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Considerações acerca dos maus antecedentes criminais

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3.Uma interpretação dos maus antecedentes à luz da Constituição Federal de 1988.

O art. 5º, LVII da CRFB expressa claramente que "[...] ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória". Isso significa que antes do surgimento de sentença crime de cunho definitivo, uma pessoa não pode ser tida como responsável por algum delito; presume-se que seja inocente.

De acordo com Alexandre de Moraes em seu "Direito Constitucional":

Dessa forma, há a necessidade de o Estado comprovar a culpabilidade do indivíduo, que é constitucionalmente presumido inocente, sob pena de voltarmos ao total arbítrio estatal. (2003, p.132.)

Em seguimento ao apresentado por Moraes, o corolário da presunção de inocência existe para evitar que uma pessoa sofra coações nos direitos e na liberdade de ir e vir, antes que sua responsabilidade tenha sido apurada em definitivo. A lei prevê exceções, como nas prisões de cunho cautelar, que apenas existem para resguardo da ordem jurídica e coesa vida na sociedade, ocorrendo em caráter de exceção [04].

O princípio da presunção de inocência, em continuidade ao raciocínio do autor referido, evita que o Brasil retorne a um Estado de Exceção ou arbítrio estatal, no qual é necessário provar a inocência, ao invés de presumi-la. Apesar de ser conhecido que muitos são contumazes, deve-se considerar por sua candidez [05] para que se evite a condenação indiscriminada de acusados, como ocorreu na época ditatorial pela qual o país passou. Acerca do assunto ensina o STF, no HC 73.338, que

Nenhuma acusação penal se presume provada. Não compete ao réu demonstrar a sua inocência. Cabe ao Ministério Público comprovar, de forma inequívoca, a culpabilidade do acusado. Já não mais prevalece, em nosso sistema de direito positivo, a regra, que, em dado momento histórico do processo político brasileiro (Estado Novo), criou, para o réu, com a falta de pudor que caracteriza os regimes autoritários, a obrigação de o acusado provar a sua própria inocência (Decreto-Lei nº 88, de 20/12/37, art. 20, nº 5). Não se justifica, sem base probatória idônea, a formulação possível de qualquer juízo condenatório, que deve sempre assentar-se — para que se qualifique como ato revestido de validade ético-jurídica — em elementos de certeza, os quais, ao dissiparem ambigüidades, ao esclarecerem situações equívocas e ao desfazerem dados eivados de obscuridade, revelam-se capazes de informar, com objetividade, o órgão judiciário competente, afastando, desse modo, dúvidas razoáveis, sérias e fundadas que poderiam conduzir qualquer magistrado ou Tribunal a pronunciar o non liquet. (STF-HC 73.338, Rel. Min. Celso De Mello, DJ 19/12/96)

O princípio da presunção de inocência visa evitar arbitrariedades na responsabilização criminal de acusados, para que não sejam considerados culpados, até que o Poder Judiciário tenha se pronunciado em caráter definitivo acerca da questão. Se tem por escopo afastar a incriminação precoce, porque a presunção de inocência deve ser deixada de lado no momento de considerar a culpabilidade para aplicação da pena?

Permitir que processos e investigações em curso sirvam a maus antecedentes é simplesmente aceitar que o poder judiciário adote pesos e medidas diferenciados numa mesma circunstância: se a pessoa é presumida inocente durante toda a persecução criminal, porque no momento da dosimetria da pena, antes do trânsito em julgado da decisão, o julgador deve deixar de lado essa suposição?

É inadequado que o juiz considere ações em andamento e inquéritos policiais como provas de que a pessoa tem má índole.

No caso de processos em andamento, é notório que o Direito Penal consta de inúmeros meandros pelos quais o acusado e até réu confesso é absolvido. Não são raros os casos de reconhecimento do princípio da insignificância, da inexigibilidade de conduta diversa, atipicidade da conduta, ausência de provas ou prescrição. Por causa disso que processos em que foi reconhecida a prescrição também não podem ser considerados maleficamente.

Já nos boletins de ocorrência, a situação se complica ainda mais, pois sequer são certeza do início de uma persecução criminal. Apenas visam à aquisição de indícios mínimos de autoria e materialidade, para que o parquet analise a viabilidade da propositura de uma ação. Além disso, percebe-se na atualidade que infelizmente é muito fácil a confecção de boletins de ocorrência buscando responsabilização penal de qualquer pessoa, sem a mínima procedência probatória. Em muitos delitos como os de ameaça, calúnia, injúria e outros, a mera palavra da vítima serve como prova inicial para que se dê embasamento a procedimento inquisitório!

Os casos em que acusados tiveram benefício da transação penal nos Juizados Especiais (art. 76 da Lei 9.099/95), ou da suspensão condicional do processo (art. 89 da Lei 9.099/95), também não podem ser levados em consideração. Tratam de políticas criminais que visam àqueles que cometem delitos de menor potencial ofensivo, e sequer geram reincidência [06].

A lógica da não-culpabilidade é muito clara e embasa-se na inexistência de certeza quanto à condenação, por mais que as provas pareçam conduzir a tal via. Se a lógica é da incerteza (pois um acusado noutros autos pode ser absolvido ao fim), porque o juiz poderia mudá-la tomando por base mera presunção de que poderá haver condenação?

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Por mais que o acusado responda por inúmeros processos criminais, e tenha vários boletins de ocorrência nos quais é investigado por crimes similares, a presunção de culpa só pode servir negativamente, se comprovada através de sentença condenatória com trânsito em julgado.

Olhando pelo prisma de outros princípios constitucionais que não o da presunção de inocência, é possível perceber que considerar boletins de ocorrência e processos criminais sem trânsito em julgado como embasamento para exasperação da pena-base, é também afronta aos corolários do devido processo legal, contraditório e ampla defesa.

No caso de afronta ao devido processo legal (art. 5º, LIV), ocorre nos inquéritos policiais porque neles apenas vige o sistema de inquisição, em que não há em efetivo, os direitos resguardados aos litigantes no processo. Nas ações em andamento, o devido processo legal ainda está sendo garantido, e por isso, não é possível considerar que tenha sido propiciado em sua plenitude.

Em relação ao contraditório e à ampla defesa (art. 5º LV), estes não são compulsórios nos inquéritos policiais, por causa da natureza inquisitorial de tal procedimento [07]. Nas ações em tramitação, estão a se concretizar, com fim somente quando houver trânsito em julgado da sentença.

Portanto, a tomada de processos criminais em curso e boletins de ocorrência como maus antecedentes para fins de exacerbação da pena-base também é desconsideração ao descrito no art. 5º, LIV e LV da CRFB. Não é possível culpabilizar alguém sem que lhe tenham sido garantidos todos os aparatos legais, apenas efetivamente propiciados quando finda a persecução criminal.


Considerações finais

Na recente sistemática jurisdicional inovada pelo STF em várias decisões que vêm garantindo de forma expressa o direito à liberdade, reconhecendo a excepcionalidade dos decretos segregatórios e a improcedência de prisões infundadas [08], não há dúvidas de que a interpretação que deve ser levada definitivamente a cabo é aquela que não aceita como maus antecedentes inquéritos e processos criminais em curso. Apenas podem ser levadas em conta condenações que não gerem os efeitos da reincidência.

Considerar o contrário é deixar de lado todo o trabalho que vem sendo feito em prol de uma Constituição garantista, que deve visar a evicção de qualquer presunção de culpabilidade.

Cabe destacar que a questão é inclusive tema de repercussão geral através do RE 591054/SC sob relatoria do Ministro Marco Aurélio. A repercussão foi noticiada no Informativo nº528, de 10 a 14 de novembro de 2008, e tem a seguinte ementa:

CRIMINAL - CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS - ARTIGO 59 DO CÓDIGO PENAL - PROCESSOS EM CURSO - PRESUNÇÃO DE NÃO-CULPABILIDADE - ALCANCE. Possui repercussão geral controvérsia sobre a possibilidade de processos em curso serem considerados maus antecedentes para efeito de dosimetria da pena, ante o princípio da presunção de não-culpabilidade. (STF- Inf. 528 de 10 a 14 de outubro de 2008.)

Tomando por base decisões anteriores proferidas pelo Ministro Marco Aurélio em alguns habeas corpus [09], a possibilidade de que seu voto seja no sentido da impropriedade dos maus antecedentes quando há processos em curso é muito grande. Resta saber qual será o posicionamento dos demais ministros, que pelo percebido em decisões mais recentes, provavelmente, em sua maioria, deverão seguir o voto do relator. [10]


Referências bibliográficas:

BITTENCOURT, Cézar. Código Penal Comentado. São Paulo: Saraiva, 2004.

CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 2004.

DELMANTO, Celso. Código Penal Comentado. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

GRECO, Rogério. Código Penal Comentado. São Paulo: Impetus, 2009.

HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1976. (Vol. II.)

MIRABETE, Julio Fabbrini. Código Penal Interpretado. São Paulo: Atlas, 2007.

MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal. São Paulo: Atlas, 2005.

MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal. São Paulo: Atlas, 1999.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 2003.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.

PEREIRA, Pedro H. S. O adventício da Lei n°11.464 e o direito à concessão de liberdade provisória no tráfico de entorpecentes. In: Revista Âmbito Jurídico. Disponível em: http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=6433. Publicado em 01 de julho de 2009. Nº 66 - Ano XII ISSN - 1518-0360.

STOCO, Rui. Código Penal e sua interpretação jurisprudencial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.


Notas

  1. Fixação da pena
  2. Art. 59. O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime. (grifou)

  3. Art. 68. A pena-base será fixada atendendo-se ao critério do artigo 59 deste Código; em seguida serão consideradas as circunstâncias atenuantes e agravantes; por último, as causas de diminuição e de aumento.
  4. A dosimetria ou aplicação da pena ocorre segundo o método trifásico previsto no artigo 68 do Código Penal. Primeiro, tomando por base os critérios delineados no art. 59 (culpabilidade, antecedentes, conduta social, personalidade, motivos, circunstâncias e conseqüências do crime, comportamento da vítima), o juiz definirá a pena-base que poderá ser aumentada, se forem desfavoráveis ao acusado. Depois o juiz toma parte das circunstâncias que atenuam ou agravam a pena (previstas nos arts. 61 a 66 do CP), para, ao fim, olhar pela incidência de alguma causa de diminuição ou aumento da reprimenda (exemplos dessas causas são art. 121, §1º e 4º; 129, §4º e 7º; 122, §, dentre outros).
  5. Sobre o tema, os processualistas penais Guilherme de Souza Nucci (2006, p.612) e Julio Fabbrini Mirabete (2000, p. 384.) deixam expresso que a prisão é sempre exceção, enquanto a liberdade é a regra. Acerca do assunto, ver artigo citado abaixo, acerca do adventício da Lei 11.464.
  6. In: PEREIRA, Pedro H. S. O adventício da Lei n°11.464 e o direito à concessão de liberdade provisória no tráfico de entorpecentes. In: Revista Âmbito Jurídico. Disponível em: http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=6433. Publicado em 01 de julho de 2009. Nº 66 - Ano XII ISSN - 1518-0360
  7. Nesse sentido é a jurisprudência sedimentada do STJs: "HABEAS CORPUS. [...] TRANSAÇÃO PENAL. CONSIDERAÇÃO COMO MAUS ANTECEDENTES. IMPOSSIBILIDADE. [...] "A sentença homologatória de transação penal, realizada nos moldes da Lei nº 9.099/95, não obstante o caráter condenatório impróprio que encerra, não gera reincidência, nem fomenta maus antecedentes. Precedentes do STJ." Ordem concedida. (STJ - HC 41532 SP 2005/0017475-6. Relator Min. José Arnaldo da Fonseca. 5ª T. Publicação: DJ 16.05.2005 p. 378.). EM mesmo sentido: HC 13525, Rel. Min. Fernando Gonçalves, DJ de 04.12.2000; REsp 153195/SP, Rel. Min. Fernando Gonçalves, DJ de 28.02.2000 e REsp 112995/PR, Rel. Min. Edson Vidigal, DJ de 17.12.1999.
  8. De acordo com Mirabete: "Indispensável em qualquer instrução criminal, o princípio do contraditório não se aplica ao inquérito policial que não é, em sentido estrito, "instrução", mas colheita de elementos que possibilitem a instauração do processo." (1999, p. 43.) Ainda: "Não é o inquérito ‘processo’, mas procedimento administrativo informativo, destinado a fornecer ao órgão da acusação o mínimo de elementos necessários à propositura da ação penal. A investigação procedida pela autoridade policial não se confunde com a instrução criminal, distinguindo o Código de Processo Penal o ‘inquérito policial’, arts. 4° a 23, da ‘instrução criminal’, arts. 394 a 405. Por essa razão, não se aplicam ao inquérito policial os princípios processuais já mencionados, itens 1.5.3. a 1.5.12, [dentre eles o devido processo legal e ampla defesa] nem mesmo o do contraditório." (2000, p. 77.)
  9. Sobre a excepcionalidade dos decretos segregatórios, importante relembrar do HC 84.078-7, em que o Min. Eros Grau reconheceu a inconstitucionalidade da execução antecipada da pena. O Mn. Celso de Mello, por sua vez, nos HC’s 93.883/SP, 90.313/PR e 98862, deixou claro que é necessário aferimento de concreta necessidade de cautela para que um decreto prisional possa ser mantido. Tal fundamento, junto à afronta ao corolário da presunção de inocência tem sido motivo para superação de alguns óbices à legalidade, como ocorreu no reconhecimento da inconstitucionalidade da vedação à Liberdade Provisória nos delitos de porte de arma (ADI 3.112) e tráfico de drogas (Liminar no HC 99278, e HC 103362).
  10. STF -RHC 80071 RS. Relator Min. Marco Aurélio. 2ª T. Publicação: DJ 02-04-2004 PP-00027 EMENT VOL-02146-03 PP-00679. STF - HC 79966 SP. Relator Min. Marco Aurélio. 2ª T. Publicação: DJ 29-08-2003 PP-00034 EMENT VOL-02121-15 PP-03023.
  11. O Min. Celso de Mello, por exemplo, tem decisão no HC 68465/DF, em que reconheceu a ilegalidade de maus antecedentes embasados em BO’s e processos em curso. Da mesma forma se manifestou o Min. Joaquim Barbosa na AO 1046 RR. No caso do Min. Gilmar Mendes, há de citar, por exemplo, decisão no HC 86186 GO, no qual considerou que processos em curso, não são fundamentos para segregação cautelar. Apesar de não tratar de decisão em específico acerca do assunto, na leitura do acórdão do HC, percebe-se o nítido posicionamento do ministro a favor do corolário da presunção de inocência. Tal teor também consta de decisão do Min. Cesar Peluso na MC no HC 100395 SP, e da decisão do Min. Eros Grau no HC 84.078-7. No caso da MIn. Carmen Lúcia, no HC 100647 MS, publicado em 04 de março de 2010, reforçou a tese de que processos em curso não têm condão de gerar maus antecedentes ao dizer que "A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça consolidaram o entendimento de que, em face do princípio da não-culpabilidade, inquéritos policiais e ações penais em curso não podem ser considerados como maus antecedentes ou má conduta social para exacerbar a pena-base." (STF- HC 100647/MS. Relatora Min. Carmen Lúcia. Publicação: DJe-040 DIVULG 04/03/2010 PUBLIC 05/03/2010.)
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Sobre os autores
Michelle Santiago de Oliveira Fonseca

Aluna do curso de Direito Direito pelo Instituto de Ensino Superior "Presidente Tancredo de Almeida Neves". Advogada estagiária.

Pedro Henrique Santana Pereira

É licenciado e bacharel em Filosofia pela Universidade Federal de São João del-Rei e Bacharel em Direito pelo Instituto de Ensino Superior Presidente Tancredo de Almeida Neves. Advogado militante e professor do curso de Direito do IPTAN- Instituto de Ensino Superior Presidente Tancredo de Almeida Neves. Pós-graduado em Direito Público pela UCAM e em Educação Ambiental pela UFSJ. Pós-graduando em Direito Ambiental e em Gestão de Pessoas e Projetos Sociais. Membro da Academia Sanjoanense de Letras e das Comissões de Meio Ambiente e de Comunicação da 37ª OAB/MG.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FONSECA, Michelle Santiago Oliveira ; PEREIRA, Pedro Henrique Santana. Considerações acerca dos maus antecedentes criminais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2521, 27 mai. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14920. Acesso em: 19 abr. 2024.

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