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Terra indígena e suas implicações constitucionais

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1. Introdução

O presente artigo procura aclarar algumas perspectivas acerca das implicações constitucionais envolvendo as terras indígenas, em especial a precariedade das ocupações por não-índios sobre elas. Fruto da experiência do autor quando do exercício do cargo de Procurador Federal da Procuradoria Federal Especializada da FUNAI nos anos de 2006 a 2007, o texto que se segue procura de alguma maneira trazer apontamentos sobre a temática.


2. Nulidade de atos envolvendo a ocupação, o domínio e a posse das terras indígenas

A Constituição Federal de 1988, em seu § 6º, do art. 231, declara a nulidade de qualquer ato envolvendo a ocupação, o domínio e a posse de terras indígenas, nos termos seguintes:

"Art. 231. ....................................................

§ 6º - São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo,..." (Sem destaques no original)

A ocupação de terras indígenas por particulares, a qualquer título, é írrita e de nenhum efeito, por pertencer aos índios a posse do seu território, como direito originário.

A Lei nº 6.001, de 19.12.1973 – Estatuto do Índio, recepcionado pela Constituição Federal, estabelece que a nulidade aplica-se as terras desocupadas pelos índios em virtude de ato ilegítimo de autoridade ou de particular, nos termos seguintes:

"Art. 62. Ficam declaradas a nulidade e a extinção dos efeitos jurídicos dos atos de qualquer natureza que tenham por objeto o domínio, a posse ou a ocupação das terras habitadas pelos índios ou comunidades indígenas.

§ 1º. Aplica-se o disposto neste artigo às terras que tenham sido desocupadas pelos índios ou comunidades indígenas em virtude de ato ilegítimo de Requerentesidade ou particular." (Sem destaques no original)

A Constituição Federal de 1988, ao conferir aos índios "direitos originários" sobre suas terras, reconheceu que seu direito independe de legitimação, declarando a nulidade dos atos envolvendo o domínio, a posse e a ocupação de terras indígenas por particulares.

O Juiz FERNANDO DA COSTA TOURINHO NETO esclareceu o alcance da nulidade da titulação de não-índios, prevista na Constituição Federal, nos termos seguintes:

"Se aos índios é assegurada a posse permanente - sem limite temporal - das terras que ocupam - posse no sentido não civilista -, terras essas da União, não há como perdê-la para terceiros, ainda que estejam estes de boa fé. O § 6º do art. 231 da Constituição estatui:

"São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo (...)"

A transcrição no Registro de Imóveis não expunge os vícios. Não dá validade ao ato." (OS DIREITOS INDÍGENAS E A CONSTITUIÇÃO - - Núcleo de Direitos Indígenas e Sérgio Antônio Fabris Editor - pág. 38 - Porto Alegre – 1993 - Sem destaques no original).

O TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 1ª REGIÃO decidiu pela ineficácia da aquisição ou titulação de terceiros, que não traduz posse justa, nos termos seguintes:

"PROCESSO CIVIL. CONSTITUCIONAL. INTERDITO PROIBITÓRIO. TERRA INDÍGENA. POSSE DE BOA FÉ. JUSTO TÍTULO MAS INEFICAZ.

(...)

II – Não importa como o não-índio adquiriu as terras indígenas, se de boa ou má fé. A boa fé só interessa para o fim de discutir indenização.

III – A posse de boa fé não significa posse justa. O Título pode até ser justo – justo título – mas não ter eficácia, por exemplo, porque o transmitente não tem o direito de propriedade, não é dono (a domínio). E, assim, na verdade, o domínio não se transmite." (TRF-1ª Região – AC nº 01000239168/MT - Terceira Turma – Rel. Des. Toutinho Neto – Publ. De 30.09.1999, pág. 76).

ADMINISTRATIVO. DESAPROPRIAÇÃO INDIRETA. CADEIA DOMINIAL. AQUISIÇÃO DE DOMÍNIO DE IMÓVEL. SUB-ROGAÇÃO. RESERVA INDÍGENA. NULIDADE DE TITULO. RESERVA BIOLOGICA. CABIMENTO. INDENIZAÇÃO. LAUDO OFICIAL. COBERTURA VEGETAL. JUROS COMPENSATÓRIOS E MORATÓRIOS. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. CUSTAS PROCESSUAIS.

1. Estando os títulos de domínio do apelante, devidamente registrados, filiados à cadeia sucessória regular, ainda que outro cartório, assiste-lhe o direito de pedir indenização por apossamento indevido por parte do Poder Público, com a propositura da ação de desapropriação indireta.

2. omissis...

3. Após a Constituição de 1988, são considerados nulos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras indígenas (§ 6º do art. 231). É nulo, portanto, o título de domínio de gleba que se encontre inserida em Reserva Indígena, não ensejando, assim, o pretendido direito indenizatório por desapossamento administrativo.

4. omissis...

9. Provimento parcial da apelação. (TRF-1ª Região – AC nº 1998.37.00.000605-2/MA; Relator: Desembargador Federal Olindo Menezes. 3ª Turma. Publicação: 18/05/2007 DJ p.16).


3. Inalienabilidade e indisponibilidade das Terras Indígenas

As terras indígenas, como bens da União, não podem ser reduzidas para atender interesses tão-somente econômicos de particulares, em detrimento dos direitos coletivos indígenas e do patrimônio da União, reconhecidos constitucionalmente.

A indisponibilidade e a inalienabilidade das terras indígenas não autorizam a pretensão da presente ação cautelar, que visa a redução daquele patrimônio indisponível da União, enquanto o procedimento administrativo demarcatório e sua homologação não trazem quaisquer vícios de legalidade.

A Constituição Federal, o Estatuto do Índio e a jurisprudência estabelecem a indisponibilidade e inalienabilidade das terras indígenas, nos termos seguintes:

a) Constituição Federal:

"Art.231. ......................................

§ 4º As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis.

b) Estatuto do Índio:

Art. 38. As terras indígenas são inusucapíveis e sobre elas não poderá recair desapropriação salvo o previsto no art. 20."

c) Jurisprudência:

PROCESSUAL CIVIL E CONSTITUCIONAL. AÇÃO PETITÓRIA. AUSÊNCIA DE PRESSUPOSTO ESPECÍFICO DA TUTELA POSSESSÓRIA. IRRELEVÂNCIA. TERRA INDÍGENA DEMARCADA. DESOCUPAÇÃO PELOS NÃO ÍNDIOS. NULIDADE DOS TÍTULOS DOMINIAIS EXPEDIDOS EM FAVOR DE PARTICULARES. INDENIZAÇÃO PELA TERRA NUA. NÃO CABIMENTO. INDENIZAÇÃO POR BENFEITORIAS. RESTRIÇÃO AO PERÍODO DE OCUPAÇÃO DE BOA-FÉ. INDENIZAÇÃO PAGA ADMINISTRATIVAMENTE. INCIDÊNCIA DE CORREÇÃO MONETÁRIA. JUROS DE MORA. INCIDÊNCIA SOBRE AS DIFERENÇAS DE INDENIZAÇÃO. JUROS COMPENSATÓRIOS. NÃO CABIMENTO. SUCUMBÊNCIA RECÍPROCA. COMPENSAÇÃO PROPORCIONAL.

1. O nome atribuído à ação se afigura irrelevante para a aferição da sua natureza; para tal fim, deve-se analisar a causa de pedir e os pedidos expostos na petição inicial.

2. A peça vestibular sustenta que a Comunidade MAXACALI teria direito à posse da área questionada, sob o fundamento de que se trata de terra por ela ocupada tradicionalmente e já demarcada pela União.

3. Ostenta caráter predominantemente petitório a ação que se baseia principalmente no jus possidendi reconhecido pelo art. 231 da Constituição Federal.

4. Tratando-se de ação petitória, afigura-se despicienda a alegação de ausência de um dos pressupostos específicos da tutela possessória, qual seja, a prova de posse anterior.

5. Estando a área em discussão demarcada como terra indígena, incide inevitavelmente a norma do art. 231, §2º, da Lei Maior, segundo a qual "as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhe o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes".

6. O fato de os réus terem títulos dominiais originariamente expedidos pela RURALMINAS e de exercerem ocupação que data de várias décadas não restringe o direito que a Constituição assegura aos indígenas.

7. Segundo o art. 231, §6º, da Lei Fundamental, "são nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes".

8. Não há direito adquirido contra a Constituição, eis que o poder constituinte originário "é ilimitado e autônomo, pois não está de modo algum limitado pelo direito anterior, não tendo que respeitar os limites postos pelo direito positivo antecessor" (Alexandre de Moraes).

9. Nem mesmo os ocupantes de boa-fé de terras indígenas ostentam contra a União (ou a FUNAI) direito à indenização pela terra nua (art. 231, §6º, CF/88).

10. O fato de os réus-reconvintes terem pago pela terra somente lhes possibilita postular os direitos que resultam da evicção contra quem lhes alienou indevidamente a área indígena.

11. As circunstâncias comprovadas nos autos geram a presunção de que os réus-reconvintes passaram, ao menos desde setembro de 1989, a terem conhecimento de que as terras por eles ocupadas poderiam se tratar de áreas indígenas.

12. A ciência inequívoca da pretensão governamental de demarcar determinada área como terra tradicionalmente ocupada por indígenas elide a boa-fé de sua ocupação pelos não índios, na medida em que estes deixam de ignorar o vício ou o obstáculo que lhes impede a aquisição da coisa (arts. 490 e 491, CC/16).

13. Não se exige prévia decisão judicial para que se elida a boa-fé da posse ou da ocupação injusta.

14. Caracterizando-se como de má-fé a ocupação exercida pelos réus-reconvintes a partir de setembro de 1989, não fazem eles jus à indenização de qualquer benfeitoria realizada na área desde então, consoante norma expressa do art. 231, §6º, da Constituição Federal.

15. A indenização paga administrativamente deve ser corrigida entre a data da última atualização e o seu pagamento.

16.omissis...

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22. Apelação dos réus-reconvintes não provida. Remessa oficial parcialmente provida. Apelação do Ministério Público Federal prejudicada.

"As terras habitadas pelos silvícolas são inalienáveis. São nulos os atos que tenham por objeto o domínio e a posse dessas terras, sem que seus ocupantes tenham direito a qualquer ação ou indenização contra a União ou a Fundação Nacional do Índio. Constituição Federal, art. 198. O Objetivo da norma Constitucional, ao transformar às áreas ocupadas pelos índios em terras inalienáveis foi o de preservar o habitat de uma gente, sem cogitar de defender à sua posse, mas dentro do sadio propósito de preservar um patrimônio territorial, que é razão de ser da própria existência dos índios. ..." (TFR - Apelação Cível nº 3.078-MT - Rel. Min. Adhemar Raymundo - DJ de 21.05.1981)

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4. Posse Indígena e seu alcance constitucional

A Constituição Federal de 1988 estabelece a destinação efetiva das terras indígenas para a posse permanente dos índios e de suas comunidades, de conformidade com o § 2º, do seu art. 231, nos termos seguintes:

"Art. 231................................................................................

§ 2º - As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes."

O jurista JOSÉ AFONSO DA SILVA esclarece que a permanência indígena exigida pela Constituição de 1988 diz respeito não a um pressuposto do passado, mas uma garantia para o futuro, nos termos seguintes:

"Quando a Constituição declara caber aos silvícolas a posse permanente das terras por eles habitadas, isto não significa um simples pressuposto do passado como ocupação efetiva, mas, especialmente, uma garantia para o futuro, no sentido de que essas terras inalienáveis são destinadas, para sempre, ao seu habitat." (Transcrição do Livro "Os Direitos Indígenas e a Constituição - Núcleo de Direitos Indígenas e Sérgio Antônio Fabris Editor - pág. 22 - Porto Alegre – 1993).

O Tribunal Regional Federal da 1ª Região decidiu que a garantia para o futuro das terras indígenas autorizam a sua restituição aos índios, ainda que delas afastados, nos termos seguintes:

"AÇÃO POSSESSÓRIA – COMUNIDADE INDÍGENA PATAXO HÃHÃHÃE – PROVA DE OCUPAÇÃO IMEMORIAL – ART. 231, PARÁGRAFO 2ºM DA CARTA POLÍTICA – REINTEGRAÇÃO.

1. O artigo 231, parágrafo 2º, da Constituição Federal, consagrou a posse permanente aos silvícolas das terras tradicionalmente ocupadas, mantendo-se sua perenidade para sempre ao projetar o verbo "destinam-se".

2.Por isso, ainda que tenham os índios perdido a posse por longos anos, por configurar direito indisponível, podem postular sua restituição, desde que ela, obviamente, decorra de tradicional (imemorial, antiga), equivalente a verdadeiro pedido reivindicatório da coisa.

3. Comprovado que os silvicolas ostentavam posse imemorial, é procedente a reintegração.

4. Apelação desprovida. " (TRF-1ª Região – AC nº 1999.01.00.030341-8 – Rel. Des. Evandro Reimão dos Reis – Julg. de 03.04.2002)

5. Inexistência de direito adquirido contra a Constituição

Verifica-se que contra a constituição não há direito adquirido, como salientou o Ministro Moreira Alves, nos termos seguintes:

"As normas constitucionais se aplicam de imediato, sem que se possa invocar contra elas a figura do direito adquirido, mesmo nas constituições que vedam ao legislador ordinário e edição de leis retroativas, declarando que a lei nova não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada, esse preceito se dirige apenas ao legislador ordinário, e não ao constituinte, seja ele ordinário seja ele derivado." (RE n 94.414 - Sem destaques no original)

Para ALEXANDRE DE MORAES não há direito adquirido contra a Constituição, eis que o poder constituinte originário "é ilimitado e autônomo, pois não está de modo algum limitado pelo direito anterior, não tendo que respeitar os limites postos pelo direito positivo antecessor. (Curso de Direito Constitucional, Atlas, 2006.p.).

O jurista DALMO DE ABREU DALLARI esclarece a inexistência de direito adquirido contra a Constituição, nos termos seguintes:

"Em conclusão, apesar de todas variações havidas na legislação portuguesa e brasileira relativa às terras ocupadas pelos silvícolas, prevalecem os dispositivos da atual Constituição, contra os quais ninguém pode alegar direitos adquiridos.

E nos termos da Constituição vigente pertencem ao patrimônio da União as terras ocupadas pelos silvícolas, mas este tem direito à posse permanente dessas terras, tendo direito à proteção judicial dessa posse, sendo de nenhum valor um título de propriedade que afronte o domínio da União ou a posse dos silvícolas." (Terra dos Índios Xocó - Beatriz Góis Dantas e Dalmo de Abreu Dallari - pág. 11 – Sem destaques no original)


6. Conclusão

Ante o exposto, observa-se das normas constitucionais vigentes que o Constituinte Originário de 1988, na esteira das legislações anteriores, conferiu relevante proteção às terras ocupadas tradicionalmente pelos índios, atribuindo às ocupações de não-índios o defeito jurídico da nulidade dos respectivos atos de posse e "pseudo-domínio", eis que contra a Constituição não se pode invocar direitos.

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Sobre o autor
Flávio Marcondes Soares Rodrigues

Procurador Federal em Alagoas

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RODRIGUES, Flávio Marcondes Soares. Terra indígena e suas implicações constitucionais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2442, 9 mar. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14460. Acesso em: 19 abr. 2024.

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