3 - ORIENTAÇÃO DOS TRIBUNAIS
JUSTIÇA
Ao Poder Judiciário, minhas homenagens, porque esteio do Estado de Direito.
Sem ele, a democracia claudica!
Sem ele, a liberdade se extingue!
Sem ele, o Direito não passa de flatus vocis!
( in nosso Medidas Provisórias, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 1991)
O Poder Judiciário não se tem furtado de dar sua preciosa contribuição, visando aperfeiçoar as instituições e garantir a harmonia social e a liberdade.
O Supremo Tribunal Federal, em memorável decisão, assentou não ser tolerada propaganda de guerra, de processos violentos para subverter a ordem política e social, ou de preconceitos de raça ou de classe (Relator, Ministro Mário Guimarães, julgamento da 1ª Turma, em 5.9.53, RECR 20127, ADJ, 20.4.53, p. 1201).
Esta Excelsa Corte, em outro julgado, de suma importância, relatado pelo insigne e combativo Ministro Ribeiro da Costa, deixou claro que "a limitação à liberdade de imprensa, sobrepondo-se ao interesse individual, atende as necessidades superiores do Estado e da coletividade, dentro das exceções que o conceito de liberdade há de juridicamente suportar, como imperativo imanente ao procedimento humano, compatível ao convívio social. Essa limitação, entretanto, não o exerce a autoridade pública de forma arbitrária. A interdição de órgão de publicidade somente se justifica quando se demonstre o incitamento à subversão da ordem pública e social, ou a propaganda de guerra ou de preconceitos de raça ou de classe." (Cf. RE25348/MG, julgado pela 1ª Turma, v. u., em 2.12.54, DJ de 5.11.54, p. 1998).
O TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL, pela Terceira Câmara Criminal, teve oportunidade de se manifestar, na Apelação Crime 695130484 - Porto Alegre, acerca do artigo 20 da Lei 7716, de 1989, com a redação dada pela Lei 8081/90, proferindo um julgamento histórico e de suprema importância, para as relações humanas, tendo participado da sessão, além do Relator, Desembargador Fernando Mottola, os Desembargadores José Eugênio Tedesco (presidente) e Aristides Pedroso de Albuquerque Neto (50). Neste processo, a Câmara deu provimento à apelação, por votação unânime, para condenar o réu - apelado, à pena de 2 anos de reclusão, com sursis por 4 anos, com fundamento no caput do citado artigo 20.
Neste rumoroso processo, o eminente promotor público ofereceu denúncia, imputando ao réu o crime descrito no artigo 20 do mencionado diploma legal, porque, " de forma reiterada e sistemática, edita e distribui, vendendo-as ao público, obras de autores nacionais e estrangeiros, que abordam e sustentam mensagens anti-semitas, racistas e discriminatórias, procurando com isso incitar e induzir a discriminação racial, semeando sentimentos de ódio, desprezo e preconceito contra o povo de origem judaica."
A ilustre magistrada, que recebeu a denúncia, com alicerce no § 1º do aludido dispositivo legal, ordenou a busca e apreensão de todos os exemplares das obras incriminadas.
O juízo monocrático, porém, com a anuência do Ministério Público, absolveu o denunciado, sob o fundamento de que os textos dos livros publicados não implicam induzimento ou incitação ao preconceito e discriminação étnica do povo judeu, visto constituírem-se em manifestação da opinião e relatos sobre fatos históricos contados sob outro ângulo, simples opinião, no exercício constitucional da liberdade de expressão.
A juíza de primeira instância enfocou a questão, sob prisma diverso da lei, entendendo que houve apenas manifestação de pensamento e relatos sobre fatos históricos contados sob outro ângulo, agasalhada no exercício constitucional da liberdade de expressão.
Essa decisão dissente totalmente dos julgados do Supremo Pretório, antes citados, que, apesar de antiquíssimos, mostram-se atualíssimos, dada a sensibilidade dos julgadores, que marcaram definitivamente o cenário jurídico, com seu talento e inteligência.
Não obstante, a Instância Superior, em notável estudo, proclamou a ruína da sentença recorrida.
O relator, Desembargador, Fernando Mottola, em peça bem elaborada, cita os diversos livros questionados e narra trechos expressivos, consignando que este material expressa inverdades e falsificações históricas.
Um passeio pelas avenidas bem traçadas pela decisão superior permite conhecer o verdadeiro espírito e os desígnios malévolos do autor do crime e a configuração do dolo, de fundamental importância, para o deslinde da quaestio.
Destarte, demonstra o culto julgador - relator que o réu, ao afirmar que sua editora é ideológica e pretende levar adiante um ideal, está a comungar com a vontade do "Führer", com o que está a violentar, com suprema força, o texto da norma positiva.
De fato, a liberdade, no exteriorizar o pensamento, independentemente de censura, esbarra no supremo princípio constitucional da igualdade, que é o ponto maior da construção democrática, e vê-se reforçada pelas balizas estruturais da Constituição que manda punir qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais e a prática do racismo que constitui crime inafiançável, punido com pena de reclusão.
Gilmar Ferreira Mendes estudando, com profundidade, a questão da colisão dos direitos fundamentais, observa, com notável acuidade, que " no processo de ponderação desenvolvido para solucionar o conflito de direitos individuais não se deve atribuir primazia absoluta a um ou outro princípio ou direito." E, citando o Tribunal Alemão, prossegue: " Ao revés, esforça-se o Tribunal para assegurar a aplicação das normas conflitantes, ainda que, no caso concreto, uma delas sofra atenuação" (51).
José Joaquim Gomes Canotilho, em sua severa observação, pondera que: "os direitos fundamentais estão, por vezes, em conflito com outros bens ou direitos constitucionalmente protegidos. Impõe-se, nesse caso, a necessidade de ponderação (abwagung) de bens e direitos protegidos a nível constitucional."
Jorge Miranda, outro eminente constitucionalista português, assentado em farta doutrina, sentencia com desbravada coragem, que: "Há sempre que interpretar a Constituição como há sempre que interpretar a lei. Só através desta tarefa se passa da leitura política, ideológica ou simplesmente empírica para a leitura jurídica do texto constitucional, seja ele qual for. Só através dela, a partir da letra, mas sem parar na letra, se encontra a norma ou o sentido da norma." (52).
O esclarecido desembargador enriquece, ainda, seu voto, com opiniões valiosas de autores, como Celso Bastos e Cretella Júnior. Bastos escreve que a inspiração do dispositivo, sob comento, foi a parte final do § 1O do artigo 153 da Constituição passada, que determinava a igualdade de todos perante a lei, sem distinção de sexo, raça, trabalho, credo religioso e convicções políticas, ordenando a punição do preconceito de raça. O segundo autor precisa que a Constituição se refere à lei penal que deverá estar de acordo com a norma maior.
Não é demais repetir as lições ministradas pelas penas dos poucos autores que se preocuparam em lapidar a Lei 7716.
Valdir Sznick (53) cumprimenta o legislador da Lei 8081, que modificou o artigo 20, enquanto que Fábio Medina Osório e Jairo Gilberto Schafer (54) lembram que o novo dispositivo mostra a tendência de reprimir, a todo custo, as práticas discriminatórias de qualquer natureza, com o objetivo de proteger na esfera penal o princípio isonômico.
O Desembargador José Eugênio Tedesco presidente e revisor, traz ao Plenário, uma prendada reflexão, a respeito do papel da imprensa e da atuação do Poder Judiciário, com relação a ela no estado de Direito e na democracia, e conclui, com admirável sabedoria, que é "inaceitável se deixe de punir a manifestação de opinião, quando transparece evidente e cristalina a intenção de discriminar raça, credo, segmento social ou nacional, ainda que sob o manto de mera revisão da história".
Recorda, com muita propriedade, o parecer do Procurador da Justiça, Carlos Otaviano Brenner de Moraes, que inferiu, com absoluta precisão cirúrgica, haver relação dos pontos questionados com a dignidade do homem e da raça, e indica, com plena certeza, a intenção única de criar outra verdade, isto é, a execração de uma raça, visando difundir uma realidade fincada em ideologia que chega às raias do fanatismo, sem base histórica comprovadamente séria e isso não pode ser considerado revisionismo.
O crime, objeto do presente decisório é formal, não se exigindo de tal sorte a realização do resultado. Basta a concretização do comportamento típico, acasalado com a descrição da lei e a intenção de realizá-lo. É o crime de mera conduta, ou seja, consuma-se independentemente de qualquer resultado.
O TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO, entretanto, "absolveu um réu que impediu a entrada de um homem preto num edifício residencial. A decisão baseou-se na falta de prova de que o fato estava vinculado a preconceito racial (55).
O TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO, no Recurso Ordinário em Mandado de Segurança 208556/95-2 (Ac. SBDI2-943/96), relatado pelo Ministro designado Valdir Righetto, recorrente: Centrais Elétricas do Sul do Brasil S/A e recorrido Vicente Francisco do Espírito Santo, ofertou verdadeira aula de civismo, ao corroborar a sentença da 2ª Junta de Conciliação e Julgamento de São José, no Estado de Santa Catarina, que contou com o enriquecimento, pelo Tribunal da 12ª Região, de lúcida e significativa manifestação.
Eis a decisão da Junta:
"ainda que o reconvindo não integrasse a administração pública indireta, ainda que não houvesse qualquer restrição de dispensa nas empresas estatais, como há, ainda assim o direito potestativo do empregador de dispensar seus empregados não poderia ter motivação racista. Se o racismo é crime inafiançável e imprescritível, considerado hediondo, punido pelo ordenamento jurídico, criminoso seria considerar tal motivo como válido para legitimar uma rescisão contratual".
O Relator, em meticuloso exame microscópico, transcreve irretorqüível pronunciamento do Tribunal Regional do Trabalho, que serve de alerta, para aqueles que não mais se lembram de que há uma Constituição em pleno vigor e legislação adequada, mas antes de tudo a plena consciência do resguardo dos valores maiores da humanidade, que se incompatibilizam com o preconceito e com a discriminação, seja qual for.
A decisão do Tribunal Regional assim se consubstancia:
"Não basta a simples vontade. A observância da estrita legalidade e da motivação do ato se impõe.
"Além disso, ou seja, do dever da motivação do ato administrativo, no caso, o motivo que os autos revelam violenta os mais comezinhos princípios de dignidade do homem, consistente - os autos não autorizam a conclusão de que se trate de política empresarial - na prática do racismo, com despedida discriminatória, conforme apregoou o postulante desde sua primeira participação nos autos. A relevância do tema social posto à apreciação judicial me levou, secundado pela 2ª Turma do TRT, a anular o julgado primeiro para permitir às partes a demonstração da existência ou da inexistência do fatos.
"O acerto daquela decisão vem agora ser confirmado, infelizmente, com a demonstração de que a despedida foi também motivada pela cor do postulante, em ato odioso, ilegal, antiético, imoral e criminoso.
"A imputação de racismo como fato motivador da demissão do recorrido, apesar de fartamente demonstrada esta conduta criminosa e hedionda por funcionário da ELETROSUL em relação ao empregado demitido, não pode ser a ela atribuída, uma vez que o sujeito ativo (autor da ação criminosa - explicação nossa) deste tipo penal é a pessoa física, e não a jurídica, circunstância devidamente considerada pelo decisum. De toda sorte, a teor do § 6º do artigo 37 da Constituição Federal, responde a pessoa jurídica, objetivamente, pelos danos cometidos pelos seus agentes."
Enfatizou ainda o Tribunal que o Poder Judiciário não pode permanecer inerte, diante de uma situação como esta, porque se estaria distanciando de sua finalidade social e constitucional, e proferiu palavras de infinita grandeza, ao proclamar que:
"dizer que o fato não tem relevância nesta sede processual importa, data venia, em denegar a magnitude da função judicial e em desguarnecer a sociedade."
Prossegue o discurso magno, demonstrando uma vez mais que repugna à consciência dos homens de bem e à nobreza do espírito humano qualquer espécie de segregação.
Leia-se a poética, não fosse dramática, advertência desse Pretório:
"Tal prática hedionda, além de ferir os princípios mais comezinhos da dignidade do homem, cuja garantia ultrapassa a lei escrita, por estar vinculada à gênese da humanidade e da sociedade, como direito natural de todos, constitui-se em ato criminoso e violador da moral, gerando o dano coletivo e individual, este também passível de indenização, nos exatos termos do artigo 5º, inciso X, da CF. É que o sofrimento e a humilhação enfrentados pelo reconvinte, não só com a perda do emprego, que importa na dignidade funcional, mas também pela decorrência discriminatória do racismo, restam imensuráveis, por impossível de restituição do statu quo ante. O sofrimento decorrente do ataque moral, sopesado, se possível fosse, gerador da amargura, estaria no rank da mais profunda dor psíquica, equiparável à perda do ser amado. A dignidade do homem não tem mensuração econômica. Assim mesmo que a ré não fosse uma estatal, sem qualquer dúvida, eu teria deferido o direito à reintegração, porque resta, em bom direito e a um Estado que se diz de Direito e Democrático, restabelecer sempre a dignidade de sua Carta Magna, exigindo e impondo o cumprimento de suas regras e princípios, pena de negar sua concreta existência e fomentar, de resto, o confronto com suas regras (56) ."
E, mais recentemente, em Minas Gerais, Santa Catarina e no Rio de Janeiro, o Poder Judiciário tem repudiado, com energia, esse crime, in verbis:
"O Tribunal de Alçada de Minas Gerais condenou Yara Menez a indenizar seu vizinho Genésio Rodrigues em R$ 5.000,00, a titulo de danos morais. Yara chamou Genesio, publicamente, de "macaco", "nego fedorento" e "urubu", palavras depreciativas e preconceituosas, ferindo a moral do ofendido"
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"No Rio de Janeiro, o juiz da 7a. Vara Criminal condenou a 2 anos de detenção, com "sursis", a empresaria Rosselita Lima que teria se referido a uma candidata a emprego como "negrinha maltrapilha e sem modos."
"O Juiz da Infância e Adolescência de Florianópolis, por seu turno, condenou menor que, em jogo de futebol na escola, chamou o colega de "negro feio". O menor foi condenado a 6 meses de liberdade assistida (Folha de São Paulo, 15 maio 97)" (57)