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O uso da analogia nas normas penais incriminadoras para extensão do tipo penal

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3. USO DA ANALOGIA NA EXTENSÃO DE TIPOS PENAIS

Tendo em vista a proibição genérica que se faz quanto ao uso da analogia in malam partem, afirma-se, outrossim, a vedação de seu uso para o alargamento conceitual dos tipos penais. Assim, eventuais lacunas encontradas pelo jurista nas normas penais incriminadoras não admitiriam sua integração.

Ora, se a norma penal visa a incriminar ou a punir mais drasticamente, certo seria que aumentar seu espectro de abrangência criaria situações impedidas pelo princípio da legalidade, por conceder ao jurista o poder de definir crimes e penas.

Contudo, observe-se que a peculiar relação existente entre os tipos básicos e os tipos derivados faz nascer singular evento que haveria de possibilitar a integração analógica.

Veja-se que, para a configuração dos tipos derivados é necessário, primeiramente, que sejam cumpridos todos os requisitos indicados no tipo básico. Assim, o furto qualificado e o privilegiado possuem, necessariamente, todas as características do furto simples, mas adidas a elas circunstâncias outras que fizeram com que o legislador modificasse sua pena.

Em face de uma hipótese concreta e entendidas ausentes as referidas características a mais, ter-se-á não um furto derivado, mas um furto básico, simples. Assim, a percepção das situações qualificadoras é ocorrência in malam partem, enquanto a percepção das circunstâncias de privilégio é in bonam partem.

É, então, mais interessante ao agente que sua conduta seja considerada como um delito privilegiado, isto é, um crime derivado por menor reprovabilidade. Garantir-lhe-á menor pena, em vista do que ocorreria caso fosse sua conduta encaixada no molde do tipo simples.

O mesmo não ocorre, porém, quando se trata do crime derivado por maior reprovabilidade, ou qualificado. Nesta espécie de delito, ao agente é mais benéfico que não se vejam configuradas as circunstâncias qualificadoras, ou será ele sancionado pelo preceito secundário mais rígido do tipo qualificado.

Vê-se que, apesar de logicamente ocuparem a mesma categoria jurídica, a conseqüência advinda da derivação de tipos bifurca-se. Ora, de forma alguma cabe a analogia no caso da qualificação, em que se apena mais severamente o agente. Seria evidente o uso de analogia in malam partem, que é vedada no ordenamento jurídico pátrio.

Mas na hipótese em que se chega a uma consequência benigna ao agente é possível a discussão do cabimento da analogia para sua configuração e os limites de tal aplicação. Vislumbre-se que a integração que desloque a conduta do agente do tipo simples para o tipo privilegiado só faz cumprir os interesses de um Direito Penal garantista, pautado nos direitos constitucionais do réu.

A analogia é sim cabível quando se traduz numa limitação ao ius puniendi. Relembre-se que a vedação é quanto à analogia in malam partem e não exatamente quanto ao seu uso nas normas incriminadoras, ainda que, na grande maioria das situações, esta segunda hipótese culmine na primeira. Todavia, a doutrina, sem se atentar para a hipótese ora aventada, erroneamente cria a genérica vedação em relação às normas incriminadoras.

Destaque-se, contudo, que, mesmo no caso apresentado acima, o uso da analogia sofre sérias limitações. Como visto, o tipo derivado é composto primeiramente do tipo básico, que é acrescido de requisitos outros; ora, ainda que seja possível estarem presentes as circunstâncias ensejadoras do privilégio, certo é que, não havendo algum dos requisitos do tipo básico, a conduta do agente é atípica e, portanto, não haverá crime.

Logo, ainda mais benéfico que o enquadramento da conduta sob a égide do tipo privilegiado, é a atipicidade da conduta. Dessarte, é inadmissível a analogia que recaia sobre os elementos do tipo básico, somente sendo permitida aquela adstrita aos elementos do tipo derivado de menor reprovabilidade.

Em verdade, pode-se entender que o tipo privilegiado é uma das espécies de possíveis ocorrências do tipo básico. São mais benéficas ao agente, então, a integração e a interpretação que, dentro do conjunto de possíveis furtos, fizer com que mais fatos sejam considerados privilegiados.

O uso da analogia deve ser autorizado sempre que, graças a ela, uma dada situação criminosa seja considerada privilegiada. Porém, é preciso destacar-se que a analogia não pode incidir sobre os elementos do tipo derivado que formam o tipo básico.

Estender os elementos do tipo básico faz com que condutas atípicas passem a ser típicas, gerando resultado maléfico ao agente. Estes elementos devem ser verificados sob estrita legalidade e, estando presentes, aí sim abre-se o permisso para a aplicação analógica quanto aos demais elementos do tipo privilegiado.

Ao aumentar-se a incidência do tipo privilegiado, desde que nos limites do tipo básico, consegue-se, em verdade, uma minoração das condutas que serão punidas pelo típico simples, numa integração garantista e benéfica ao réu.

Demonstrada a possibilidade teórica do uso analógico para extensão do tipo penal, a fim de que abarque mais hipóteses, verifique-se um exemplo em que se vê possível o uso da técnica defendida.

A Lei 11.343 de 2006 traz uma plêiade de crimes destinados ao combate do tráfico ilícito de entorpecentes. Em análise do referido diploma legal, vê-se que o artigo 33 – tipo básico – possui, como forma privilegiada, o delito insculpido em seu parágrafo 3º. Veja-se, pois, a redação dos respectivos preceitos primários e secundários:

Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.

§ 3º Oferecer droga, eventualmente e sem objetivo de lucro, a pessoa de seu relacionamento, para juntos a consumirem:

Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano, e pagamento de 700 (setecentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa, sem prejuízo das penas previstas no art. 28.

Interessa apontar especificamente que um dos núcleos do artigo 33 é "oferecer", sendo o mesmo núcleo presente na forma privilegiada do parágrafo terceiro. Contudo, no tipo derivado em análise, a oferta da droga vem acompanhada de outras circunstâncias que, a juízo do legislador, tornam-na menos reprovável, causando a redução da pena.

Como se percebe, é tipo privilegiado material e formalmente. Insere-se dentro da topologia do próprio artigo 33, bem como traz novos limites mínimo e máximo de pena, exigindo-se, para sua configuração, os elementos do tipo básico adidos a requisitos outros.

Aplicar a analogia ao tipo básico, isto é, "oferecer droga", seria utilizá-la in malam partem, porque haveria uma extensão do tipo para abranger condutas que, pela estrita verificação legal, seriam atípicas. Só é cabível, como demonstrado, a analogia que incida sobre os elementos que se agregam ao tipo básico, construindo o crime derivado.

Assim, difere o delito privilegiado do tipo básico porquanto a oferta deve ser eventual, sem objetivo de lucro, direcionada a pessoa do relacionamento do agente e, ainda, deve ser destinada ao consumo conjunto do agente e da pessoa a quem se destina a oferta.

Todavia, indique-se o caso em que o agente, sem objetivo de lucro, oferece a pessoa do seu relacionamento para que esta consuma sozinha, sem que o agente também faça uso da substância. Verifica-se, então que a referida situação não encontraria, literalmente, amparo no referido tipo derivado.

Assim, não utilizada a analogia, seria obrigatória o amoldamento do fato nos termos do tipo básico, punindo-se o agente com reclusão de 5 a 15 anos, ao revés de detenção 6 meses a 1 ano, além da multa também de maior valor.

Ora, é certo que, por exemplo, o namorado usuário que oferece droga eventual e gratuitamente à sua namorada e, nesta ocasião, por qualquer motivo, não faz o consumo da substância, não age com a mesma reprovabilidade do traficante que oferece drogas a fim de viciar e formar sua clientela.

Forçoso reconhecer que o mesmo raciocínio, lógica, ratio utilizada para privilegiar a oferta gratuita, eventual e a pessoa de seu relacionamento para consumo em conjunto deve ser transportado para a situação em que só se mostra ausente o requisito de consumo conjunto.

Aliás é mesmo discutível se a hipótese de consumo apenas do receptor da droga é ainda menos reprovável do que quando o consumo ocorre conjuntamente. Não ingressando nesta senda, deve-se reconher que, no caso em tela, consoante os delineamentos analógicos traçados por Bobbio e Kelsen anteriormente, há clara lacuna aparente, porquanto no caso de consumo isolado a solução negativa dada pelo ordenamento jurídico é injusta e desproporcional.

Portanto, no caso em foco, deve-se elastecer a abrangência do tipo penal derivado insculpido no parágrafo 3º, do artigo 33, da Lei 11.343/06, acobertando, assim, as situações em que o uso da droga ofertada não seja conjunto. Adicione-se que se está em face de uma analogia in bonam partem, que há de excluir a conduta do agente da tipicidade em relação ao caput do referido artigo, norma que lhe seria extremamente mais rigorosa.

Solução diversa, qual seja, a de tipificar a conduta como inserida no crime de tráfico simples, contraria todos os limites garantistas do Direito Penal hodierno. A similaridade entre as duas condutas (consumo conjunto e isolado) não permite discrepância no tratamento dado aos dois casos, consubstanciando-se em clássico caso em que a analogia impõe-se.


CONCLUSÃO

No presente esforço constrói-se, primeiramente, uma concepção acerca da interpretação e da integração no Direito Penal, tudo sob a ótica da interferência que o princípio da legalidade exerce naquelas atividades quando relacionadas a este ramo jurídico.

Percebe-se que fica reservada à lei tanto a tipificação de condutas como a cominação de penas, ficando impedido o jurista de, por meios interpretativos ou integrativos, ultrapassar a literalidade da lei para alcançar condutas não estritamente especificadas na norma penal ou aumentar penas.

É neste sentido que se proíbe a analogia in malam partem, tendo em vista que seu objetivo é exatamente transportar uma conseqüência legal a uma situação que, a princípio, não seria abrangida por aquela norma ou sequer por nenhuma norma do ordenamento jurídico.

Ainda, verificadas as características essenciais da norma jurídica, pode-se melhor compreender a divisão das normas penais em não-incriminadoras e incriminadoras, percebendo-se que são estas que veiculam os tipos penais. São exatamente as normas que apresentam os tipo que, em regra, não devem ser alvo de analogia, pois o aumento de sua abrangência, normalmente, ocasiona um resultado maléfico ao agente.

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Todavia, relativamente às normas incriminadoras, observa-se que em uma de suas classificações reside peculiar situação em que é possível o uso analógico para extensão do tipo penal. Assim é que os tipos penais são divididos em básicos (quando autônomos) e derivados (quando acrescem elementos a um já existente tipo básico, fazendo aumentarem ou diminuirem os limites máximo e mínimo da pena).

No específico caso do tipo derivado privilegiado, em que há redução da pena, é mais benéfico ao réu que sua conduta seja inserida neste tipo e não no tipo básico. Assim, o exercício da analogia neste caso traria resultado in bonam partem e, como definido em primo capítulo, a analogia benéfica não é excluída no Direito Penal.

Tanto é verdadeira a hipótese teórica aqui demonstrada quanto é cabível no delito do parágrafo 3º, do artigo 33, da Lei 11.343, de 2006, tipo privilegiado ao caput do mesmo artigo.

É de entender-se que, num caso semelhante à conduta especificamente inserida no citado tipo derivado, qual seja, o de oferta para consumo isolado, há de aplicar-se a mesma consequência jurídica, por uso da técnica analógica, tendo em vista a existência de lacuna aparente no ordenamento jurídico.

Alcança-se, assim, êxito benéfico ao agente, que terá sua conduta excluída da tipicidade relativa ao tipo básico, que, mais rigoroso, apresenta situações cujas razões não se assemelham com o da oferta para uso isolado nos termos do crime privilegiado.


REFERÊNCIAS

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – 1 Parte Geral. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal – Parte Geral. 4ª ed. Rio de Janeiro: Impetus. 2004.

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2008.

PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2004.

REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 27ª ed. São Paulo: Saraiva. 2002.


Notas

  1. NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2008, p. 70.

  2. PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2004, p. 141.

  3. GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal – Parte Geral. 4ª ed. Rio de Janeiro: Impetus. 2004, p. 107.

  4. Ibidem, p. 117.

  5. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – 1 Parte Geral. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 156.

  6. Ibidem. p. 157.

  7. Ibidem, p. 154.

  8. REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 27ª ed. São Paulo: Saraiva. 2002, p. 296.

  9. GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal – Parte Geral. 4ª ed. Rio de Janeiro: Impetus. 2004, p. 47.

  10. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – 1 Parte Geral. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 155 et 156.

  11. GRECO, Rogério. op. cit. p. 48.

  12. GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal – Parte Geral. 4ª ed. Rio de Janeiro: Impetus. 2004, p. 48.

  13. Ibidem. p. 48

  14. PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2004, p. 195 et seq.

  15. GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal – Parte Geral. 4ª ed. Rio de Janeiro: Impetus. 2004, p. 22 et 23.

  16. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – 1 Parte Geral. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 258.

  17. É decerto que cada vez mais a tipicidade toma contornos mais complexos, sendo necessária, para sua configuração, a conjunção da tipicidade formal (encaixe abstrato da conduta com o tipo) e da tipicidade conglobante, formada esta, por sua vez, pela tipicidade material – real lesão ao bem jurídico – e a antinormatividade. Todavia, referidas especificações não repercutem no presente trabalho, pelo que não serão alvo de maiores comentários.Neste sentido, GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal – Parte Geral. 4ª ed. Rio de Janeiro: Impetus. 2004, p. 173 et seq.

  18. BITENCOURT, Cezar Roberto. op. cit. p. 258 et seq.

  19. Ibidem. p. 257 et 258.

  20. GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal – Parte Geral. 4ª ed. Rio de Janeiro: Impetus. 2004, p. 184.

  21. PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2004, p. 541.

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Sobre o autor
Rêidric Víctor da Silveira Condé Neiva e Silva

Advogado; Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Viçosa, pós-graduando em Ciências Criminais

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Rêidric Víctor Silveira Condé Neiva. O uso da analogia nas normas penais incriminadoras para extensão do tipo penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2367, 24 dez. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14078. Acesso em: 19 abr. 2024.

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