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União estável sob os ângulos da informalidade e da prova

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06/02/2010 às 00:00
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5. SUGESTÃO DE LEGE FERENDA

Parece válido afirmar que a união estável, por sua própria natureza informal, completamente assentada no princípio da autonomia privada, carece da segurança que normalmente a sistemática jurídica reclama. Essa precariedade tem se acentuado sobremaneira, à medida que: as declarações de convívio nem sempre são registradas com a verdade; o simples registro do fato do convívio tem sido suficiente para certificar, junto a instituições públicas e privadas, a condição jurídica de convivente em união estável; e, se até em nível institucional há o equívoco acerca do valor probatório desse registro, com maior razão entre as pessoas, o que é um fato prejudicial aos aspectos da cidadania.

Diante dessa demonstração, resta sugerir que:

a) o reconhecimento da união estável permaneça, necessariamente, sendo feito em juízo, diferentemente, portanto, da proposta contida no art. 254 do Estatuto das Famílias, projeto apresentado pelo IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família, onde diz que o reconhecimento da união poderá ser feito por escritura pública, bastando, para tanto, indicar a data do início do convívio e o regime de bens;

b) também a dissolução da união estável continue sendo operada em juízo, não como propõe o referido projeto (art. 255), levando-a, também, para a via extrajudicial, por escritura pública; e

c) dentro da política de otimização da atividade jurisdicional, a exemplo da Lei nº 11.441, de 04 de janeiro de 2007, vê-se como viável aplicar ao reconhecimento e à extinção da união estável a via administrativa, mas com os mesmos critérios de atenção trazidos na referida Lei. Desse modo, se a separação e o divórcio, se o inventário e a partilha, institutos de extrema importância para a sociedade brasileira, podem ser tratados fora da jurisdição, desafogando-a, vê-se que há razoabilidade no reconhecimento e extinção administrativos da união estável. Todavia, assim como lá, cá, também, tenha como pressupostos: a ausência de prole ou que esta seja maior e capaz; assistência por advogado e consenso em todos os termos (talvez este último já esteja implícito no texto do projeto).

A preocupação que se coloca aqui é clara: se a declaração cartorial do registro de convívio, hoje confundida, em certo grau, com a própria união estável, é fator que prejudica a ordem jurídica, prejuízo incomparável haveria se aprovada a proposta que faz, exatamente, consagrar o que se quer evitar. Por outro lado, se há aquelas exigências da Lei nº 11.441/07, em especial a presença do advogado para a escrituração pública, seria esta a tábua da salvação, sob pena de, querendo dar vida à união estável, afogá-la nas turvas águas da insegurança jurídica.

Acrescente-se que, seja administrativa ou judicial a via adotada (facultativamente) no reconhecimento e na extinção, ato contínuo (ao reconhecimento ou à extinção), haja a averbação no Registro Civil, a exemplo dos atos contidos no inc. I do art. 10 do Código Civil (divórcio, anulação de casamento, separação judicial etc).


6. CONCLUSÃO

Do breve ensaio, podem-se colher as seguintes idéias:

a) há um equívoco, por vezes, inclusive em nível institucional, acerca da configuração da união estável: o simples registro público do convívio more uxorio não pode ser tomado como sinônimo dessa união de direito. Serve, no máximo, para corroborar a prova do quadro fático do convívio, que poderá ser judicialmente valorado como merecedor da chancela de relação jurídica;

b) a passagem do tempo é fundamental para a configuração dessa nova entidade familiar, que no próprio nome traz essa necessidade: união estável. O início do convívio, enquanto fato fenomênico, não coincide, a priori, com o início da união de direito, pois poderá ocorrer que referido convívio nunca chegue a se tornar uma união juridicizada, por falha em sua formação, carecendo, portanto, de um ou mais de seus pressupostos de existência. Para identificar o início da união estável, somente é possível a partir do momento em que todos os seus pressupostos se apresentam, e só então, numa análise retroativa, identifica-se o início dela;

c) o registro, portanto, não chega, sequer, ao nível de um elemento determinante da união estável, mas merece a classificação de indicativo dela, no sentido de que vale por uma insinuação apenas, tais quais a celebração religiosa, o contrato de convivênvia, a presença de prole, a locação de imóvel para moradia comum etc;

d) tendo por premissa a precariedade do instituto, derivada de sua própria estrutura (fiada na informalidade), que as eventuais reformas normativas, a exemplo da proposta do projeto Estatuto das Famílias, mantenham sob a competência jurisdicional a declaração e a extinção dos efeitos da união estável, mas, em abrindo à via administrativa essa competência, que faça exigências mínimas, a exemplo da Lei nº 11.441, de 04 de janeiro de 2007, que determina a assistência por advogado, nas separações e divórcios. Ao advogado caberá, no reconhecimento e extinção (em cartório) da união de direito, o importante munus que extrapola a representação das partes e o faz garantidor da ordem jurídica, abarcando, a um só tempo, o amplo papel fiscalizador que normalmente repousa nos ombros do juiz e do promotor de justiça;

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e) no leque das provas estão todas as admitidas em direito, mas descartou-se a possibilidade de se provar a união estável sob invocação da posse do estado de casados, pois entende-se que referida posse têm aqueles que se apresentam publicamente como marido e mulher e têm, cumulativamente, a intenção de assim parecer aos olhos da sociedade. Logo, só pode alegar posse do estado de casados quem contraiu casamento, pois quem vive informalmente, ainda que pareçam marido e mulher, nunca quiseram sê-lo, pois do contrário teriam optado pelas núpcias. Tecnicamente é possível alegar que têm a aparência de casados, pois esta é aferida objetivamente, sem exigir o animus que completa aquela posse; e

f) a exigência da prova, aos companheiros, de seu estado civil familiar, embora nem mesmo haja previsão legal expressa acerca desse estado, entende-se que é legítima, dada a imperiosa necessidade de se garantir a segurança jurídica. Ocorre que hoje somente em juízo será possível produzir essa prova; quando cotidianamente, por despreparo da sociedade, um simples registro público, de uma declaração de pretensa união estável, é admitido como forma de prova dessa condição jurídica, tem-se a banalização do instituto jurídico e os conseqüentes efeitos perniciosos dessa operação torta do direito.


7. REFERÊNCIAS

CASTILHO, Maria Augusta. Roteiro para elaboração de monografia em ciências jurídicas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. v. 5.

GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Direito Civil: Família. São Paulo: Atlas S.A., 2008.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2005. v. VI.

HIRONAKA, Giselda M. F. Novaes. (Org.). Direito de Família. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, v. 7.

LISBOA, Roberto Senise. Direito de Família e Sucessões. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, v. 5.

LÔBO, Paulo. Famílias. São Paulo: Saraiva, 2008.

MATIELLO, Fabrício Zamprogna. Código Civil Comentado. 2. ed. São Paulo: LTr, 2005.

MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 1995.

MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil. 37. ed. Atualização por Regina Beatriz Tavares da Silva. São Paulo: Saraiva, 2004. v. 2.

PATIÑO, Ana Paula Corrêa. Direito Civil: Direitos de Família. São Paulo: Atlas S.A., 2006, v. 8.

REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. 28. Ed. Atualização por Francisco José Cahali. São Paulo: Saraiva, 2004. v. 6.

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: direito de família. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2008. v. 7.


Notas

  1. Somente o frescor da união estável explica a preocupação do legislador em definir o instituto, pois não é do feitio da sistemática brasileira tomar o lugar da doutrina. Assim, apesar da boa técnica legislativa, foi conveniente definir, por se tratar de uma novidade.
  2. Diferença de sexo + intuitu familiae pressupõem naturalmente a afetividade, o que diferencia a união estável de outros relacionamentos que não têm no amor o valor fundante, mas noutros sentimentos: amizade (por exemplo: república de estudantes), religião (por exemplo: missão), mútua cooperação (por exemplo: idosos que se amparam), conveniência e parentesco (por exemplo: idosos que se amparam, viúvas).
  3. Estado civil familiar, vulgarmente chamado apenas de estado civil, é uma das formas de se identificar a pessoa natural. Esta é identificada pelo nome, estado civil e domicílio. O estado civil pode ser individual (branco, gordo, alto, saudável, analfabeto etc), familiar (solteiro, casado, viúvo, convivente, divorciado, filho, pai, maior, incapaz etc) e político (nacional, estrangeiro, nato, naturalizado). Portanto, em boa técnica deve-se dizer estado civil familiar para referir-se à condição jurídica de solteiro, casado, viúvo, divorciado, separado de direito, separado de fato e, no caso do convivente em união estável, será convivente ou em união estável ou, ainda, convivente em união estável. Embora eu entenda, com convicção, que já exista esse estado civil familiar na atual sistemática, a maioria não comunga desta idéia, tanto que há um projeto de lei denominado Estatuto das Famílias propondo a inclusão do estado civil de convivente.
  4. Leigo ou laico é o Estado sem culto oficial. Com o separatismo (ideal republicano), Estado e Igreja assumem papéis institucionais autônomos: ao Estado os assuntos típicos da cidadania; à Igreja, os assuntos da alma. O Estado, sem religião, garante a liberdade de culto.
  5. Certamente revogadas inteiramente na matéria de direito de família, não inteiramente na matéria sucessória, uma vez que da Lei nº 9.278/96 aplica-se o direito real de habitação do companheiro, pois nisto é lacunoso o Código Civil. Propositalmente, todavia, digo, in casu, que foram revogadas, ao invés de derrogadas, com a intenção de ser mais claro.
  6. Que não pode ser confundida com casamento religioso com efeitos civis. Este instituto trata de espécie válida de casamento civil, em que os nubentes, além na celebração no culto, segundo sua fé, cumprem com exigências da lei civil.
  7. Este o nosso posicionamento, que refuta a escola que diz ser a capacidade nupcial coincidente com o fim da menoridade, sob o argumento de que a lei exige autorização dos pais se os nubentes têm entre 16 e 18 anos. Essa autorização não significa suprimento do consentimento, mas apenas realça a importância do negócio jurídico a esses nubentes mais jovens (mas, capacitados para as núpcias).
  8. O ato-fato jurídico dispensa a manifestação da vontade (embora exista), onde a relação meramente fática, em seu apriori, torna-se jurídica com a incidência normativa. O ato jurídico em sentido amplo é relação jurídica e a vontade está contida no núcleo, como causa e base do fenômeno. Enquanto o ato jurídico se subsume à norma desde o nascedouro, e por isso mesmo é ato jurídico, o ato-fato convívio more uxorio, enriquecido com a passagem do tempo, passa a se subsumir à norma.
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Sobre o autor
Delmiro Porto

Advogado Familiarista - Família e Sucessões. Leciona na Universidade Católica Dom Bosco. Coord. da Pós-Graduação em Direito Civil, com ênfase em Família e Sucessões. Adjunto Jurídico aposentado do Comando da Aeronáutica.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PORTO, Delmiro. União estável sob os ângulos da informalidade e da prova. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2411, 6 fev. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14280. Acesso em: 2 mai. 2024.

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