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Direito, literatura e a Lei de Introdução ao Código Civil.

Um estudo reflexivo-comparativo acerca do Direito e da Lei de Introdução ao Código Civil, partindo do auxílio literário

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16/11/2009 às 00:00
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Capítulo IV – LICC e a literatura

As três obras aqui utilizadas serão "O mercador de Veneza", de William Shakespeare; "Frankenstein", de Mary Shelley; e "O pagador de promessas", de Dias Gomes.

IV.I. "O mercador de Veneza" e a LICC

Esta é uma história sobre Antônio (o mercador), que pretende ajudar seu amigo Bassânio, o qual deseja viajar para ficar com sua amada Pórcia (nobre rica, que, para ter marido, o pretendente devia resolver um problema de lógica, elaborado pelo pai da moça). Antônio, para tanto, necessita emprestar dinheiro ao amigo, o que não tem. Com isso, pede empréstimo a um judeu agiota, Shylock, que recebia tratamento desumano (de muitos, mas em especial de Antônio), e vê na oportunidade uma vingança. O trato feito com o judeu foi que Antônio deveria pagar no prazo determinado, e, caso não o fizesse, pagaria com uma libra da carne de seu corpo (usando o argumento de que nunca faria isso, que era uma brincadeira). Enquanto Bassânio havia obtido sucesso no pedido de casamento com Pórcia; no mar, os barcos de seu amigo, que eram garantia para o pagamento do empréstimo, eram destruídos. Bassânio, temendo pela vida de Antônio, volta à Veneza, deixando Pórcia esperando-o em seu vilarejo. Pórcia, disfarçada como magistrado, vai à Veneza defender a causa de Antônio. Com um duro e instável julgamento, ela sai vitoriosa e finalmente revela sua identidade, para surpresa de Bassânio. Shylock, portanto, não atinge sua vingança, apesar de muito insistir – como fala "Só reclamo a aplicação da lei, a pena justa cominada na letra já vencida" [26] –, e o amor e a amizade prevalecem no final.

Do ponto de vista jurídico, a parte do julgamento em que Pórcia aparece disfarçada como magistrado, é a mais relevante. O argumento por ela usada para que Shylock não ferisse Antônio foi que o acordo possibilitava tirar carne ("Pertence-te uma libra aqui da carne do mercador; a corte o reconhece, porque a lei o permite" [27]), mas não sequer uma gota de sangue. Diz ela: "(...) Pela letra, a sangue jus não tens; nem uma gota. São palavras expressas: ‘Uma libra de carne’. (...) se acaso derramares (...) uma gota que seja, só, de sangue cristão, teus bens (...) para o Estado passarão (...)" [28]. Com isso, Shylock acaba aceitando o pagamento posterior. Hoje, no direito, existem métodos de interpretação (gramatical, com exame detalhado do ponto de vista das normas gramaticais; lógica, usando raciocínios lógicos, com deduções e induções; sistemática, que leva em conta o sistema no qual a norma está inserida; histórica, analisando o que a precedeu; e a sociológica ou teleológica, que busca a finalidade da norma), e, analisando o argumento utilizado por Pórcia, pode-se dizer que sua interpretação foi do tipo lógica, ao admitir o que está contido na norma, mas proibindo o que não é permitido (mediante pena), embora não explícito no acordo, mas com argumentos jurídicos. Comparando com a LICC, esta estabelece, em seu artigo 5º, a interpretação sociológica ou teleológica, determinando que as leis devem ser lidas de acordo com os fins sociais para os quais são elaboradas. [29] Esta é a primeira relação.

Apesar de Pórcia afirmar que Shylock não poderia tirar sangue de Antônio, isso não está presente no acordo. Ela apenas apresenta uma pena por tirar sangue de cristão, permitindo o corte. Dessa forma, existe uma lacuna no acordo, que necessitou de integração, conforme prevista na LICC. Nesta, é possível integrar a norma (preencher a lacuna) com analogia – a qual ela utilizou, retomando uma lei de Veneza –, costume – não há relação – e utilização de princípios gerais de direito. No livro de Shakespeare, depreende-se que Pórcia utilizou, além da norma, o princípio (não-escrito, mas subentendido mesmo naquela sociedade) da integridade física do homem – portanto, Shylock podia cortar Antônio (idéia atrelada à pacta sunt servanda, perfeitamente compreensível à época), mas não tirar sangue do mesmo, pois não estava determinado no contrato, e era proibido conforme à lei. Mesmo que o princípio não houvesse, podemos considerar que foi o uso da equidade (uso de bom senso) que norteou o falso magistrado, pois o agiota estaria agredindo o mercador. A equidade não está prevista na LICC, mas é evidentemente utilizada em casos concretos por parte do juiz, inclusive presente na doutrina.

Por fim, está presente, no mesmo ciclo, uma antinomia (lei particular do acordo, que permitia a Shylock cortar Antônio versus lei geral de Veneza, que não permitia tirar sangue judeu, sob pena de perda dos bens para o Estado). Logicamente, era impossível a Shylock cortar Antônio sem tirar sangue – daí a antinomia. As antinomias podem ser aparentes (que são solúveis a partir das próprias normas do ordenamento), ou reais (quando não há critério normativo para a solução, necessitando, portanto, de nova norma) [30] – ressaltando que, conforme estabelece Norberto Bobbio, existem critérios para resolução de antinomias aparentes, que são o cronológico (lei posterior derroga lei inferior), o hierárquico (lei superior derroga lei inferior) e o da especialidade (lei especial derroga lei geral). [31] Pórcia usa o critério hierárquico, pois a lei de Veneza impera frente à determinação do acordo.

IV.II. "Frankenstein" e a LICC

Frankenstein conta a história de Victor Frankenstein, estudante de medicina que, revoltado pela morte de sua mãe, isola-se das outras pessoas e burca a imortalidade. Com isso, deu vida a uma criatura que montou, a partir de partes de pessoas mortas – portanto, a criatura tem marcas profundas das cirurgias. A criatura não recebe nome de seu criador e, graças a isso, e graças à sua assustadora forma, não consegue relacionar-se com as outras pessoas, sentindo profunda tristeza, como quando diz "Maldito criador! Por que vivi?" [32]·. O estudante abandona a criatura (graças ao nojo e o medo que sente da mesma) e esta, sozinha, esconde-se, aprendendo muito a partir da leitura de diversos livros. A criatura passa a adotar o nome de seu criador (Frankenstein), e pede ao seu criador que criasse para ele uma companheira. Com a negativa, ele decide matar as pessoas mais próximas e Victor (amigos, irmão e noiva), e consegue. O criador tenta caçar o monstro para matá-lo, mas Frankenstein se jogou em uma fogueira para afogar sua mágoa e tristeza. Victor, também consternado, e não sabendo que a criatura cometera suicídio, e temendo morrer no lugar dela, diz "Sua alma é tão infernal quanto sua figura, cheia de traição e perfídia" [33].

Para estabelecer a relação com o direito e, em especial, com a LICC, é necessário um mínimo de criatividade. Supondo que fosse possível aos homens criar outros monstros como Frankenstein, não apenas uma, mas várias criaturas. Além disso, se as criaturas quisessem interagir com a sociedade – nesse caso, seria necessária uma regulamentação mínima. Como não haveria, ab initio, tal regulação, haveria, portanto, uma lacuna. Em caso de lacuna, a LICC estabelece, em seu artigo 4ºٰ que, em caso de "lei omissa" (lacuna), a decisão se daria a partir de analogia, costume ou princípios gerais do direito. Era necessária, assim, integração (preenchimento de lacunas com normas individuais).

Se a integração se desse por meio de analogia, o que seria mais conveniente: legislação de proteção aos animais, ou os direitos humanos e fundamentais? Em caso de costume, não há possibilidade de ligação. Quanto aos princípios gerais do direito, talvez os direitos humanos coubessem. Ainda assim, a equidade (vide supra) fosse a mais adequada, neste tipo de lacuna. Apesar de ser uma relação de extrema ficção, não está tão distante da realidade, afinal, há pouco tempo atrás não era cabível imaginar o controle do sexo e outras características de um embrião, cura para doenças como tuberculose, telefone celular, a clonagem de animais, entre outras novidades inimagináveis anteriormente. Deste modo, apesar de irreal hodiernamente, não é tão absurdo um esforço para imaginar a situação e enquadrá-la no cenário acima descrito.

Outra possibilidade também seria a seguinte: supondo uma realidade em que a criação de seres como Frankenstein fosse comum, e o assassinato de um destes seres fosse considerado homicídio, encarando-os analogamente como seres humanos. Nesse caso, imaginando que determinado indivíduo alegasse não saber que matar uma criatura fosse ilícito, estaria atingindo diretamente o art. 3º da LICC, que é o princípio da inalegabilidade da ignorantia iuris (vide supra), ou seja, ele não poderia alegar desconhecimento de uma lei, para explicar uma fuga à mesma.

IV.III. "O pagador de promessas" e a LICC

"O pagador de promessas" é a história de Zé-do-Burro, um homem simples que tem alta estima por seu animal de "estimação", um burro (por isso Zé é assim apelidado), chamado por ele de Nicolau. Certo dia, o burro fere-se com um galho de árvore que na sua cabeça cai, e seu dono fica preocupadíssimo, decidindo fazer uma promessa para que o animal sarasse. Zé decide que, se o burro sarasse, ele daria parte de suas terras às pessoas mais necessitadas, e que levaria uma cruz tão pesada quanto à de Cristo até o altar de uma igreja de Santa Bárbara. Como a cidade de Zé não tinha a igreja desta santa, ele faz a promessa em um terreiro de candomblé, onde Santa Bárbara é conhecida como Iansan. Como o animal melhorou, Zé divide suas terras, e começou a caminhada de quarenta e dois quilômetros carregando a cruz, seguido por sua esposa Rosa, até chegar à igreja de Salvador. Chegaram no dia de Santa Bárbara de madrugada, cansados e com fome. Ao amanhecer, o padre chega e vê Zé e sua cruz nas escadas da igreja, e soube que a promessa foi feita para Iansan em um terreiro de candomblé, para curar o burro. Assim, o padre não aceitou receber Zé e sua cruz, acusando-o de herege e de culto ao demônio. "Um ritual pagão, que começou num terreiro de candomblé, não pode terminar na nave de uma igreja!" [34]. O padre só abriria as portas quando Zé desistisse e fosse embora. Zé estava decidido a cumprir a promessa, e não iria sair. Ao final, com a notícia correndo graças a um repórter sensacionalista, aumentando o fato, envolvendo até política, chega um delegado, que vai prender Zé. Este, assustado, não aceita, alegando inocência e decidido a cumprir a promessa, resistindo à prisão e dizendo que de lá só sairia morto. "Agora eu decidi: só morto me levam daqui. Juro por Santa Bárbara, só morto" [35] . Com uma confusão entre todos no ambiente, Zé é ferido mortalmente. Os policiais foram embora, o padre ficou arrependido e com sentimento de culpa, e as pessoas da rua levaram o corpo de Zé sobre a cruz até dentro da igreja. Existem outros fatos na história, envolvendo Rosa e Bonitão, um gigolô, mas que aqui não serão relevantes.

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Supondo que a igreja, por norma (direito canônico), determinasse que aceitava promessas do candomblé, e supondo que as normas da igreja fossem regidas pela LICC. Nesse caso, haveria retroatividade?

A LICC determina, em seu art. 6º, que a regra geral é a irretroatividade (ou seja, as leis novas são feitas para regulamentar situações futuras, não admitindo que regulem fatos pretéritos), a não ser que seja determinado no ato retroatividade, desde que respeitados o ato jurídico perfeito (§1º) – "o que já se consumou segundo a norma vigente ao tempo em que se efetuou" –, o direito adquirido (§2º) – "que já se incorporou definitivamente ao patrimônio e à personalidade de seu titular" – e a coisa julgada (§3º) – "decisão judiciária que já não caiba mais recurso" [36] .

Analisemos se o caso de Zé-do-Burro se encaixa em alguma destas situações, para fins de entendimento dos três casos de admissão de retroatividade respeitando as três possibilidades. Seria ato jurídico perfeito se Zé já houvesse chegado à cidade, e recebido a negativa do padre, não possibilitando retroatividade. Se, ao contrário, não chegasse à cidade, não seria ato jurídico perfeito, admitindo retroatividade. Não há encaixe com o direito adquirido. Quanto à coisa julgada, se Zé já tivesse ouvido o padre (considerando o padre um juiz, que já tivesse dado sua palavra final), seria coisa julgada, não sendo possível retroatividade. Por outro lado, se Zé ainda não tivesse ouvido o padre, não seria coisa julgada, admitindo retroatividade.


Conclusão

Embora, a priori, as relações acima estabelecidas assustem um leitor mais conservador e acostumado com a dogmática estrita, uma das idéias deste ensaio é justamente abrir a mente do mesmo. A lei, e consigo sua hermenêutica, não deve ser levada ipsis litteris, e o jurista deve ter em mente que são necessárias criatividade e inteligência para lidar competentemente com a ciência jurídica. Ad tempus, a idéia de relacionar o plano legislativo com o plano literário (portanto fictício) parece fugir demasiadamente à realidade – e foge, mas o direito já é repleto de abstrações diversificadas: o caráter deontológico do direito (o "dever-ser" do direito) garante abstrações. As abstrações, por conseguinte, geram vagueza e ambiguidade [37], entre diversos outros fatores, que possuem grande rendimento na pesquisa, em especial em direito constitucional (pela abstração demasiada dos princípios).

Ainda assim, pari passu, esses recursos auxiliam uma compreensão de qualidade da abstrata Lei de Introdução ao Código Civil, sob o prisma, principalmente, dos artigos comentados.

O objetivo parece ter sido cumprido (vide introdução) e, apesar de a relação entre o direito e a literatura parecer esdrúxula, de certa forma é essa a idéia: chamar a atenção, facilitar o entendimento de forma que possa entreter, e ajudar em uma produção de conhecimento. Através da metodologia da tripartição lógica do trabalho – a primeira parte, com considerações a respeito do direito e da própria LICC, em caráter amplo; a segunda parte, com comentários dos artigos utilizados, ainda sem grandes elucubrações; e, por fim, o exercício abstrato de relacionar o direito com a literatura. Exercício, aliás, sem grau de concretude, mas propositalmente. O aprendizado da dogmática estrita é por muitos alcançado, mas é necessário ter um diferencial, e aí está um possível papel para a criatividade.

Mais que isso: os três livros abordados, de caráter extremamente diferente (uma história medieval clássica, um terror famoso, e uma peça brasileira, de grande importância no território nacional), são apenas exemplos. O ideal seria que, após encerrar a leitura deste artigo, todos pudessem exercer sua criatividade e relacionar o direito – não apenas a LICC, mas outros ramos também – a outros gêneros literários, como a ficção e até mesmo a poesia.

Ensinar um jurista é incitar produção de conhecimento, não bitolá-lo e fechar sua mente. Como diz a famosa frase shakespeariana: "As possibilidades do universo do texto são infindáveis".

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Sobre o autor
Diogo Rodrigues Manassés

Estudante de direito da Universidade Federal do Paraná

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MANASSÉS, Diogo Rodrigues. Direito, literatura e a Lei de Introdução ao Código Civil.: Um estudo reflexivo-comparativo acerca do Direito e da Lei de Introdução ao Código Civil, partindo do auxílio literário. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2329, 16 nov. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13845. Acesso em: 23 abr. 2024.

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