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Embriaguez ao volante: recusa a produzir prova não exclui o crime

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Entendeu o Ministério Público que o motorista embriagado pode ser preso em flagrante, processado e punido criminalmente, desde que exame clínico por perito médico indique, com segurança, o estado de embriaguez.

HABEAS CORPUS n º 9671-6

MANIFESTAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO

Impetrante: F. M. B.

Paciente: J. E. A. F.

HABEAS CORPUS. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL POR ALEGADA ATIPICIDADE DA CONDUTA. EMBRIAGUEZ AO VOLANTE. NOVA REDAÇÃO AO ARTIGO 306 DO CTB POR FORÇA DA L. 11.705/08. AUSÊNCIA DE LEI PENAL MAIS BENÉFICA. MATERIALIDADE DELITIVA DEPENDENTE DE LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA PELO JUIZ NATURAL DA CAUSA. PRETENDIDA ANOMIA DIANTE DA TRÁGICA REALIDADE. NECESSIDADE DE CONFERIR INTERPRETAÇÃO QUE DÊ EFETIVIDADE À NORMA E QUE PRESERVE A CLARA INTENÇÃO DO LEGISLADOR DE RECRUDESCER O TRATAMENTO ADMINISTRATIVO E PENAL DA EMBRIAGUEZ AO VOLANTE.

I - A nova redação dada pela L. n. 11.705/08 ao artigo 306 do CTB traduz a declarada intenção do legislador – sensível à realidade trágica do tráfego viário e aos reclamos da sociedade – de punir com maior rigor os motoristas que conduzem veículos automotores sob influência de bebida alcóolica. A inclusão, no tipo penal, de concentração equivalente a 6 decigramas de álcool por litro de sangue, para caracterizar o estado etílico do condutor não significa, de forma alguma, abrandamento da norma penal sancionadora, criando apenas uma dificuldade probatória maior diante da legítima recusa do suspeito a soprar o etilômetro ou a fornecer sangue para a alcoolemia.

II – Não se pode conceber como razoável e aceitável que o Estado se veja privado de exercer o seu poder punitivo simplesmente porque o réu exerce o seu direito de não produzir prova contra si. Em tal hipótese, há de admitir-se a comprovação do estado de embriaguez por outro meio idôneo, qual seja, o exame clínico realizado por perito-médico, que, com métodos cientificamente comprovados e com o uso das regras de experiência, poderá atestar, com segurança, se o examinando encontra-se com concentração de álcool no sangue superior ao indicado na lei penal.

III – Ainda que não se aceitasse tal possibilidade de suprimento, por exame clínico feito por um médico, da prova não produzida por mera opção do suspeito – face à regra do nemo tenetur se detegere – restaria a possibilidade, a ser verificada caso a caso (o que escapa de conhecimento pela via estreita do Habeas Corpus), de configurar-se o crime de exposição a perigo (artigo 132 do CPB), bastando demonstrar que o comportamento do condutor expôs a perigo de vida outras pessoas, ao dirigir sob notório efeito de álcool.

PARECER PELA DENEGAÇÃO DA ORDEM.


I.DADOS DA IMPETRAÇÃO

A impetração objetiva trancar ação penal em curso no juízo impetrado, onde o paciente responde pela prática do crime positivado no artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro (L. n. 9.503/97), tendo em vista sua autuação em flagrante, na noite de 5 de abril de 2008, conduzindo veículo automotor sob influência de álcool.

Alega a impetrante que o paciente foi parado em uma blitz da Polícia Militar na entrada do Parque da Cidade, na Quadra 910 sul, local em que não havia um bafômetro, razão pela qual, diante da alegação de que se encontrava com sinais de embriaguez, conduziram-no até o IML, onde atestaram encontrar-se embriagado.

Sustenta, em síntese, a impetrante que com a nova redação dada ao artigo 306 do CTB pela L. n. 11.705/08, passa a ser necessária, para a caracterização do crime de embriaguez ao volante, a constatação de que o motorista dirigia com concentração de 6 decigramas de álcool por litro de sangue, a qual "só pode ser precisamente aferida em exame realizado por intermédio de etilômetro (vulgamermente conhecido como bafômetro), ou por exame laboratorial", o que torna atípica a conduta do paciente, porquanto não se submeteu a qualquer desses dois exames.

Por conseguinte, sendo a lei nova mais benéfica ao infrator, deverá retroagir para alcançar situações pretéritas, como a do paciente, que não teve a quantidade de álcool no sangue devidamente aferida por bafômetro ou por exame laboratorial.

Com a tese de que houve abolitio criminis e superveniente atipicidade da conduta, pede a concessão da ordem para trancar a ação penal.

Deferida a liminar postulada – para suspender o curso da ação penal – e dispensadas as informações da indigitada autoridade coatora, vieram os autos ao Ministério Público, para manifestação.


II.ANÁLISE DO PEDIDO

Na parte inicial da impetração procura-se demonstrar que o paciente teria sido vítima de abuso de autoridade pelos policiais militares que o abordaram em uma blitz.

Compulsando os autos, verificamos que a versão trazida na inicial é bem diferente da que consta dos documentos anexados à impetração, dos quais se pode inferir que o paciente encontrava-se, ao ser detido em uma blitz, visivelmente embriagado, com dificuldades para caminhar e expressar-se.

Essas divergências sobre os fatos, porém, não merecem exame nesta sede.

A uma porque, nos limites estritos da ação de Habeas Corpus, não se permite a análise pormenorizada dos fatos que lastreiam a acusação penal, porquanto, como leciona PAULO LÚCIO NOGUEIRA [01]:

"O instituto do habeas corpus visa amparar direito líquido, que se entende àquele cuja existência não é afetada por dúvidas ou incertezas. É de se ver que tal direito deve ser demonstrado com evidência, sem necessitar de produzir provas, pois no julgamento de habeas corpus não é admissível o exame aprofundado de provas. É claro que o impetrante terá que fornecer de plano os elementos indispensáveis que demonstrem a liquidez de seu direito. O que não se admite é que haja exame aprofundado de prova, para aferir o direito do impetrante ou paciente, que deve fluir naturalmente do próprio pedido."

A duas, porque, na realidade, a questão discutida neste writ é eminentemente jurídica, porquanto diz com a possibilidade de trancar-se a ação penal ante a conjecturada abolitio criminis, a beneficiar o paciente, na medida em que a L. n. 11.705/06, ao conferir nova redação ao artigo 306 do CTB, exige aferição precisa da concentração de álcool no sangue do motorista flagrado em aparente estado de embriaguez.

II.2.contornos jurídicos da quaestio juris

Repete-se a rotina nos últimos anos: produções legislativas repletas de imperfeições obrigam os intérpretes e aplicadores do Direito a um cansativo esforço para compreender o alcance e o significado preciso da norma.

A bola da vez é o artigo 306 da Lei n. 11.705, de 19 de junho de 2008, cujo comando normativo passou a apresentar-se da seguinte forma:

"Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência: Penas – Detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor."

Diferentemente do que dizia a lei anterior, que não se referia a qualquer quantidade de concentração de álcool no sangue (dizia apenas que era crime "Dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência"), agora, conquanto mantida a mesma pena, prevê-se que o condutor do automóvel deve estar com taxa igual ou superior a 6 decigramas de álcool no sangue para ser considerado infrator penal.

Em que pese a dubiedade desse novo texto, entende o Ministério Público que o motorista que estiver dirigindo em condições de notória embriaguez poderá ser autuado em flagrante, processado e punido, mesmo quando não utilizado, por qualquer motivo, o etilômetro (bafômetro) ou o teste de alcoolemia.

Para tanto, o necessário labor hermenêutico há de tomar, como premissa aceita, a clara idéia de que o legislador pretendeu tornar ainda mais rigorosa a vedação à condução de veículo automotor sob a influência de álcool.

Na interpretação de qualquer texto normativo é preciso ir além da sua mera literalidade. Não basta, como alerta GUSTAVO ZAGREBELSKY, atestar sua validade lógica; é necessária uma validade prática, que atenda ao significado da norma para a sua justa aplicação ao caso concreto.

"As conseqüências práticas do direito não são em modo algum um aspecto posterior, independente e carente de influência sobre o próprio direito, senão um elemento qualificativo do mesmo. (...) Não basta considerar o ‘direito dos livros’, é preciso ter em conta o ‘direito em ação’; não basta uma validade lógica, é necessária uma validade prática" (grifamos) [02]

Em linha de pensamento similar, CHAÏM PERELMAN aduz:

"Com efeito, se o Direito é encarado sob seu aspecto teleológico, ou seja, como um meio visando a um fim que deve ser realizado no seio de uma sociedade em mutação, ele não pode ser indiferente às conseqüências de sua aplicação." [03]

No caso do Código de Trânsito Brasileiro, as imperfeições são inúmeras, mas nem por isso se há de rejeitar sua validade prática e a necessidade de esforçar-se o profissional do Direito para dar-lhe a máxima efetividade, diante do quadro trágico e vergonhoso tão amiúde noticiado. [04]

O fato é que em diversas passagens da legislação de trânsito, nomeadamente com as recentes reformas no CTB, transparece, com clareza cristalina, o intuito do legislador de tornar mais rigorosas as normas de trânsito, sobretudo no que diz respeito à indesejável combinação entre condução de veículo automotor e ingestão de bebida alcoólica.

Senão vejamos.

Logo no artigo 1º da Lei n. 11.705/08, o legislador deixa claro seu propósito:

Art. 1º. Esta Lei altera dispositivos da Lei 9.503, de 23 de setembro de 1997, que institui o Código de Trânsito Brasileiro, com a finalidade de estabelecer alcoolemia 0 (zero) e de impor penalidades mais severas para o condutor que dirigir sob a influência de álcool (...)

Por sua vez, o artigo 7º da mesma lei altera a L. n. 9.294/96, acrescentando o seguinte dispositivo:

‘Art. 4.º-A. Na parte interna dos locais em que se vende bebida alcoólica, deverá ser afixado advertência escrita de forma legível e ostensiva de que é crime dirigir sob a influência de álcool, punível com detenção’." (grifo nosso).

Além disso, o art. 5.º, V, da L. 11.705/08 manda aplicar aos crimes de trânsito os dispositivos penais da Lei 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais), "exceto se o agente estiver: I – sob a influência de álcool ou qualquer outra substância"… (grifo nosso).

Como se não bastasse a clareza desses preceitos da nova lei, é notório que o legislador respondeu à apreensão generalizada da população quanto ao grande número de mortes causadas em acidentes de trânsito, uma boa parte, saliente-se, causados porque o motorista estava embriagado.

II.3 a nova lei não é mais benéfica ao infrator

Noticia-se precedente deste E. TJDFT, em outro writ, onde se teria reconhecido que as alterações promovidas pela L. n. 11.705/92 no Código de Trânsito Brasileiro seriam mais benéficas aos que violarem o seu artigo 306, porque passou-se a exigir, como elemento objetivo do tipo penal, a comprovação da concentração de álcool no sangue do conjecturado infrator em patamar igual ou superior a 6 (seis) decigramas de álcool por litro de sangue.

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Com isso – argumenta-se – somente por meio de exame de alcoolemia (coleta de sangue) ou de etilômetro (bafômetro), será possível ter como praticada a conduta descrita no tipo penal referido, não o suprindo o exame clínico, mesmo realizado por perito-médico, haja vista a impossibilidade de determinar-se a concentração de álcool no sangue do examinando.

Logo, se o motorista flagrado em uma blitz apresentar sinais de embriaguez, mas recusar-se a soprar o bafômetro ou a fornecer amostra de sangue para o agente de trânsito ou mesmo para o médico – recusa lícita e sem conseqüências penais, em face do princípio de que ninguém pode ser obrigado a produzir prova em seu desfavor (nemo tenetur se detegere) – ainda que seja conduzido à presença de um médico-legista, o máximo que poderá ocorrer, de acordo com os que sustentam a imprescindibilidade do uso da referida tecnologia, será sua autuação por infração administrativa. Isso porque o médico irá certificar, pelo exame clínico, que o motorista apresenta sinais de embriaguez, mas não poderá dizer qual o grau preciso de álcool em seu sangue.

Ora – complementam os que desenvolvem semelhante raciocínio – se para a infração administrativa basta a comprovação de que o motorista conduzia veículo automotor, em via pública, "sob influência de álcool" (art. 165 do CTB), para a infração penal será mister demonstrar que tal comportamento ocorreu estando ele "com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas" (art. 306 do CTB).

Em resumo, equivale tal raciocínio a dizer e a sustentar que motoristas que dirigirem sob influência de álcool, mesmo quando se apresentarem visível e completamente bêbados, cambaleantes, com a voz dificultada, excitados ou deprimidos, com os olhos vermelhos e hálito etílico etc, não poderão ser presos em flagrante, e muito menos ser processados criminalmente se não concordarem em submeter-se ao bafômetro ou a fornecer amostra de sangue para o competente exame.

Para piorar esse quadro de anomia – com o retorno, ou até mesmo a elevação, dos anteriores já referidos índices de mortes produzidas no trânsito, boa parte delas por motoristas embriagados – antevê-se uma avalanche de Habeas Corpus com o propósito de trancar inquéritos e ações penais, ou mesmo para desconstituir condenações, tendo em vista a conjecturada maior benevolência da lei nova, a reclamar a incidência do princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica.

Com a vênia dos que assim pensam, nada nos parece mais contrário à lógica e ao bom-senso.

NELSON HUNGRIA, em seus festejados Comentários, dizia:

"É intolerável e não se compreende que fique impune o indivíduo que, perversamente ou por egoísmo ou temeridade, cria uma situação de grave perigo a outrem, embora sem querer a eventualidade de um dano efetivo. A injusta ameaça concreta à existência ou incolumidade individual é uma restrição a estes indeclináveis interesses humanos e deve, portanto, pela gravidade do seu caráter antijurídico, ingressar na órbita do ilícito penal". [05] - grifamos

Não houve, na verdade, edição de lei mais benevolente ao motorista que dirige sob a influência de álcool. Quando muito se poderá dizer que a prova de sua embriaguez será mais trabalhosa, mas isso diz respeito ao ônus da prova, i.e., a tema relativo ao direito processual penal.

A conduta é punida com exatamente a mesma pena (detenção de 6 meses a 3 anos, além de multa e suspensão ou proibição de se obter permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor). Não há criação de condicionamento à ação penal ou mesmo ao flagrante, não há causa de extinção de punibilidade e não há qualquer melhoramento na situação penal do infrator.

Na realidade, a lei é mais rigorosa. Por que? Porque o art. 5.º, V, da L. 11.705/08, ao dar nova redação ao artigo 291 do CTB, manda aplicar aos crimes de trânsito os dispositivos penais da Lei n. 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais), permitindo tanto a composição civil quanto a penal (artigos 74 e 76). Porém, fez ressalva, logo no inciso I do § 1º do artigo 291, quando o agente estiver "sob a influência de álcool ou qualquer outra substância psicoativa que determine dependência".

Logo, se o motorista flagrado na condução de veículo automotor sob influência de álcool não pode mais ser beneficiário de uma proposta de conciliação civil ou, mas ainda, a uma transação penal, é incontestável que a lei nova é mais severa e prejudicial aos seus interesses, visto que não poderá evitar a instauração de um processo criminal e a eventual prolação de uma sentença condenatória, com todos os seus consectários legais e morais.

II.4o crime do artigo 306 do CTB

A impetração também envereda pela discussão sobre as elementares e características do crime do artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro, o qual, para alguns doutrinadores citados na petição, seria um delito de perigo concreto.

DAMÁSIO DE JESUS, por exemplo, afirma que uma interpretação meramente literal do artigo 306 do CTB leva à conclusão equivocada "de que o legislador pretendeu que haja delito com a suficiência de encontrar-se o motorista, na direção de veículo automotor, com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a seis decigramas (primeira parte do art. 306). No caso de "outra substância", contudo, seria necessário a presença da "influência" (segunda parte)."

O festejado penalista propõe, então, uma interpretação sistemática do aludido preceito penal, alcançando-lhe o espírito, de modo a considerar praticado o crime de embriaguez ao volante somente quando, além da indicada concentração de álcool no sangue, o condutor estiver "sob a influência de substância alcoólica ou similar, que tem o significado de direção anormal.", pois seria "impróprio que o legislador, no tocante a álcool, considerasse a existência de crime de embriaguez ao volante só pela presença de determinada quantidade no sangue e, no caso de outra substância, exigisse a influência. " [06]

LUIZ FLÁVIO GOMES, por outro lado, tem uma posição bem restritiva da aplicabilidade do artigo 306 do CTB, com a redação que lhe conferiu a L. 11.705/08. Para o Professor paulista, "a existência do crime do artigo 306 pressupõe não só estar bêbado mas também o dirigir anormalmente, ou seja, a soma de condutor anormal (bêbado) e condução anormal (que coloca em risco correto a segurança viária). (...) Em síntese, quem está bêbado (com qualquer quantidade de álcool no sangue), mas não chega a perturbar a segurança, não está cometendo crime. Logo, não pode ser preso em flagrante." [07]

Ambos exigem, portanto, que, ao conduzir veículo automotor em via pública, esteja o motorista sob influência de álcool – ponto com o qual concordamos inteiramente – mas, também que essa influência leve o condutor a dirigir de modo anormal (fazendo zigue-zague, avançando na contramão, subindo na calçada ou causando acidente de trânsito).

Divergimos frontalmente de tal opinião.

Muito embora se reclame, com acerto, o repúdio a figuras penais que se satisfazem com o perigo abstrato do bem jurídico tutelado, não há como negar, de forma absoluta, a necessidade de proteção de certos bens ou interesses jurídicos contra comportamentos que, independentemente de produzirem um risco concreto de lesão a tais bens, devem ser penalmente coibidos.

Nos crimes de perigo abstrato, como bem observa RENATO DE MELO JORGE SILVEIRA, não há referência ao perigo na descrição normativa, limitando-se o tipo a "definir uma ação perigosa, pois entende que o surgimento do perigo deduz-se da realização de uma ação com certas características". [08]

O exemplo da direção embriagada é talvez o mais contundente dessa exigência de convívio social harmônico e respeitador dos direitos à segurança viária e à integridade física, de que todos somos titulares. [09]

Como negar o risco a que qualquer transeunte ou condutor de veículo se sujeita ao transitar na mesma via em que uma pessoa dirige seu automóvel em estado de embriaguês? Ainda que não se aponte uma específica pessoa sob risco de ser atropelada ou ter o seu automóvel abalroado pelo embriagado motorista, é inegável que, a qualquer momento, quando as condições do trânsito demandarem um grau de atenção, de coordenação e de reação motoras do tal condutor, não será ele capaz, para evitar um acidente, de agir de forma psíquica e fisicamente idônea a manter a segurança e a integridade corporal de quem transita pela mesma via. [10]

É dizer, o motorista embriagado representa um perigo permanente a todos os que cruzam o seu caminho, não sendo necessário que, no momento em que vier a ser surpreendido em uma blitz, esteja concretamente agindo "de forma anormal" para responder administrativa e criminalmente por seu comportamento ilícito. [11]

Não se pode aguardar que o motorista que conduz seu automóvel "sob influência de álcool" cometa alguma irregularidade ou acidente para, só então, puni-lo. Quem vive em coletividade e se submete às regras do convívio social espera que os demais cidadãos também se comportem dentro da lei.

No trânsito, com maior razão, aguarda-se dos demais motoristas um mínimo de respeito às normas pertinentes. Fala-se mesmo em "princípio da confiança", pelo qual o motorista conduz seu veículo na firme crença de que, por exemplo, ao passar por um cruzamento, os automóveis que se aproximam do sinal vermelho pela via perpendicular irão parar e permitir-lhe continuar trafegando na pista onde o sinal encontra-se verde.

Se o outro motorista estiver embriagado, essa confiança produzirá um indiscutível incremento do risco de que a falta de atenção ou de reação decorrente da excessiva ingestão de álcool do motorista leve-o a avançar o semáforo e a pôr em concreto risco de perecimento não só a sua própria vida como a de todos os que estiverem cumprindo as normas de trânsito.

II.5a natureza permanente do crime e sua prova

Releva observar que o crime de dirigir sob influência de álcool se consuma bem antes de ser o motorista flagrado dirigindo em tal condição. No momento em que, após ingerir quantidade de álcool maior do que o tolerável, o agente passa a conduzir um veículo automotor, em via pública, ele está cometendo a infração penal.

Trata-se, portanto, de um crime permanente, cujos efeitos somente cessam quando o agente parar de dirigir. [12] Isso significa que, ao ser flagrado em uma blitz policial, ou mesmo pelo cidadão comum (imagine-se a vítima de um acidente que, ao sair de seu automóvel, perceba que o condutor do veículo responsável pela colisão encontra-se embriagado), o crime já ocorreu, estando ainda em situação de flagrância delitiva, permitindo ao policial ou a qualquer pessoa do povo dar voz de prisão em flagrante ao motorista.

Por sua vez, mesmo que não mais se encontre em situação de flagrante, aquele que houver dirigido o seu automóvel sob influência de álcool poderá ser investigado e criminalmente processado se forem coletadas provas de que dirigira, em tal condição de anormalidade psíquica e volitiva, horas, dias e, por que não, até meses antes,

É muito importante perceber que tanto em uma quanto em outra hipótese a dificuldade para que esse infrator seja preso, processado ou punido residirá tão somente na prova da existência do crime já ocorrido. No momento em que o motorista estaciona seu veículo em uma blitz ou é forçado a parar o automóvel por força de um acidente, ele cessa a atividade criminosa, restando apurar se ele estava conduzindo o veículo sob efetiva influência de álcool, nos momentos que antecederam a abordagem policial.

Poder-se-á até questionar se será bastante provar, por meio de testemunhas ou pela confissão do próprio condutor, que este ingerira, por exemplo, várias latas de cerveja, uma garrafa de vinho, três doses de cachaça; ou se será indispensável que sopre um etilômetro ou que se submeta a exame de sangue.

Por outro lado, argumentar-se-á sobre a possibilidade de o suspeito, na ausência de um desses meios de constatação da mencionada dosagem etílica, ou diante da não concordância do motorista em colaborar com tal prova, ser conduzido à presença de um perito-médico para a realização de exame clínico.

II.6o livre convencimento judicial e a ausência de vedação aos meios de prova previstos em lei para a comprovação da embriaguez

Sem embargo dessas controvérsias, a questão principal a resolver é se, ante a afirmação de que a dosagem etílica indicada na norma penal incriminadora constitui elementar do delito – admitamos que sim –, a prova dessa elementar somente pode ser produzida com a colaboração do condutor suspeito de estar embriagado.

Vale salientar que nosso sistema processual adota, como regra para avaliação das provas, o livre convencimento judicial, mediante a devida fundamentação, condição de validade do provimento jurisdicional (art 93, inciso IX, da Constituição da República). Significa isso dizer que não há hierarquia probatória e muito menos provas tarifadas ou com valor a priori estabelecido, cumprindo ao magistrado julgar a causa indicando os fundamentos de sua decisão.

Decerto que há limitações às regras probatórias, ou por razões internas ao processo, derivadas de considerações de ordem epistemológicas, ou por razões externas, decorrentes de aspectos éticos. Não havendo, todavia, impedimento legal ou ético, ou regra limitadora para a comprovação de determinado fato, qualquer meio de prova que contribua para a reconstrução da verdade há de ser aceito.

No que diz com a hipótese ora questionada – prova da concentração de álcool no sangue do condutor do automóvel – é certo que o etilômetro (ou a alcoolemia) serve para tornar mais objetiva e precisa a determinação e documentação de quão influenciado pelo álcool ingerido está o condutor que, voluntariamente, se submete a tal instrumento.

Assim, ao envolver-se em um acidente ou ao ser parado em uma blitz, o condutor do veículo automotor que apresentar sinais de ingestão de bebida alcoólica, será convidado a soprar o bafômetro (ou a fornecer, em local e sob condições adequadas, pequena amostra de sangue). Aquiescendo a tanto, a colaboração do motorista estancará qualquer dúvida quanto à suspeita do agente de trânsito ou policial, quer para aferir concentração de álcool suficiente a caracterizar uma infração administrativa ou uma infração penal, quer para demonstrar que a suspeita não tinha fundamento.

Recusando-se, no entanto, a colaborar para a realização dessa prova, a condução coercitiva do motorista ao IML será autorizada quando presente justa causa, ou seja, quando houver sinais de que ingeriu bebida alcoólica e que conduzia o veículo sob sua influência (fumus comissi delicti).

Na presença do médico-legista, o condutor será criteriosamente avaliado e, presentes sinais exteriores típicos de quem se encontra com elevada concentração de álcool no sangue, acreditamos ser possível indicar, se não o percentual exato da concentração etílica, ao menos que o examinando está, seguramente, com mais de 6 decigramas de álcool no sangue.

Não se trata de uma conclusão pericial subjetiva ou elaborada sem critérios científicos, mas, sim, da constatação, tanto pelas regras de experiência inerentes à profissão médica quanto pelo conhecimento da Medicina acerca dos efeitos e sintomas derivados da ingestão de bebida alcoólica, de que o examinando apresenta grau de concentração de álcool no sangue superior ao mínimo exigido em lei para a caracterização do ilícito penal.

Evidentemente que essa prova estará sujeita a um contraditório diferido, visto que produzida sem a bilateralidade de audiência e sem a presença do juiz natural da causa. Nada impedirá, portanto, que a parte interessada ouça o perito médico, em juízo, para estancar eventuais dúvidas do laudo, ou mesmo que apresente contraprova, inclusive com a indicação de assistente técnico (de acordo com a nova redação dada ao artigo 159 do CPB pela L. n. 11.690/08), que poderá opinar sobre a perícia oficial.

O que pretendemos deixar claro é que a prova da concentração de álcool no sangue do motorista por meio de etilômetro ou alcoolemia não constitui condição de procedibilidade para a ação penal, ou mesmo para a lavratura do flagrante.

Não se trata, aqui, de exigência igual à que se prevê em relação ao crime de tráfico de entorpecentes, em que a lei prevê a necessidade de exame de constatação da natureza da substância apreendida, cuja realização é indispensável para ter-se a própria materialidade do crime e permitir a lavratura do auto de prisão em flagrante. É que uma substância não é considerada entorpecente pelo simples exame visual (uma porção de talco ou de farinha de trigo poderia ser tomada como cocaína, ou uma erva medicinal, por maconha), sendo mister o exame de constatação de sua natureza.

Perceba-se, entretanto, que para a realização do laudo pericial de constatação preliminar da natureza da substância apreendida não se faz necessária a colaboração do autuado, visto que o objeto do exame é algo exterior ao corpo do suspeito, já disponibilizado, em virtude da sua regular apreensão, para avaliação pericial.

Na hipótese, todavia, do etilômetro ou da alcoolemia, a sua realização depende da colaboração do suspeito, porque a prova que se pretende obter está dentro do corpo do condutor aparentemente embriagado.

Daí por que não se mostra razoável imaginar que o Estado esteja impedido de demonstrar, por qualquer meio de prova disciplinado pelo CPP, a existência material do crime tipificado no artigo 306 do CTB, ante a recusa de colaboração do suspeito.

Se a recusa a fornecer prova contra si é, por um lado, induvidosamente legítima, entendemos que não pode tal comportamento, por diversa angulação, impedir que o Estado busque a prova da ocorrência e autoria do crime por outro meio, dentre os previstos em lei, que não dependa da ativa participação do suspeito. A não ser assim, o poder punitivo somente se exercitaria contra o infrator da lei penal que se dispusesse a ser punido, o que, convenhamos, é um nonsense jurídico.

De qualquer modo, o ônus sobre a efetiva comprovação da aludida dosagem etílica recairá, como decorrência do princípio do favor rei, sobre a acusação, que, se não lograr demonstrar, por quaisquer meios legais de prova, que o comportamento do acusado se subsumiu ao tipo do artigo 306 do CTB, renderá ensejo a uma sentença absolutória, por "não existir prova suficiente para a condenação" (artigo 386, inciso VI, na redação atual do CPP, antes da entrada em vigor da L. n. 11.690/08).

Releva, por derradeiro, aventar a possibilidade de que, no curso da instrução criminal, se forme prova de que o acusado, ao colocar-se deliberadamente na condução de um automóvel, em via pública, ciente de que ingerira razoável quantidade de bebida alcoólica, pôs sob risco a vida de outras pessoas, de modo a configurar, se não o crime positivado no artigo 306 do CTB, ao menos o delito de exposição a perigo, previsto no artigo 132 do Código Penal (como ocorria em algumas situações enfrentadas pelos tribunais, antes da entrada em vigor do Código de Trânsito), o que sinaliza para o erro de uma prematura conclusão de que não é punível a conduta de quem, embriagado, conduz veículo automotor em via pública, somente porque, por algum motivo, não foi feita a prova da alcoolemia por meio de exame laboratorial ou por meio do etilômetro.

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Sobre o autor
Rogério Schietti Machado Cruz

Doutor e Mestre em Direito Processual Penal pela USP. Procurador de Justiça do Ministério Público do DF

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CRUZ, Rogério Schietti Machado. Embriaguez ao volante: recusa a produzir prova não exclui o crime. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1856, 31 jul. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/pareceres/16861. Acesso em: 22 nov. 2024.

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