A prática de políticas públicas de ação afirmativa representa, sem sombra de dúvidas, a criação de mecanismos transitórios para a obtenção da igualdade material substantiva. Dessa forma, procura-se assegurar uma justa distribuição de oportunidades entre os diferentes grupos sociais. Assim, as medidas de ação afirmativa devem ser baseadas em grupos, sempre com o intuito de diminuir as disparidades intergrupais por um lapso temporal, não necessariamente curto. [01]
JOAQUIM BARBOSA aponta que a ação afirmativa consiste em dar tratamento preferencial, favorável àqueles que historicamente foram marginalizados de maneira a colocá-los em um nível de competição similar ao daqueles que historicamente se beneficiaram da sua exclusão. [02]
VILAS-BÔAS afirma que a expressão "ação afirmativa"foi utilizada pela primeira vez nos Estados Unidos em 1935. Tratava-se da proibição de se exercer qualquer forma de repressão contra um membro de sindicato ou seus líderes. As ações afirmativas popularizam-se na luta pelos direitos civis e com o fim da segregação racial na sociedade americana. [03]
A Suprema Corte dos Estados Unidos reúne uma rica coleção de precedentes sobre as políticas de ação afirmativa. Cabe destacar, inicialmente, que o tema foi enfrentado pelo tribunal no precedente Regents of the University of California v. Bakke (1978). O caso teve início quando Allan Bakke, um homem branco de aproximadamente 35 (trinta e cinco) anos de idade tentou, por 02 (duas) vezes, a admissão na Escola de Medicina da Universidade da Califórnia em Davis. Ele foi reprovado em ambas as oportunidades, tendo em vista que a escola reservava 16 (dezesseis) vagas em cada classe de 100 (cem) alunos para "minorias qualificadas", como parte do programa de ação afirmativa da Universidade. As notas obtidas por Bakke superavam a nota dos alunos beneficiados pela ação afirmativa nos 02 (dois) anos em que Bakke tentou a vaga na Universidade, sem obter êxito. [04]
Bakke, inconformado com a existência de reserva de vagas para minorias, questionou perante a Suprema Corte dos Estados Unidos se a Universidade da California violava a Emenda XIV da Constituição norte-americana [05], que estabelece o direito da igualdade de todos perante a lei, ao praticar uma ação afirmativa com base em critério racial. Por fim, Bakke alegou a violação da Lei dos Direitos Civis de 1964, que vedava a discriminação praticada contra grupos raciais.[06]
A Suprema Corte norte-americana, ao analisar a questão, firmou o posicionamento de que o sistema de cota racial, por si só considerado, não violava a Lei dos Direitos Civis de 1964. No entanto, a Corte asseverou que o uso rígido de quotas raciais, como foi empregado pela Universidade da California, violava a Emenda XIV da Constituição norte-americana. [07]
Outro precedente interessante enfrentado pela Suprema Corte dos Estados Unidos foi o caso United Steelworkers of America v. Weber (1979). A empresa United Steelworkers of America implantou um programa de treinamento com critérios de ação afirmativa para aumentar a qualificação dos empregados negros. Dessa forma, metade das vagas para o programa de treinamento da empresa era reservada aos negros. Weber, que era branco e passou no teste, alegou que foi excluído do programa de treinamento por uma forma de "discriminação reversa". [08]
Sendo assim, coube a Suprema Corte responder se a discriminação na admissão no programa de treinamento da empresa representava uma violação à proibição de discriminação racial. [09]
Ao analisar a questão, a Suprema Corte entendeu que o programa de treinamento implantado pela empresa era legítimo, uma vez que a Lei dos Direitos Civis de 1964 não impedia que as empresas privadas implantassem programas de ação afirmativa. Ademais, o programa da empresa tinha o claro propósito de eliminar "arcaicos padrões de segregação racial e hierarquia entre brancos e negros". Por fim, a Corte entendeu que o programa de treinamento era legal, pois não impedia os empregados brancos de ter acesso à qualificação. [10]
Já o caso Fullilove v. Klutznick (1980) teve início em 1977, quando o Congresso dos Estados Unidos elaborou uma lei que determinava que pelo menos 10% dos recursos dos fundos federais destinados aos programas de trabalho seriam utilizados para a obtenção de serviços e mercadorias fornecidas por pequenas empresas de propriedade de membros de grupos raciais minoritários. Fullilove ajuizou uma pretensão em juízo com a alegação de que havia sido prejudicado financeiramente com a nova lei. [11]
A grande discussão que chegou ao conhecimento do Excelso Tribunal norte-americano era se a lei de benefício aos estabelecimentos comerciais de propriedade de minorias raciais violava o direito à igualdade previsto na Emenda XIV da Constituição norte-americana. A Suprema Corte dos Estados Unidos entendeu que o programa de benefício aos estabelecimentos comerciais era um legítimo exercício do poder legislativo. A Corte Suprema também asseverou que era lícito ao Congresso Nacional legislar sobre a concessão de benefícios aos empreendimentos de propriedade de minorias étnicas. [12]
Outro caso importante sobre as políticas de ação afirmativa ocorreu no Estado do Mississipi. Trata-se do precedente Mississipi University for Women v. Hogan (1982). Joe Hogan, um enfermeiro bem qualificado, teve sua admissão negada na Universidade do Mississipi, com base em critério de gênero. Com base em um antigo estatuto de 1884, a Universidade do Mississipi era um dos mais antigos centros de ensino dos Estados Unidos exclusivos para mulheres. [13]
Cumpre ressaltar que a indagação trazida a Suprema Corte dos Estados Unidos era se a criação de um critério de admissão baseado no gênero violava o princípio da igualdade de todos perante a lei. A Corte Suprema entendeu que, no presente caso, houve clara violação do princípio da igualdade, uma vez que não havia justificativa plausível para uma discriminação baseada em critério de gênero. O Excelso Tribunal ainda refutou o argumento do Estado do Mississipi, por entender que o caso não se tratava de uma ação afirmativa destinada às mulheres, uma vez que as mulheres não têm enfrentado, historicamente, uma falta de oportunidades para assumir empregos na área de enfermagem. [14]
Outro precedente sobre o tema enfrentado pela Suprema Corte dos Estados Unidos é o caso Wygant v. Jackson Board of Education (1986), em que se discutia um acordo coletivo firmado entre o Sindicato dos professores e a Jackson Board of Education, que impedia a dispensa arbitrária dos professores mais antigos. Além disso, o acordo coletivo previa que somente poderiam ser dispensados empregados negros até o limite de empregados negros contratados pela escola. [15]
O caso teve início quando Wendy Wygant foi demitida de uma escola, por ser a professora há menos tempo contratada. Wygant questionou perante a Suprema Corte a constitucionalidade do acordo coletivo de trabalho que previa a ocorrência de demissões baseadas em critérios raciais. [16]
A Suprema Corte dos Estados Unidos entendeu que a demissão de Wygant com base em critérios raciais violava o direito à igualdade (Emenda XIV da Constituição norte-americana). A Corte rejeitou o critério discriminatório previsto no acordo coletivo firmado entre o sindicato e a escola, por entender que uma ação afirmativa era válida somente quando negava uma oportunidade de emprego futuro, mas não era válida quando, de forma intrusiva, estabelecia critérios de demissão para a perda de um emprego existente. Ou seja, a escola poderia preterir um branco com base em critérios de ação afirmativa, no momento de sua contratação. No entanto, a escola não poderia estabelecer uma ação afirmativa que resultasse em demissão, ou perda de um emprego já existente. [17]
Cabe também registrar o precedente United States v. Paradise (1987). O caso originou-se quando o Estado do Alabama, tendo em vista a ocorrência de uma série de demandas judiciais iniciadas desde a década de 1970, foi obrigado a implantar um sistema de controle de promoções, de forma que metade dos postos mais bem remunerados do Departamento de Segurança Pública fosse destinada aos oficiais negros. Sendo assim, a Suprema Corte tinha que decidir se o esquema de promoções de "um negro para um branco" violava o direito à igualdade. O Excelso Tribunal norte-americano entendeu, na ocasião, que o sistema de promoção do estado do Alabama era constitucional, uma vez que não impunha uma barreira absoluta para a promoção dos oficiais brancos. [18]
Outro precedente sobre ação afirmativa foi o caso Johnson v. Transportation Agency (1987). O caso teve origem quando Diane Joyce foi promovida no lugar de Paul Johnson. Ambos os candidatos eram qualificados para o emprego. No entanto, como uma prática de ação afirmativa, a Agência de Transportes da Califórnia levou em consideração o gênero dos pretendentes ao cargo para conceder a promoção. [19]
Quando o caso foi enfrentado pela Suprema Corte dos Estados Unidos, firmou-se o posicionamento de que os critérios adotados pela Agência eram razoáveis, ao considerar o gênero apenas como um dos critérios para a concessão da promoção. Além disso, entendeu-se que o critério adotado pela Agência não criou uma barreira absoluta para a promoção de empregados do sexo masculino. [20]
Outro caso interessante ocorreu em 1983, quando a cidade de Richmond adotou uma série de regulamentos que exigiam que as empresas de construção civil, ao firmarem contratos com a cidade, eram obrigadas a subcontratar 30% do contrato com empresas pertencentes a grupos étnicos minoritários. [21]
Quando o caso City of Richmond v. J. A. Croson Co. (1989) chegou ao conhecimento da Suprema Corte norte-americana, o Excelso Tribunal firmou o posicionamento de que a adoção exagerada de políticas de ação afirmativa com base na reparação de "erros do passado" subvertia valores constitucionais. Por fim, a Suprema Corte asseverou que "O sonho de uma nação ter cidadãos iguais em uma sociedade em que a raça seja irrelevante para a obtenção de oportunidades e para a busca de objetivos estaria perdido se fosse construído um mosaico de preferências baseado em uma reclamação desmesurada dos erros do passado". [22]
Também não se pode deixar de se mencionar o caso Metro Broadcasting, Inc. v. Federal Comunnications Commission (1990), em que se discutiu a constitucionalidade de 02 (duas) políticas de ação afirmativa adotadas pela Comissão Federal de Comunicações. A primeira política estabelecia que os pedidos de licença das minorias teriam preferência, se todos os outros critérios de concessão de licença analisados fossem semelhantes. A segunda política adotada permitia a venda de licenças para compradores pertencentes a grupos minoritários, sem que houvesse manifestação da Comissão Federal de Comunicações sobre a viabilidade das estações de transmissão. [23]
A grande discussão que chegou ao conhecimento da Suprema Corte era se as 02 (duas) políticas acima mencionadas violavam o disposto na Emenda V da Constituição norte-americana. [24][25]
Ao analisar a questão, o Excelso Tribunal entendeu que as políticas estabelecidas pela Comissão Federal de Comunicações eram constitucionais porque representavam a adoção de medidas adequadas para se evitar a discriminação e estavam de acordo com os objetivos preconizados em uma política de ação afirmativa. [26]
Por fim, não se pode deixar de mencionar o caso Adarand Constructors, Inc v. Pena (1995). Adarand submeteu à administração pública a proposta mais baixa para um projeto custeado pelo Departamento de Transporte dos Estados Unidos. De acordo com os termos do contrato federal, o contratante teria direito a receber uma compensação se contratasse pequenas firmas controladas por minorias étnicas. Outra empreiteira, Gonzales Construction Company, acabou vencendo a licitação. Esta empresa foi classificada como pertencente a uma minoria, enquanto a empresa de Adarand não foi. A questão é que o empreiteiro principal que teria aceitado a proposta de Adarand não foi escolhido por causa do pagamento extra destinado à contratação de Gonzales. [27]
A Suprema Corte dos Estados Unidos foi indagada se a presunção de desvantagem baseada em um critério apenas racial poderia conceder um tratamento favorável, uma prática discriminatória que violaria, em tese, o princípio do devido processo legal estabelecido pela Emenda V da Constituição dos Estados Unidos. [28]
O Excelso Tribunal norte-americano superou o precedente Metro Broadcasting, Inc. v. Federal Comunnications Commission (1990) e asseverou que todas as classificações raciais impostas, seja por autoridades federais ou estaduais, devem passar por uma revisão criteriosa e rigorosa, observando-se o interesse público. A Corte entendeu que os programas de compensação que são verdadeiramente baseados na desvantagem ao invés da raça devem ser avaliados por um critério de igualdade menos rigoroso. Entretanto, como a raça não é uma condição suficiente para a presunção de uma desvantagem e para a concessão de um tratamento favorecido, todos os critérios de classificação baseados exclusivamente na raça devem ser julgados rigorosamente. Por fim, o Tribunal asseverou que, até mesmo provas de discriminação passadas não podem, por si só, ser motivo para o estabelecimento de um sofrimento presente ou futuro. [29]
Por todo o exposto, percebe-se que a Suprema Corte dos Estados Unidos moldou, ao longo dos anos, os limites das políticas de ação afirmativa, sempre partindo da premissa de que a ação afirmativa, apesar de se constituir um instrumento de fundamental importância para a igualdade de oportunidades, não pode inviabilizar por completo o acesso da maioria à vantagem, emprego ou serviço ofertado. Além disso, o Excelso Tribunal, sempre buscou, na análise dos casos concretos, verificar se as políticas federais e estaduais de ação afirmativa são realmente necessárias para a proteção dos grupos minoritários, levando-se em consideração os princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
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NOTAS:
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