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Fundo partidário: a constitucionalidade da divisão proporcional e limitada de recursos públicos

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18/11/2009 às 00:00
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4 A Presunção de Constitucionalidade da limitação do artigo 17, §3, da Constituição Federal

No artigo 17, §3º, a Constituição Federal definiu que os partidos políticos teriam direito a recursos do fundo partidário na forma da lei. Enquadrando-se essa previsão constitucional na classificação de José Afonso da Silva, quanto à eficácia das normas constitucionais (23), chega-se à seguinte conclusão: trata-se de norma de eficácia limitada. O citado mestre explica que:

(...) as que mencionam uma lei integradora, são normas de eficácia limitada, de princípios programáticos e de aplicabilidade indireta, mas são tão jurídicas como as outras e exercem relevante função, porque, quanto mais se aperfeiçoam e adquirem eficácia mais ampla, mais se tornam garantias da democracia e do efetivo exercício dos demais direitos fundamentais. (24)

Existe expressa menção à norma integradora, no artigo 17, § 3º, através da redação "na forma da lei". Logo, é uma norma de eficácia limitada: para o seu titular exercer o direito é necessária regulamentação infraconstitucional. Ratificando essa conclusão, Walber Moura Agra dá o seguinte conceito para as normas de eficácia limitada: "as que apenas terão eficácia imediata quando forem regulamentadas"(25). Explicando a quem incumbe tal função, Paulo Bonavides ensina que "as normas de eficácia diferida trazem já definida, intacta e regulada pela Constituição a matéria que lhe serve de objeto, a qual será depois apenas efetivada na prática mediante atos legislativos de aplicação."(26)

O Poder Legislativo – por ser o representante do povo – é quem tem competência para garantir eficácia plena à norma constitucional. Quando a Constituição Federal fez a menção "na forma da lei" deixou ao Congresso Nacional a missão de fixar seus parâmetros (27)(41 da lei 9.096/95).

A disciplina dada pelo artigo 41, de fato, reduziu as verbas que alguns partidos receberiam do fundo partidário. Mas, isso não impediu que o sistema continuasse plural. Um por cento de todo o dinheiro do fundo partidário seria dividido igualmente. Os outros noventa e nove por cento, entre os que ultrapassassem a cláusula de barreira – no ano de 2006, seis partidos políticos. A divisão é legítima porque essas agremiações contaram com maior representatividade popular.

A despeito desses argumentos, os ministros do Supremo Tribunal Federal entenderam como inconstitucional a repartição efetuada pelo artigo 41 da lei 9.096. No voto do Ministro Gilmar Mendes está expresso:

O modelo confeccionado pelo legislador brasileiro, no entanto, não deixou qualquer espaço para a atuação partidária, mas simplesmente negou, in totum, o funcionamento parlamentar, o que evidencia, a meu ver, uma clara violação ao princípio da proporcionalidade, na qualidade de princípio da reserva legal proporcional (Vorbehalt dês verhältnismässigen Gesetzes). (28)

Com base no princípio da proporcionalidade os ministros entenderam que a lei 9.096 negou o funcionamento partidário. O ministro Sepúlveda Pertence definiu a situação assim: "a cláusula de barreira não mata, mas deixa morrer" (29).

A despeito de toda reverência que merecem as decisões do Supremo Tribunal Federal, esse trabalho se permite divergir do entendimento daquela Corte. Como primeira justificativa para a discordância relembra que os critério de limitação da norma constitucional devem ser definidos pelo Poder Legislativo, afinal, seus membros são os representantes dos interesses dos cidadãos. Foram eleitos pelo voto. São eles que, de maneira indireta, exercem o poder do povo. Sobre essa questão, Edílson Farias esclarece que "a solução do conflito entre os direitos fundamentais é confiada ao legislador quando o texto constitucional remete à lei ordinária a possibilidade de restringir direitos" (30).

Em síntese, o artigo 17, § 3º, precisa de uma legislação intercalar -"uma lei que se interpõe entre a norma constitucional e o fato empírico" (31). O poder constituinte atribui essa competência ao Congresso Nacional. Portanto, ao se seguir esse procedimento, deve-se presumir que a norma editada é constitucional. Partindo de tais premissas, conclui-se que a atuação do Supremo Tribunal Federal precisa ser excepcional, em sede de controle. No momento em que passa o Poder Legislativo pela chamada "crise legislativa" (32) – enorme legiferação do Poder Executivo através de medidas provisórias – não parece razoável nova turbação da função pelo Poder Judiciário.

Destarte, não cabe afirmar que a divisão dos recursos públicos, conforme a proporcionalidade de votos obtida na "Casa do povo" – Câmara dos Deputados – é inconstitucional. A instituição da cláusula de barreira, e divisão do fundo partidário, passaram por um rigoroso controle, perante o Congresso Nacional (processo legislativo, com aprovação das duas casas) e o Presidente da República (sanção). Logo, deve-se, preliminarmente, entendê-la como constitucional.

Não bastasse isso, a instituição de cláusula de barreira, para recebimento de verbas do fundo partidário, é um mecanismo amplamente adotado em vários Países. Foi o meio encontrado para estancar a criação ilimitada de partidos políticos, o que desvirtuava o sistema, face à dificuldade de controle e ao nascimento de agremiações acéfalas politicamente. Canotilho esclarece:

(3) Quais, dentre os partidos e candidatos, devem beneficiar das subvenções financeiras? A questão reconduz-se à escolha de um critério seletivo dos beneficiários do financiamento. Um dos critérios possíveis é a representação parlamentar (Finlândia, Dinamarca, Espanha, Portugal), segundo o qual só partidos com representação parlamentar podem beneficiar do financiamento público. A repartição far-se-á tendo em conta o número de mandatos ou número de votos. Este critério – eis aqui a objeção principal – pode conduzir à rigidificação e petrificação do sistema partidário. Outro critério toma como base, para a atribuição de subvenções, o número de votos obtidos, financiando-se os candidatos ou partidos que tenham uma determinada porcentagem de votos (Estados Unidos, Canadá, Alemanha). Em alguns países, utiliza-se um critério misto: representação parlamentar e percentagem de votos. Isto conduz ao financiamento dos partidos com representação parlamentar, distribuindo uma parte igual por todos os grupos com formação parlamentar, e outra parte em função do número de votos obtidos por cada um deles (Áustria, Itália, Suécia) (33).

Como ocorrido na Áustria, Itália e Suécia, o Brasil adotou um critério misto. Uma parte dos recursos é dividida igualmente (1%) e o restante (99%) proporcionalmente à representação, desde que ultrapassada a cláusula de barreira (5% dos votos).

Por esses argumentos, bem se vê que quem deve determinar qual é o parâmetro ideal para a limitação do recebimento de verbas públicas é o Poder Legislativo. O Supremo não deve discutir se o percentual definido pela cláusula de barreira é justo ou injusto, sob pena de turbação da competência de outro poder. A cláusula de barreira – percentual mínimo de votos a ser obtido – já é uma realidade em diversos países. Nesses Estados soberanos, o percentual (3%, 4%, 5%, etc.) não foi definido pelo Tribunal Superior Eleitoral (como solicitado pelo STF) ou pela Corte Constitucional. Foi estabelecido pela casa legislativa, o que o torna legítimo.


5 A Invasão da discricionariedade do Poder Legislativo.

Em se tratando de um Poder cujos membros são eleitos pelo voto direto, na qualidade de representantes do povo, possuem os parlamentares discricionariedade para escolher a melhor imposição legal à sociedade. O único requisito material é a sua obediência aos ditames da Constituição Federal. Tratando sobre a margem de liberdade do legislador, Pedro Serrano (34) explica que "a vinculação do legislador pela Constituição nem sempre é positiva, cabendo-lhe, em diversas situações, a iniciativa criativa nos pressupostos e/ou meios, e/ou fins normativos limitada apenas pela não contradição com dispositivos constitucionais (limites negativos)".

Permitir que o Supremo Tribunal Federal adentre na esfera de discricionariedade do poder legislativo, para definir parâmetros legais, traz as conseqüências enumeradas abaixo, prejudiciais ao sistema democrático:

a)inúmeros julgamentos da Corte Constitucional, declarando os critérios da lei como inconstitucionais, fazem com que o Congresso Nacional, em seguida, edite novas leis restabelecendo o percentual inquinado. Quem sofre com essa disputa de poderes é o povo, que não pode contar com critérios seguros no ordenamento jurídico;

b)a Corte Constitucional se torna, na prática, órgão legislador, pois ao STF cumpriria decidir o percentual correto para distribuição dos recursos do fundo partidário. O fim da celeuma só será possível quando o Supremo Tribunal Federal entender que o critério fixado pelo Congresso Nacional é constitucional.

Sobre os perigos da violação da esfera de competência, Hassemer (35) explica que "Existe com ello el peligro real de que el Tribunal Constitucional se extralimite em sus competências, que dicte resoluciones allí donde otros (los tribunales de otras jurisdicciones) están designados a hacerlo convirtiéndose así em uma "superistancia de casación" o em um legislador substituto".

No caso em tela, deve-se respeitar o Princípio da Tripartição de Poderes, sob pena de tornar sem qualquer efeito a atuação do Poder Legislativo. Retirar a atribuição desse poder, através do controle de constitucionalidade (STF) ou por meio das medidas provisórias (Presidente da República), é anular os votos do povo. Anna Ferraz (36) ressalta a importância dessa divisão de funções, quando afirma que "o estabelecimento de freios e contrapesos tem caráter instrumental porquanto serve ao princípio inspirador da limitação do poder, para assegurar a liberdade".

Dessa feita, a atuação do Supremo, em sede de controle, necessariamente deve ser excepcional, sob pena de abalar a tripartição de poderes, gerando um governo em que só as decisões do judiciário prevalecem. A fixação de índice percentual (cláusula de barreira e divisão do fundo partidário) não está dentro da esfera de competência do Poder Judiciário, mas sim do Poder Legislativo.


6 A Igualdade de chances conferida aos partidos políticos.

Outro fundamento apontado como violado pela cláusula de barreira, no voto do Ministro Gilmar Mendes, é o Princípio da Igualdade de chances. No entanto, mais uma vez, cabe a esse estudo discordar desse entendimento.

As regras da cláusula de barreira, editadas através de uma lei de 1995, já eram conhecidas antes da eleição de 2006, para o escrutínio da Câmara dos Deputados. Os partidos políticos sabiam que a aplicação de divisão de recurso só ocorreria em 2007, conforme determina o artigo 57 da lei 9.096/95, o que garantiu aos partidos políticos a possibilidade de se esmerarem para ultrapassar a cláusula de barreira.

A igualdade de chances foi conferida aos partidos políticos ao se dar conhecimento prévio das novas regras. Da mesma forma ocorreu quando lhes foram concedidos meios (financeiro, de propaganda, entre outros) equivalentes aos dos "partidos grandes" para obter votos na eleição para a Câmara dos Deputados. Prova disso foi o marcante apelo do deputado federal Fernando Gabeira (37) nos horários políticos, esforçando-se para arregimentar votos suficientes à ultrapassagem da cláusula de barreira. No final, dada a legitimidade popular, ganham maiores recursos os partidos que tiveram maior representatividade. É um reflexo da proporcionalidade democrática.

Tratando do Princípio da Igualdade, o professor André Ramos (38) esclarece que "os tratamentos diferenciados podem estar em plena consonância com a Constituição". Então, para definir um parâmetro constitucional de desigualdade, o citado estudioso explica que é preciso existir uma correlação lógica entre:

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a)O traço diferencial eleito como ponto de apoio da desigualação que se pretende instaurar;

b)a desigualação de tratamento sugerida em função do traço ou característica adotada.

Sendo assim, aplicando-se ao caso estudado, observa-se que o traço diferencial eleito é a proporcionalidade de votos obtida pelos partidos que ultrapassaram a cláusula de barreira (5% dos votos apurados na Câmara dos Deputados – representatividade mínima). A representatividade na "casa do povo" tem direta relação com os recursos que vão permitir o funcionamento dos partidos políticos. O dinheiro público deve financiar os partidos que são eleitos pelo povo. O poder de escolha é da população.

Ainda conforme André Ramos (39), a desigualdade deve ter relação direta com a diferença observada. Sendo assim:

- Desigualdade – recebimento de verba pública;

- Diferença – quantidade de votos recebida pelo partido político na Câmara dos Deputados.

Por essas razões resta claro que a igualdade de chances foi conferida aos partidos políticos, antes mesmo da aplicação dos novos critérios. Não bastasse isso, o juízo utilizado para diferenciá-los possui relação direta com a desigualdade, demonstrando-se constitucional.


7 O Problema da omissão legislativa deixada pelo julgamento das ADINs 1351-3 e 1354-8.

No caso em tela, ao declarar inconstitucional a lei que fixou cláusula de barreira, terminou o Supremo Tribunal Federal fulminando também o critério para repartir o dinheiro do fundo partidário. Diante dessa lacuna, decidiu a Corte Máxima oficiar ao Tribunal Superior Eleitoral, a fim que esse órgão legislasse sobre a matéria. Caso isso não ocorresse, não existiriam parâmetros para dividir os recursos. Como explicado anteriormente, os critérios foram definidos pelo TSE. Contudo, parece a esse estudo que tal medida careceu de legitimidade constitucional. Enumeram-se abaixo as razões para essa posição.

Para entender as razões da discordância, relembre-se que a declaração de inconstitucionalidade tem efeitos, em regra, ex-tunc, vinculante e erga omnes. Atestando essa regra, Alexandre de Morais (40) esclarece que:

Declarada a inconstitucionalidade da lei ou ato normativo federal ou estadual, a decisão terá efeito retroativo (ex tunc) e para todos (erga omnes), desfazendo, desde sua origem, o ato declarado inconstitucional, juntamente com todas as conseqüências dele derivadas, uma vez que os atos inconstitucionais são nulos e, portanto, destituídos de qualquer carga de eficácia jurídica, alcançando a declaração de inconstitucionalidade da lei ou ato normativo, inclusive os atos pretéritos com base nela praticados (efeito ex tunc).

Essa é a regra: a nulidade das leis inconstitucionais, Idéia defendida há muito tempo por Rui Barbosa (41). Contudo, em vista de dois requisitos (segurança jurídica ou excepcional interesse social) será possível a modulação dos efeitos da ADIN. O artigo 27 da lei 9.868/99 (42):

Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.

A modulação de efeitos permite restringir as conseqüência da declaração ou decidir em que momento ela teria eficácia. Diante dessas informações, deve-se analisar a posição tomada pelo Supremo Tribunal Federal, face à lacuna deixada pela declaração de inconstitucionalidade.

O controle de constitucionalidade da cláusula de barreira, em seu efeito regular, geraria uma grave lacuna no ordenamento. Contudo, esse espaço vazio só poderia ter sido preenchido pelo Congresso Nacional, através de outra lei, e não pelo Tribunal Superior Eleitoral. Esse órgão não possui legitimidade normativa para regulamentar norma constitucional. Logo, é inconstitucional a divisão dos recursos do fundo partidário determinada pelo Supremo Tribunal Federal.

Ao se deparar com a lacuna deixada pela ADIN, o STF não possui competência para oficiar a outro órgão, requerendo a regulamentação normativa. Não existe autorização constitucional nesse sentido. Portanto, a única medida possível para resolver o problema seria modular os seus efeitos. Garantir um lapso temporal para que o Congresso Nacional aprovasse uma nova norma, dividindo os recursos do fundo partidário.

Bem se vê que houve clara impropriedade, na atuação do Supremo Tribunal Federal, ao incitar um órgão incompetente para delimitar a norma constitucional.

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Sobre a autora
Mariana Barbosa Cirne

Mestre em Direito, Estado e Constituição (UnB). Especialista em Direito Público (UnP) e em Processo Civil (IDP). Bacharela em Direito (UFPE). Procuradora Federal (AGU). Coordenadora do Centro de Estudos Jurídicos da Presidência da República (PR).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CIRNE, Mariana Barbosa. Fundo partidário: a constitucionalidade da divisão proporcional e limitada de recursos públicos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2331, 18 nov. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13872. Acesso em: 4 mai. 2024.

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