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Direito de superfície e o aparente conflito de normas entre Código Civil e Estatuto da Cidade

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18/03/2010 às 00:00
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5 Direito de Superfície no Código Civil

Uma das mudanças mais marcantes do Código Civil de 2002 para o de 1916 foi que, no Livro III, dedicado ao direito das coisas, há previsão do direito de superfície como direito real sobre coisa alheia.

Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (401), em sua obra, introduzem o assunto da seguinte forma:

No projeto do Código Civil de 1916 houve a inserção da matéria por Clóvis Beviláqua, mas a Comissão Revisora suprimiu o ingresso da temática. Também estava a superfície alinhado no anteprojeto do Código Civil de Orlando Gomes de 1963. Mas, pioneiramente, o Estatuto da Cidade (Lei n. 10.157/01) regulamentou os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, introduzindo no ordenamento jurídico pátrio o direito de superfície. No Código Civil de 2002 a disciplina se instala no Livro do Direito das Coisas (arts. 1.369 a 1.377, do CC).

A finalidade do direito de superfície no Código Civil é atender às necessidades privadas.

A regra do Código Civil de 2002 é de que tudo que é plantado ou construído no solo é de propriedade do dono do solo. É o que consagra o art. 1.255 [17] do Código Civil.

Essa regra, porém, é relativizada com o direito de superfície. É que no caso do direito de superfície, a propriedade do que se plantou ou construiu será de propriedade desse terceiro que praticou o ato, permanecendo a propriedade do solo com seu proprietário.

Edílson Nobre Júnior leciona:

[o direito de superfície], como um direito incidente sobre um bem imóvel, independente do direito do solo sobre o qual é exercido. Tem como efeito excepcionar o brocardo latino quod solo inaedificatur solo cedit, consoante o qual tudo aquilo que é construído sobre o solo acede a este.

São essas as lições de Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald (401):

Há um fenômeno de superposição de duas propriedades distintas. Nesta bipolarização da propriedade, o superficiário e o proprietário do solo atuam em esferas distintas. Enquanto o superficiário adquire a propriedade resolúvel das acessões (construções e plantações), o proprietário mantém a titularidade sobre o solo. Ou seja: ao contrário da dogmática dos direitos reais tradicionais de fruição (v.g.enfiteuse, usufruto), não há um desdobramento dos poderes dominiais, e sim a criação de duas propriedades autônomas.

Nota-se que no direito de superfície não há uma relação de subordinação. São duas propriedades autônomas e horizontalmente fracionadas. Cada uma dessas propriedades mantém seus atributos de uso, fruição, disposição e reivindicação.

O direito de superfície é firmado em um contrato solene por escritura pública levada a registro. Como já visto, a escritura pública, neste caso, independe do valor do imóvel, pois trata-se de exigência do próprio artigo. É possível que as partes estipulem neste contrato qualquer cláusula, desde que não atinja a legislação urbanística.

Após essa solenidade, o direito real de superfície constitui-se como direito real imobiliário.

A propósito, a superfície insere-se no Código Civil de 2002 em um rol numerus clausus de direitos reais (art. 1.225, II [18], CC).

Há uma diferença marcante entre a superfície prevista no Estatuto e a prevista no Código Civil. Esta só pode se dar por prazo determinado, enquanto que aquela admite estipulação por prazo indeterminado. Note-se que nenhuma delas permite a superfície perpetuamente.

O bem que será concedido em superfície é, num primeiro momento, incorpóreo. Após, o superficiário dará forma a esta superfície, construindo ou plantando.

Pelo Art. 1369 [19], CC, percebe-se que o legislador quis excluir a denominada superfície por cisão, ou seja, superfície de construções já edificadas antes do nascimento da superfície. Porém, a III Jornada de Direito Civil deu outra interpretação ao artigo, afirmando admitir-se a constituição do direito de superfície por cisão, o que pode ter grande utilidade no caso das construções mal conservadas.

Aqui, há também a possibilidade de disposição do direito de superfície, por transferência a terceiros via negócio jurídico ou pela sucessão dos herdeiros. Por obvio, diante da transmissão, o direito de superfície perdurará pelo tempo restante.

Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald observam (407):

... nada impede que seja o direito de superfície objeto de transferência por legado, em razão de disposições testamentárias, com a possibilidade de inserção de cláusula de inalienabilidade da propriedade superficiária. Cuida-se de negócio jurídico mortis causa, que aqui poderia se aplicar sem lesão a normas de ordem pública.

O Art. 1369, parágrafo único [20], não autoriza obra no subsolo, exceto se isso for inerente à concessão feita, como, por exemplo, abertura de poço artesiano e canalização de águas até o local da plantação.

O direito de superfície poderá ser concedido de forma gratuita ou onerosa. Se onerosa, as partes podem estipular se o pagamento será integral ou parceladamente. A remuneração periódica do proprietário é chamada solarium ou cânon superficiário. Se gratuita, ainda assim será de grande utilidade para ambos os envolvidos, já que o proprietário, ao final, receberá o imóvel valorizado, sem ter investido para isso; ao passo que o superficiário terá tirado proveito econômico do mesmo enquanto durou a superfície.

Em todo o caso, o superficiário é quem deverá arcar com os encargos e tributos que incidirem sobre o imóvel. Não obstante a disposição expressa no Art. 1371 [21], as partes poderão estipular sobre o pagamento desses valores de forma proporcional entre o proprietário e o superficiário.

Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald fazem uma observação interessante (409):

Não observamos inconstitucionalidade na regra, por suposta violação ao Art. 146, III, da Constituição Federal, que exigiria reserva de lei complementar para a definição de contribuintes e de tributos. Em sentido diverso, o Código Civil não criou nova espécie de contribuinte, e sim um responsável patrimonial em caráter de solidariedade passiva com o proprietário – contribuinte -, medida factível por meio de lei ordinária (art. 128 do CTN). Enquanto o contribuinte tem vínculo pessoal e direto com o fato imponível, o responsável se relaciona apenas de forma mediata com o fato gerador. Em suma, o poder público poderá cobrar as obrigações tributárias do proprietário ou do superficiário, ou mesmo de ambos.

Como ocorre no Estatuto, ocorrendo a alienação da superfície ou do imóvel, caberá ao proprietário ou superficiário, respectivamente, a preferência na aquisição daqueles.

Segundo Maria Helena Diniz (1097):

Aquele que preterir o direito de preferência do outro deverá pagar indenização pelas perdas e danos, e o preterido poderá depositar em juízo o valor igual ao pago pelo terceiro.

O Código ainda permite que o proprietário extinga o contrato no caso do superficiário dar destinação diversa à pactuada, sendo a extinção uma conseqüência do desvio de finalidade.

A extinção da concessão da superfície deverá ser averbada no Cartório de Registros Imobiliários. A partir daí, o proprietário do imóvel volta ter o domínio pleno, independente de indenização sobre a construção ou plantação realizada, salvo disposição expressa em contrário no contrato que instituiu a superfície.

Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald (405) fazem uma importante observação quanto à destinação diversa da superfície:

... poderá o superficiário constituir ônus reais sobre o seu direito de propriedade, concedendo parcelas dominiais para a formação de direitos reais em coisa alheia, como o usufruto, servidão e direito de habitação.

Neste sentido, na III Jornada de Direito Civil do Conselho de Justiça Federal, aprovou o seguinte enunciado:

Enunciado n. 249: a propriedade superficiária pode ser autonomamente objeto de direitos reais de gozo e de garantia, cujo prazo não exceda a duração da concessão da superfície, não se lhe aplicando o art. 1474 [22].

Nos casos de desapropriação, a indenização deverá ser repartida entre o proprietário e o superficiário, do mesmo modo que ocorre no Estatuto da Cidade, no valor que corresponder ao direito de cada um deles.


6 Conflito aparente de normas

Como o direito de superfície acabou sendo reintroduzido no ordenamento jurídico por meio de dois diplomas legais distintos, faz-se necessário saber se houve a revogação do Estatuto da Cidade frente ao Novo Código Civil, no que tange ao direito de superfície.

Tendo em vista o Código Civil ter regulado a mesma matéria que já estava tratada no Estatuto da Cidade, alguns afirmam que o Código Civil teria revogado o Estatuto nesta matéria, segundo o §1º, Art. 2º da Lei de Introdução do Código Civil, que assim dispõe:

§ 1º A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.

Este é o raciocínio com o qual coaduna J. Miguel Lobato Gómez:

O Novo Código Civil é posterior à Constituição e, praticamente, a todas as leis especiais vigentes, incluindo o Estatuto da Cidade. Além disso, não cabe dúvida que os princípios fundamentais que inspiram o novo Código em matéria patrimonial podem considerar-se formal e materialmente, conformas a atual Carta Magna do Brasil, especialmente em matéria de função social da propriedade e do contrato. Portanto, ninguém pode argumentar que o código civil vigente, por mais que seja o resultado de um processo iniciado nos anos setenta, por mais que assuma conceitos, regras e princípios de direito patrimonial já consagrados no vetusto texto de 1916, não teve em conta a Constituição e não respeitou seus princípios fundamentais. Além disso, embora seja uma lei geral, é uma lei posterior que, se não derroga por completo nenhuma lei anterior, ao menos derroga tacitamente todos os preceitos das leis vigentes com antecedência, gerais e especiais, em tudo o que sejam claramente contrárias ou se oponham ao estabelecido nelas.

Noutro giro, há doutrinadores que apontam que o critério que deve prevalecer nesse conflito de normas é o da especialidade. Afirmam que o Estatuto da Cidade seria um microssistema, assim como o Código de Defesa do Consumidor.

Em casos como este, a prudência deve imperar, conforme ensina Maria Helena Diniz (2001:90):

Em caso de antinomia entre o critério de especialidade e o cronológico, valeria o metacritério lex posterior generalis non derrogat priori speciali, segundo o qual a regra de especialidade prevaleceria sobre a cronológica. Esse critério é parcialmente inefetivo, por ser menos seguro do que o anterior, podendo gerar uma antinomia real. A meta-regra lex posterior generalis non derrogat priori speciali não tem valor absoluto, dado que, às vezes, lex posterior generalis derogat priori speciali, tendo em vista certas circunstâncias presentes. A preferência entre um critério e outro não é evidente, pois se constata uma oscilação entre eles. Não há uma regra definida; conforme o caso, haverá supremacia ora de um, ora de outro critério.

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Diante disso, não houve revogação e os dois diplomas legais co-existem, cada um em seu campo de incidência. Esta é a orientação aprovada na I Jornada de Direito Civil:

Enunciado n. 93 – As normas previstas no Código Civil, regulando o direito de superfície, não revogam as normas relativas a direito de superfície constantes do Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001), por ser um instrumento de política urbana.

Desta forma, prevalece o entendimento de que os dois diplomas convivem no que diz respeito ao direito de superfície. Não obstante, outra discussão é travada. Visando estabelecer o critério de fixação da especialidade, para saber qual a lei aplicável ao caso concreto.

Sarmento Filho (2008) resume a polêmica que envolve o tema:

Em primeiro lugar, existem aqueles que elegem como objeto determinante da especialidade o fator localização do imóvel (a). Desse modo, quando o imóvel sobre o qual se institui a superfície se localizar em área urbana, aplica-se o Estatuto da Cidade, ao passo que o Código Civil estaria reservado aos imóveis rurais.

Outros, por sua vez, consideram que a especialidade do Estatuto da Cidade não seria no sentido de aplicá-lo sempre que o solo fosse urbano, mas sim quando o direito superficiário fosse utilizado como instrumento de política urbanística (b).

Destarte, nos casos em que o direito de superfície não fosse utilizado como instrumento de política urbana, mas como simples aproveitamento econômico da propriedade pelos particulares incidiria o Código Civil, mesmo que o solo fosse situado no perímetro urbano.

Isto porque o Estatuto da Cidade, Lei n. 10.257/01, foi editado para dar cumprimento ao artigo 182 da CF/88, que trata da política de desenvolvimento urbano.

Assim, o que esses doutrinadores têm a dizer é que o Código Civil traz um direito de superfície como instrumento destinado a atender interesses e necessidades privados, ao passo que no Estatuto da Cidade, o direito de superfície é voltado para atender as necessidades do desenvolvimento urbano, viabilizando a função social da cidade. Destarte, o caso concreto, dentro desses motivos, determinaria qual o diploma legal o regeria.

Mesmo porque o Código Civil não revogou expressamente a lei especial, como o fez no caso do Código Comercial, o que demonstra que a vontade do legislador não foi a de revogar o Estatuto da Cidade.

Na verdade, o caso concreto dirá se é caso de aplicação do Estatuto da Cidade, do Código Civil ou dos dois, pois o aplicador do direito deve buscar harmonizar as normas provenientes de múltiplas fontes.

Por isso, Sarmento Filho (2008) exemplifica:

... se o município, por exemplo, desafetar uma praça e instituir o direito de superfície para explorar como estacionamento, incidirá as regras do Estatuto da Cidade.

Se, todavia, é o particular que constrói uma piscina no terreno vizinho sob o regime superficiário, aplicar-se-ia o Código Civil.

Percebe-se que não há incompatibilidade entre os dois regramentos, havendo apenas antinomias aparentes, facilmente superadas pelo diálogo das fontes.

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Sobre o autor
Ivo Jorge Rocha Teixeira

Servidor do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, Especialista em direito público pela Universidade Gama Filho, Bacharel em Direito pela UFMG

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TEIXEIRA, Ivo Jorge Rocha. Direito de superfície e o aparente conflito de normas entre Código Civil e Estatuto da Cidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2451, 18 mar. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14506. Acesso em: 19 mai. 2024.

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