Sumário: A - Introdução: 1- Conceito de globalização. 2- Os efeitos da globalização sobre o Direito Internacional Público. 3- O espaço público internacional em formação; B Os Direitos Humanos e a "Globalização da Justiça": 1- Marcos históricos dos Direitos Humanos. 2- A Convenção de Viena e a consagração dos princípios da indivisibilidade, interdependência e universalidade. 3- O quadro normativo existente e a política brasileira de Direitos Humanos.; C- Conclusões: o futuro do Direito Internacional Público; D-Notas ; E.- Bibliografia
A- Introdução
A globalização, se entendida como um fenômeno tridimensional formado pela intensificação de fluxos diversos(1) (econômicos, financeiros, comunicacionais, religiosos); pela perda de controle do Estado sobre esses fluxos e sobre outros atores da cena internacional (Badie, 1999; Frangi e Schulz, 1995(2)) e pela diminuição de distâncias espaciais e temporais (Laïdi, 1994; Badie, 1999), cria expectativas de inovações político-jurídicas. Com efeito, esse fenômeno conduz ao questionamento do princípio da soberania, organizador das relações entre Estados (Cançado Trindade, 1999a; Smouts, 1998), e, conseqüentemente, da manutenção da ordem pública internacional. É nesse contexto de mutações aceleradas que as questões de direitos humanos estão sendo tratadas atualmente. Neste artigo, serão analisadas as conseqüências da globalização no âmbito da proteção internacional dos Direitos Humanos.
A . 1 - Conceito de "Globalização"
Considerando o primeiro e o terceiro níveis acima mencionados (intensificação de fluxos diversos e diminuição das distâncias), a tão propalada "globalização" constitui, na verdade, processo antigo. Teve seu início logo no período dos grandes descobrimentos, no século XV. Com efeito, as expedições lideradas pelo navegante genovês Cristóvão Colombo e financiadas pelo Reino de Castilla y Aragón romperam, em 1492, o isolamento entre o "Velho" e o "Novo Mundo" e implicaram crescente contato entre os países então existentes.
Sabe-se que, já no século XIX, a Revolução Industrial, com as inovações técnicas e tecnológicas nas indústrias e nos transportes, permitiu maior integração do mundo por meio da intensificação das trocas mercantis e do incremento de investimentos no estrangeiro. Seguiu-se, sem surpresa, a expansão acelerada das empresas multinacionais e conglomerados financeiros(3).
O fato é que, em geral, associa-se o fenômeno "globalização" a aspectos econômicos e financeiros atinentes ao passado recente. Sucede, contudo, que não são esses os únicos fatores a serem levados em consideração (Brunsvick e Danzin, 1999). É bem verdade que as últimas décadas têm testemunhado um aumento vertiginoso dos fluxos comerciais e financeiros, mas também se pode verificar um crescimento substancial dos contatos nos âmbitos cultural, social e até mesmo jurídico.
À guisa de melhor sistemática, podem ser destacados os seguintes aspectos daquele primeiro nível de internacionalização: a) comercial homogeneização das estruturas de demanda e oferta por empresas que estabelecem contratos de terceirização com produtores locais e comercializam os produtos sob suas próprias marcas (ex: Nike, Nestlé, Benetton, Carrefour); b) produtivo fenômeno da produção internacional de um bem para o qual concorrem diversas economias com diferentes insumos; c) financeiro aumento do fluxo de capitais, decorrente da automação bancária; d) sociocultural os mesmos instrumentos que permitem o aumento do fluxo de capitais (redes eletrônicas, televisão, satélites) constituem o atual sistema de comunicação, o que contribui para uma relativa homogeneização da cultura e dos padrões de comportamento nas sociedades; e) tecnológico incremento quantitativo e qualitativo das redes mundiais de comunicação e informação (Internet).
De um modo genérico, enfim, pode-se utilizar o termo para designar a crescente e acelerada transnacionalização das relações econômicas, financeiras, comerciais, tecnológicas, culturais e sociais que vem ocorrendo especialmente nos últimos vinte anos.
Sucede que também se pode conferir um caráter crescentemente "global" ao campo do Direito, haja vista o teor cada vez mais candente das discussões teóricas, políticas e jurídicas no que se refere à relatividade da noção clássica de soberania, com o fito de se redimensionar a questão da aplicação das normas de Direito das Gentes.
De fato, torna-se cada vez mais enfática e cristalina a idéia segundo a qual a proteção dos direitos humanos não é mais matéria de competência exclusiva das soberanias nacionais, nem pode ser esquivada sob o manto do relativismo cultural(4). Se antes as questões de direito internacional interessavam apenas aos Estados soberanos, agora elas são criadoras de uma imensa lacuna relativa às relações dos Estados com outros atores, como diversas organizações (notadamente as ONG´s), empresas multinacionais, indivíduos, minorias e grupos de interesse.
Certo é que tal intensificação de contato entre diversos atores trouxe consigo novas demandas de regulação das relações internacionais e a opinião pública de vários países tende a se unir - como porta-voz da Humanidade - para exigir respostas multilaterais contra Estados soberanos julgados culpados (Védrine, 2000)(5). Tal foi o caso no Iraque, Ruanda, Haiti, Bósnia, Kosovo, Timor Leste e Chechênia(6). Nota-se que a pressão da opinião pública na União Européia tem aumentado consideravelmente na década de 90, levando certos políticos à idéia de diplomacia de intervenção (nas questões econômicas), como mostraram exemplos franceses e nórdicos.
A . 2 - Direito Internacional Público e Globalização
Herdou-se o direito internacional do século XVIII, quando os filósofos europeus começaram a afirmar seus princípios, e os soberanos a colocar-lhes em prática (Duflo, 1999). Kant, por exemplo, já acreditava que a ordem internacional deveria ser construída por relações jurídicas e não por relações de poder ente os Estados soberanos - o que ele bem explicou nas suas obras Doctrine du droit e Projet de paix perpétuelle. Sua obra foi construída a partir da preocupação de garantir a propriedade individual (direito privado), a fim de garantir a paz universal (direito público) e chegar ao "direito cosmopolita" (dever de cada Estado de estabelecer relações jurídicas com os demais para defender seus interesses legítimos). Ainda que esse esquema seja discutível, é muito importante assinalar o esboço do direito internacional cujas esferas nacional, internacional, pública e privada estão interligadas.
O Direito Internacional, de uma maneira geral, e os Direitos Humanos, em particular, localizam-se no cenário descrito na medida em que se esboça continuamente uma idéia de "globalização da justiça". Com efeito, pode-se afirmar que o tema da defesa internacional dos direitos fundamentais do ser humano tem assumido uma configuração cada vez mais "global", eis que se exige dos Estados nacionais o cumprimento dos instrumentos jurídicos internacionais firmados que regulam a matéria. Exemplos recentes são as cobranças feitas pela União Européia à Turquia (que almeja integrar o seleto grupo dos Quinze), ou de ONG´s que denunciam a repressão política em países como a China. Cabe assinalar, ainda, as diversas querelas entre Estados duvidosamente democráticos e as ONG´s, tais como "Amnesty International"(7) e "Human Rights Watch".
O primeiro efeito da globalização, do ponto de vista da relação entre Estados soberanos, é a crescente demanda legítima por uma melhor regulação internacional. Contudo, as fontes dessa demanda causam também problema, porque não são apenas os Estados, mas todos os atores internacionais que conseguirem participar dos mecanismos decisórios. Por exemplo, quando ONG´s se unem para exigir o fim do trabalho escravo no mundo. Sucede que a necessidade dessa construção jurídica é acelerada ao mesmo tempo que a "fratura social"(8) entre Estados ricos e pobres tem se agravado(9). A ordem internacional tende a ser reformada pelos Estados mais poderosos (ou politicamente organizados), que defendem suas prioridades e interesses, mas acabam comprometendo todos os outros(10).
Porém, o principal efeito da globalização é a intensificação de conflitos entre normas e sujeitos de direito internacional público, levando ao questionamento sobre a operacionalidade dos referenciais de regulação. Em outros termos, o direito internacional destinado unicamente aos Estados soberanos e às organizações internacionais está sendo submetido a uma leitura mais exigente da observância das normas internacionais. Ademais, verifica-se que mecanismos jurídicos de sanções, antes impensáveis face à pretensa soberania absoluta, aparecem lentamente nos debates multilaterais. Enfim, os Estados começam a prestar contas a outros atores e a opiniões públicas cujas nacionalidades se somam e se misturam. Então, o ponto interessante a sublinhar é a irrupção desses atores na cena internacional e a sua atuação como juízes da ação política do Estado (soberano). Este é o início do debate sobre a formação do "espaço público internacional" que será desenvolvido adiante.
Nesse contexto de construção jurídica marcado pela desigualdade internacional, outra fonte de contendas é a fragilidade do princípio de universalidade do direito e dos valores que ele defende (Védrine, 2000)(11). Quando se fala em direitos humanos, as questões mais abordadas na União Européia são as minorias étnicas, as vítimas de guerras (prisoneiros, refugiados, imigrantes) e a proteção do cidadão contra o abuso de poder público (ou seja, o acesso a tribunais internacionais ou supranacionais). No Brasil, por outro lado, os valores são os mesmos, mas as questões pertinentes são a proteção da infância, o estatuto dos índios e a vida carcerária. Ora, o direito internacional espelha as preocupações ocidentais de manter uma ordem internacional estável e pacífica, pois foi codificado principalmente por Estados-nação dominantes da cena internacional a partir da era das grandes navegações. Em razão dessa fragilidade inerente a toda construção multilateral, o direito internacional avança lentamente e depende das concessões feitas pelos Estados. Assim, Chartouni-Dubarry e al Rachid (1999) asseveram que o princípio de universalidade é uma grande falácia jurídica, e por isso os textos internacionais são muitas vezes simples declarações de compromisso sem poder cogente.
Quanto aos Estados, é de bom alvitre ressaltar que cada um age em função de interesses próprios, que são definidos como seus interesses nacionais, mas nem sempre expressos de maneira clara e transparente. Conseqüentemente, a definição de termos jurídicos bem como sua interpretação não são jamais neutras, qualquer que seja a questão. Dessa divergência legítima de interpretações, de percepções e de interesses surge o conflito de legitimidades (Badie e Smouts, 1999) e o conteúdo de direito internacional torna-se a pedra de toque de atores internacionais que consomem esse direito(12). Com efeito, tal conflito é resultado lógico da diversidade de atores, e, portanto, não constitui, por si só, novidade.
No entanto, para evitar o obstáculo da divergência de interesses ou o desafio do reconhecimento da heterogeneidade, acreditou-se que era possível criar um modelo ideal, justo e adequado para todos os atores internacionais, ou melhor, aproveitar a oportunidade para impor internacionalmente um modelo nacional. Nesse sentido, a ação da OTAN no Kosovo demonstrou que primeiramente alguns Estados decidiram agir, para depois legalizarem as operações militares pelo recurso aos instrumentos onusianos. Essa ilustração pode ser tomada como prova da vontade dos decisionmakers mais poderosos(13) de manter a segurança mundial e o respeito dos direitos humanos, enquanto os outros não interferiram de maneira significativa no processo decisório (Gounelle, 1998).
Porém, em termos estritamente jurídicos, foi a comunidade internacional que puniu um agressor em nome do bem-estar da humanidade. Cabe aqui observar que esse conceito de "comunidade" distingue-se do conceito de "sistema internacional" usado pela corrente realista das relações internacionais que privilegia o papel do Estado. "Comunidade" traduz o interesse de mostrar a diversidade de atores internacionais, sem que estes cheguem a formar uma verdadeira "sociedade civil internacional", como supõe Wapner (1996). Além disso, como defendeu Kant e seus sucessores, não há sociedade internacional (no sentido forte do termo) sem que haja um direito que regule as relações dentro dela. Portanto, se o debate teórico sobre a existência de uma sociedade ou comunidade internacional parece interminável, é inadmissível que os dois termos sejam utilizados como sinônimos.
Depois que a comunidade internacional condenou o Iraque, em 1991, esse fenômeno tem crescido porque ela se sente garantidora do bem-estar da humanidade. Enfim, a construção jurídica para estabelecer as "regras do jogo" e assegurar certa previsibilidade do cenário internacional é influenciada por lutas políticas. Além disso, os contenciosos transfronteiriços tendem a aumentar na mesma medida em que a globalização tende a se espargir (Mercadante e Magalhães, 1998).
Por conseguinte, do ponto de vista das relações entre Estados e diversos atores, o direito sofre concorrência de uma ordem jurídica internacional que aspira a uma nova ordem normativa além da simples coordenação das relações de poder entre Estados soberanos(14). Este seria, com efeito, o terceiro grande impacto do fenômeno da globalização no campo jurídico. Em outros termos, existe uma comunidade de atores internacionais - geralmente denominada "comunidade internacional" - que demanda reconhecimento jurídico para poder agir legalmente, e por isso milita para transformar o direito internacional dos soberanos em direito internacional das relações entre todos os atores legítimos. Dessarte, parece incontestável o décalage entre a ordem normativa que o direito internacional oferece atualmente e as aspirações de outros atores internacionais, como as empresas multinacionais e as ONG´s.
De fato, o papel e a natureza do Estado são contestados no cenário internacional por atores que uma leitura estrita do direito internacional não reconhece (Frangi e Schulz, 1995). O exemplo das crescentes interações entre atores públicos e privados é pertinente não só porque reflete a complexidade do contexto, mas também porque levanta a questão sobre que tipo de regulação jurídica internacional seria adequada à realidade atual. Outrossim, o direito de agir dentro do cenário internacional faz parte da agenda das ONG´s e da opinião pública e constitui o "paradigma da dignidade da pessoa humana" (Nádia de Araújo) (15). Nesse sentido, a grande questão atual é como assegurar aos indivíduos o acesso aos tribunais internacionais de direitos humanos. O exemplo da Corte Européia dos Direitos Humanos é, por enquanto, único no mundo.
Nesse sentido, o questionamento da validade de conceitos tradicionais seria o quarto efeito da globalização sobre o direito internacional público. Exemplos de conceitos colocados à prova da realidade atual são: soberania nacional (Byers, 1991; Litfin, 1997, 1998; Badie, 1999; Krasner, 1999), ingerência (Zorgbibe, 1994; Moreau-Defarges, 1997), comunidade internacional (Frangi e Schulz, 1995; Lefebvre, 1997), opinião pública internacional (Favre, 1994), humanidade como destinatária do direito internacional (Ost e Gutwirth, 1996) etc. Nesse contexto de incursão de atores exteriores dentro do domínio reservado dos Estados, surge a seguinte questão: em que medida o espaço público internacional em plena formação poderia atenuar esse duplo desequilíbrio entre direito das relações entre Estados e direito das relações entre Estados e outros atores?
A .3 - O espaço público internacional em formação
A crescente participação de atores internacionais diversos nas questões internacionais é fenômeno irrefragável em questões relativas à proteção internacional dos direitos humanos. O termo "espaço público internacional" traduz, segundo o Professor Bertrand Badie(16), essa abertura poltico-jurídica. O conceito de espaço público utilizado é habermasiano, definindo um espaço onde diferentes componentes de uma sociedade se exprimem e se estabelecem através da comunicação entre eles.
A grande magia da era da globalização é clara: a informação circula no Planeta e niguém tem o poder de "engavetar um processo" sem prestar contas a uma opinião pública cada vez mais militante. Comprova-se, certamente, o paradigma de relações internacionais segundo o qual os Estados não são - e talvez nunca tenham sido - atores exclusivos das relações internacionais, haja vista que a literatura mais recente chega mesmo a questionar ou a relativizar o significado do conceito de soberania(17). O Estado parece estar, por isso, intimado a redefinir seu papel (Badie e Smouts, 1999) para a satisfação da humanidade em termos globais de justiça.
Contudo, aborda-se a era da globalização pós-Guerra Fria não como uma situação de crise de governança global, mas como o ínicio de sua formação. Essa governança, descrita por James Rosenau e citada por Smouts(18), supõe a "existência de regras, a qualquer nível de atividade humana, da família até as organizações internacionais, cujas finalidades, que são controladas, têm incidências internacionais". Essa abordagem objetiva demonstrar como indivíduos e instituições procuram resolver, por meio de processos interativos de decisão, problemas comuns, tais como os fenômenos transnacionais de migrações, criminalidade, poluição e tráficos (de entorpecentes, de mercadorias ou de dinheiro). Nesse sentido, a institucionalização gradativa das relações internacionais por meio de instrumentos jurídicos é uma das condições de possibilidade dessa governança global.
Em conseqüência, o direito internacional pode ser considerado um regime relativo (Lefebvre, 1997). Em primeiro lugar, por questão de conteúdo, pois os textos internacionais não são universais nem hierarquizados, e seu poder de coerção depende da vontade política de atores interessados. Em segundo lugar, porque existem diferentes percepções políticas e jurídicas oriundas da multiplicidade de valores de cada sociedade. Por exemplo, os Estados ocidentais liberais e a América Latina valorizam os direitos políticos e civis porque acreditam que eles asseguram a pluralidade política e a democracia liberal. Mas os socialistas, inspirados no marxismo, distinguiam direitos formais dos direitos reais, sendo apenas os últimos garantidos pela sociedade socialista igualitária, como o direito ao trabalho. E certos Estados da África e da Ásia, para limitar o liberalismo político, escolheram a inspiração marxista, facilmente identificada em textos de 1981, tais como a Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos e a Declaração Islâmica Universal de Direitos Humanos.
Em terceiro lugar, por sua natureza, o direito internacional também é relativo, pois entra em conflito com o princípio de soberania e as únicas soluções para a aplicação do texto jurídico contra um Estado são as pressões diplomáticas (e econômicas) e a mobilização da opinião pública internacional. Em quarto lugar, a relatividade também se explica pelo espaço territorial, porque os dois textos mais avançados em matéria de direitos humanos são a Carta da União Européia e a Carta da OEA. As outras regiões do mundo apresentam níveis muito díspares de controle jurídico. Em termos de responsabilidade penal internacional, aquelas Cartas representam casos de exceção, porque os crimes de guerra são e serão sancionados por soluções ad hoc (cláusula 124 dos acordos da Corte Penal de Justiça). Enquanto os crimes contra os direitos humanos são de competência dos Estados, esperando que a CPJ funcione sistematicamente.