de contratos de massa, além de estar configurada mais claramente a desigualdade de forças e a vulnerabilidade do cliente.

Roberto Augusto Castellanos Pfeiffer não somente adere a esse entendimento, como vai além, ponderando que "[...] as disposições do CDC são plenamente aplicáveis a todas as relações de consumo, inclusive aos serviços prestados pelas entidades do Sistema Financeiro Nacional" [04] (grifo nosso).

No julgamento dos Embargos de Declaração na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2.591/DF [05] – que será objeto de sucinta análise mais adiante –, o Ministro Carlos Britto também externou opinião no sentido da aplicabilidade da legislação consumerista como forma de controle das taxas de juros, e isso porque, quando o § 2.º do art. 3.º do CDC dispõe que "serviço" engloba as atividades de natureza bancária, financeira e de crédito, em tais atividades também estaria incluída a de estipulação de juros. Na expressão de S. Excelência:

[...] atividade bancária e financeira e de crédito é evidente que incorpora composição de taxa de juros. O Código de Defesa do Consumidor não precisaria dizer: "composição da taxa de juros". Isso já está embutido, logicamente, ao falar de atividade bancária, financeira e de crédito.

[...]

Ora, os bancos existem pra isso, pra fazer essa intermediação financeira. E excluí-los da aplicabilidade, da abrangência, da proteção do Código do Consumidor é deixar sem sentido todo o Código de Defesa do Consumidor e os artigos 5.º, XXXII, e 170, XV [sic], da CF.

De outra banda, para uma segunda corrente de pensamento, embora o cliente de uma instituição financeira seja, de fato, um consumidor e mereça proteção do ordenamento jurídico, essa proteção não pode ser idêntica àquela que recebem os consumidores dos demais bens e serviços.

Para os que defendem essa tese, os fornecedores de serviços financeiros diferenciam-se, em larga medida, dos outros fornecedores de bens e serviços, na medida em que prestam três papéis fundamentais para a economia do país, quais sejam: criação, administração e circulação da moeda por meio do crédito; captação e guarda da poupança financeira; e processamento dos meios de pagamento. [06] Em outras palavras, a atividade desenvolvida pelas instituições financeiras, apesar de possuir natureza privada, reflete, também, um interesse de toda a sociedade (interesse no bom funcionamento da moeda, da poupança e do crédito), o que poderia ensejar relativa mitigação da proteção individual do consumidor.

Haveria, então, uma colisão de dois princípios enxertados na Constituição da República, a saber, o da defesa do consumidor (art. 5.º, XXXII; e art. 170, V) e o da adequada condução do Sistema Financeiro Nacional, que deve promover o desenvolvimento equilibrado do país, além de servir aos interesses da coletividade em todas as partes que o compõem (arts. 21, VII; 22, VII; e 192). [07]

Como toda colisão de valores e princípios, a acima referida exigiria, para sua resolução, um balanceamento dos princípios colidentes [08], o qual promovesse um deles, interferindo, contudo, o minimamente necessário no outro.

Transpondo essa compreensão para a suposta colisão sub examine – entre o princípio da defesa do consumidor e o da estruturação e funcionamento do SFN –, deveria prevalecer o segundo, sob pena de a economia nacional entrar em colapso, o que não significa, deve-se frisar, a completa eliminação da proteção do cliente das instituições financeiras. Como oportunamente destacou Marcos Cavalcante de Oliveira: "o consumidor tem de ser tutelado até o limite em que a sua defesa, em uma relação específica, possa comprometer a tutela dos interesses de todos os demais que contrataram ou poderiam vir a contratar com as instituições financeiras". [09]

Acrescenta Cavalcante de Oliveira que, embora tenha sido reconhecida a relevância de ambos os princípios, a Carta Política impôs mecanismos distintos para a materialização de cada um eles: a defesa do consumidor, como um valor da ordem econômica, efetiva-se mediante lei ordinária, tanto que o inciso XXXII do art. 5.º da CF/88 dispõe que "o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor"; no tocante à estrutura e ao funcionamento do SFN, eles exercem finalidades específicas dentro da ordem financeira, exigindo leis complementares para sua regulamentação.

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O autor termina, então, o seu raciocínio, destacando que, se o próprio legislador constituinte separou o que é ordem econômica daquilo que constitui a ordem financeira, não pode o legislador ordinário confundi-las. Daí por que a expressão "inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária", inserta no § 2.º do art. 3.º do CDC, mereceria uma interpretação conforme à Constituição, a qual afastasse a exegese de que, na referida expressão, estariam incluídas as operações tipicamente bancárias, assim entendidas aquelas submetidas ao regime da Lei n. 4.595/64, tais como a disciplina da política cambial e as matérias relativas ao crédito e às taxas de juros.

A nosso sentir, o entendimento externado acima está correto quando afirma a existência de dois regimes jurídicos paralelos: de um lado, a regulação das relações de consumo, feita mediante legislação de índole ordinária, o CDC; de outro, a disciplina da estrutura e do funcionamento do sistema financeiro nacional, a exigir lei complementar [10].

Agora, exatamente porque se reconhecem esses dois regimes jurídicos distintos, não parece razoável a assertiva de que exista uma tensão, especialmente quando se fala em juros, entre o princípio da proteção do consumidor – materializado no Código de Defesa do Consumidor – e o da estruturação e funcionamento do SFN. E isso, pelo simples motivo de que a Lei n. 8.078/90 não dispõe sobre a estipulação de juros, nem poderia fazê-lo, haja vista estar a matéria reservada à lei complementar (art. 192 da CF/88) [11].

Bem percebeu a questão o Ministro Joaquim Barbosa, que, ao julgar os embargos declaratórios opostos ao acórdão proferido na ADI n. 2.591/DF, fez a seguinte anotação:

Com efeito, entendo que os denominadores comuns a que chegou a orientação majoritária da Corte se reportam à inexistência de conflito apriorístico entre o Código do Consumidor e a Constituição Federal, porquanto a Lei 8.078/1990 não versa expressamente sobre estipulação de juros, e é possível conceber a existência de um âmbito próprio das relações de consumo aplicável às instituições financeiras e seus clientes. (grifo nosso)

Dito em outros termos, a Lei n. 8.078/90, que materializa a defesa do consumidor, tal como pretendeu o legislador constituinte (arts. 5.º, XXXII; e 170, V), não colide com o princípio da adequada condução do SFN (art. 192), exatamente porque a referida lei – de natureza ordinária, vale a pena repisar – não dispõe sobre as operações que estão submetidas à Lei n. 4.595/64, nas quais se inclui a de fixação da taxa de juros, da competência do Conselho Monetário Nacional.

Tanto é assim que o Supremo Tribunal Federal julgou a indigitada ação direta de inconstitucionalidade totalmente improcedente, não aplicando, portanto, a técnica de interpretação conforme, tal como havia sido postulado pela requerente, Confederação Nacional do Sistema Financeiro – Consif.

Como se sabe, a técnica de interpretação conforme, que implica o reconhecimento parcial do pedido, pressupõe que a norma questionada (in casu, art. 3.º, § 2.º, do CDC) seja equívoca, o que não ocorreu na hipótese em comento. Aqui, o dispositivo da legislação consumerista não contraria o texto constitucional pelo simples motivo de o Código de Defesa do Consumidor não conter disposição que disciplina matéria reservada à Lei n. 4.595/1964, que, como vimos, regulamentou o sistema financeira nacional, tendo sido recebida pela Constituição da República de 1988 com status de lei complementar.


Referências Bibliográficas

ALEXY, Robert. Direitos fundamentais, balanceamento e racionalidade. Trad. Menelick de Carvalho Netto. In: Ratio Juris, vol. 16, n. 2, junho de 2003, p. 131-140.

OLIVEIRA, Marcos Cavalcante de. Moeda, juros e instituições financeiras – regime jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 2006.

PFEIFFER, Roberto Augusto Castellanos; PASQUALOTTO, Adalberto (coord.). Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002: convergências e assimetrias. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005.

SCAVONE JUNIOR, Luiz Antonio. Juros no direito brasileiro. 2. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.


Notas

  1. Nos termos do art. 17 da Lei n. 4.595/64, são consideradas instituições financeiras "as pessoas jurídicas, públicas ou privadas, que tenham como atividade principal ou acessória a coleta, intermediação ou aplicação de recursos financeiros próprios ou de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, e a custódia de valor de propriedade de terceiros".
  2. A propósito, o verbete sumular n. 297/STJ, aprovado pela Segunda Seção dessa corte em 12.05.2004, DJ de 09.09.2004, dispõe que: "o Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras".
  3. "CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. BANCOS. CLÁUSULA PENAL. LIMITAÇÃO EM 10%.
  4. OS BANCOS, COMO PRESTADORES DE SERVIÇOS ESPECIALMENTE CONTEMPLADOS NO ARTIGO 3.º, PARÁGRAFO SEGUNDO, ESTÃO SUBMETIDOS ÀS DISPOSIÇÕES DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. A CIRCUNSTÂNCIA DE O USUÁRIO DISPOR DO BEM RECEBIDO ATRAVÉS DA OPERAÇÃO BANCÁRIA, TRANSFERINDO-O A TERCEIROS, EM PAGAMENTO DE OUTROS BENS OU SERVIÇOS, NÃO O DESCARACTERIZA COMO CONSUMIDOR FINAL DOS SERVIÇOS PRESTADOS PELO BANCO.

    [...]

    RECURSO NÃO CONHECIDO."

    (REsp n. 57.974/RS, relator Min. Ruy Rosado de Aguiar, DJ de 29.051995).

  5. PFEIFFER, Roberto Augusto Castellanos. Disciplina dos juros no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor. In: PFEIFFER, Roberto Augusto Castellanos; PASQUALOTTO, Adalberto (coord.). Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002: convergências e assimetrias. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 191.
  6. ADI-ED 2.591/DF, rel. Min. Eros Grau, DJ de 13.04.2007.
  7. OLIVEIRA, Marcos Cavalcante de. Moeda, juros e instituições financeiras – regime jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 462.
  8. Cf. OLIVEIRA, Marcos Cavalcante de. Moeda, juros e instituições financeiras – regime jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 463.
  9. Cf. ALEXY, Robert. Direitos fundamentais, balanceamento e racionalidade. Trad. Menelick de Carvalho Netto. In: Ratio Juris, vol. 16, n. 2, junho de 2003, p. 131-140. A técnica do balanceamento de princípios, como se sabe, originou-se no direito alemão, mais precisamente, na decisão do caso Lüth, proferida pela Corte Constitucional Federal Alemã em 1958. Naquela oportunidade, o Tribunal Constitucional, analisando se a conduta de Lüth – incitação ao boicote aos filmes produzidos após 1945 por Veit Harlan, diretor nazista de maior destaque – estava protegida pela liberdade de expressão ou se, ao revés, era contrária à política pública, às convicções do direito e da moral do povo alemão, deu ganho de causa a Lüth, proclamando que se deveria atribuir ao princípio da liberdade de expressão prioridade sobre considerações constitucionais concorrentes.
  10. OLIVEIRA, Marcos Cavalcante de. Moeda, juros e instituições financeiras – regime jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 462-463.
  11. É a Lei n. 4.595/1964, recebida pela Constituição Federal de 1988 como lei complementar, que regulamenta o sistema financeiro nacional. E o art. 4.º, inc. IX, da indigitada lei, dispõe competir ao Conselho Monetário Nacional "limitar, sempre que necessário, as taxas de juros, descontos, comissões e qualquer outra forma de remuneração de operações e serviços bancários ou financeiros, inclusive os prestados pelo Banco Central da República do Brasil [...]". Como bem observou Luiz Antonio Scavone Junior, a partir do referido dispositivo e depois de muita discussão, entendeu a jurisprudência que as instituições financeiras, desde que autorizadas, podiam cobrar juros superiores aos limites impostos pela Lei da Usura (SCAVONE JUNIOR, Luiz Antonio. Juros no direito brasileiro. 2. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 256). Tanto foi assim que o STF editou o verbete sumular n. 596, do seguinte teor, in verbis: "as disposições do Decreto 22.626/33 não se aplicam às taxas de juros e aos outros encargos cobrados nas operações realizadas por instituições públicas ou privadas que integram o Sistema Financeiro Nacional".
  12. "Art. 192. O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, em todas as partes que o compõem, abrangendo as cooperativas de crédito, será regulado por leis complementares que disporão, inclusive, sobre a participação do capital estrangeiro nas instituições que o integram." (Redação dada pela Emenda Constitucional n. 40, de 2003)
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Sobre o autor
Eduardo Ribeiro de Oliveira

Bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Ex-assistente de ministro do STJ. Analista Judiciário do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Eduardo Ribeiro. A fixação da taxa de juros e o Código de Defesa do Consumidor.: O importante papel desempenhado pelas instituições financeiras no âmbito do Sistema Financeiro Nacional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2323, 10 nov. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13829. Acesso em: 24 nov. 2024.

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