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Efeitos da revelia e possibilidade de desentranhamento da contestação apresentada depois do prazo legal.

Aparentes restrições preclusivas e princípio constitucional da ampla defesa

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25/08/2010 às 15:50
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3. Impossibilidade de preclusão da apresentação de contestação pelo réu: prevalência de garantias constitucionais

Analisando a questão sob o enfoque constitucional, o artigo 5ª, LIV, dispõe que "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal"; enquanto o inciso LV do mesmo artigo assegura que "Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com meios e recursos a ela inerentes".

Apesar de distinções doutrinárias, por vezes sutis, não há como, efetivamente, pensar na existência indissociada dos princípios da ampla defesa e do devido processo legal, ao menos no atual estágio epistemológico. Atualmente, os dois princípios estarão sempre unidos; em outras palavras, não pode haver devido processo legal sem ampla defesa nem ampla defesa sem o devido processo legal.

Certo que, na sua gênese, o devido processo legal só abarcava a igualdade formal, mas a evolução modificou seu conteúdo, abarcando a igualdade material, além dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, que fazem parte do devido processo legal na sua acepção material.

Em todo caso, a ampla defesa é parte integrante do devido processo legal. Portanto, temos dois princípios constitucionais indissociáveis.

Para efetivação do devido processo legal, é essencial que o processo garanta um procedimento que faculte aos envolvidos todos os meios que posam convencer o julgador da procedência de suas razões [26].

A ampla defesa pressupõe o contraditório, a faculdade, ao menos potencial, de que ambas partes participem, de forma ativa, do convencimento do magistrado; não se resumindo ao mero conhecimento de um ato, sendo também necessário que se disponibilize à parte a oportunidade de se manifestar sobre ele [27].

O contraditório e a ampla defesa, por seu turno, pressupõe igualdade de posições abstratas entre autor e réu.

Se interpretarmos o contraditório como o reconhecimento de iguais possibilidades de participação no procedimento, por sua vez o direito de ampla argumentação há que ser a todos os envolvidos reconhecido como o direito de trazer à discussão institucionalizada, que é o processo, toda e qualquer questão que entendam ser relevantes também, e mais uma vez, para a reconstrução do caso e do Direito a fim de que seja construída a decisão do caso. [28]

Ambas as partes devem ter a possibilidade de influir, por igual, no convencimento do magistrado, outorgando-se, a cada uma delas, a oportunidade de apresentar argumentos que se contraponham aos fatos e provas apresentados pela outra parte [29].

Como todo princípio, podem ser sopesados, contudo, é necessária a manutenção de um substrato material mínimo, afastando-se a possibilidade de uma total supressão.

Aliás, pela própria dicção da Constituição, não basta que a parte tenha o direito de defesa, é necessário que se garanta:

[...] a ampla defesa, com meios e recursos a ela inerentes. O preceito ampla defesa reflete a evolução histórica e legislativa que reforça tal princípio e denota elaboração acurada para melhor assegurar sua observância. Significa, nestes termos, que a possibilidade de rebater acusações, alegações, argumentos, interpretações de fatos, interpretações jurídicas, para evitar sanções ou prejuízos, não pode ser restrita. [30]

Fixados estes pontos, questiona-se, sob a perspectiva constitucional, a possibilidade de uma regra legal determinar o desentranhamento da peça básica de defesa do réu, que consubstancia suas alegações de fato e de direito, o norte primeiro e, na instância planicial, principal de seus esforços defensivos.

Ora, não são necessários maiores esforços hermenêuticos para concluir pela inconstitucionalidade de tal norma, que não apenas limitaria a ampla defesa e o contraditório, mas, ao menos na instância planicial, praticamente suprimiria os seus efeitos.

Não fosse possível ao réu oferecer contestação, também não seria possível apresentar petição simples expondo suas alegações de defesa - materialmente, uma contestação - , a qual, pelo mesmo entendimento, seria desentranhada dos autos. Assim, de nada adiantaria a possibilidade de produzir provas - supondo-se o momento processual adequado - se não fosse possível um exercício mínimo do direito de defesa, por petição escrita.

A ampla defesa, o contraditório e, por corolário, o devido processo legal estariam não apenas limitados, mas afastados do processo, em evidente desrespeito ao artigo 5ª da Constituição.

Aliás, no artigo 5ª, onde estão localizados os princípios da ampla defesa, do contraditório e do devido processo legal encontram-se as disposições atinentes aos direitos e garantias fundamentais, que, na perspectiva constitucional hodierna, possuem eficácia irradiante, fornecendo diretrizes para aplicação de todo o complexo normativo infraconstitucional.

Como primeiro desdobramento de uma força jurídica objetiva autônoma dos direitos fundamentais, costuma apontar-se para o que a doutrina alemã denominou de uma eficácia irradiante (Ausstrahlungswirkung) dos direitos fundamentais, no sentido de que estes, na sua condição de direito objetivo, fornecem impulsos e diretrizes para a aplicação e interpretação do direito infraconstitucional, o que, além disso, apontaria para a necessidade de uma interpretação conforme aos direitos fundamentais, que, ademais, pode ser considerada - ainda que com restrições - como modalidade semelhante à difundida técnica hermenêutica da interpretação conforme à Constituição. [31]

Assim, incabível uma norma que proíba o réu de apresentar sua defesa nas instâncias jurídicas iniciais, ainda que o réu não tenha exercido este direito no momento processual ordinário. Tal norma não limitaria ou sopesaria os princípios citados, pois, ao deixá-los sem um substrato material de aplicação mínimo, acabaria por inviabilizá-los.

Por estes motivos, não se pode adotar uma teoria temperada, facultando ao réu a possibilidade de apresentar contestação de forma tardia, mas limitando o âmbito da peça a determinadas matérias de ordem pública [32]. A Constituição garante uma defesa ampla, não materialmente limitada.

O ato-fato processual revelia, reitere-se, não pode impedir o réu de apresentar nos autos toda e qualquer matéria de defesa, obstaculizando a aplicação de princípios constitucionais.

Também sob o enfoque constitucional, observa-se o equívoco do entendimento que determina o desentranhamento da contestação e o acerto jurídico da tese que assegura a manutenção nos autos da peça de defesa.


4.Conclusão: A revelia não impede a apresentação, ainda que tardia, da contestação, por ausência de regra legal que assim determine, pelo princípio da documentação dos atos processuais e, principalmente, porque se trata de meio indispensável para garantia potencial do princípio da ampla defesa, do contraditório, enfim, do devido processo legal

O réu que ingressa tardiamente no processo sofre prejuízos óbvios.

Primeiro, até o seu ingresso no feito, o magistrado tem contato apenas com os argumentos e ponderações apresentados pelo autor, formando um convencimento, ainda que inicial e passível de mutação, desfavorável ao réu. Os prazos correm sem que ele seja intimado, sem que lhe seja oferecido o conhecimento do estado do processo.

Além disso, há sempre a possibilidade, considerando o efeito material da revelia, de que o magistrado julgue imediatamente a lide, certamente de modo desfavorável ao réu.

Esses são os efeitos da revelia, que possuem maior amplitude quando o réu não contesta; mas que também ocasionam conseqüências no caso de apresentação tardia da contestação, ainda que, no campo estritamente jurídico, percam a maioria de seus efeitos depois que o réu ingressa no feito.

Os efeitos da revelia, portanto, ocorrem efetivamente, ainda que mantenham a amplitude máxima somente enquanto não apresentada a contestação.

Em todo caso, a incidência destes efeitos, com maior ou menor amplitude, evitará que os prazos peremptórios tornem-se inócuos. Inexiste tal risco.

As conseqüências da revelia, portanto, são apenas aquelas previstas na regra legal, dentre as quais não se encontra a possibilidade de desentranhamento da peça de defesa. Inexiste regra legal que prescreva, como efeito da revelia, a extinção ou preclusão do direito de defesa. Basta o prejuízo, teórico e efetivo, que o réu terá sofrido pela incidência de todos os efeitos da revelia até o seu comparecimento no feito.

Além disso, as normas que tratam dos efeitos da revelia são típicas regras de exceção, devendo ter interpretação restrita, não cabendo, portanto, a aplicação da interpretação extensiva nem a utilização da analogia.

Ainda que existisse uma regra legal determinando o desentranhamento da contestação, peça de defesa principal na instância planicial, essa regra seria inconstitucional, pois limitaria com tanta abrangência o direito de defesa que, na prática, excluiria sua aplicação, contrapondo-se aos princípios da ampla defesa, do contraditório e do devido processo legal.

Por outro lado, é necessário fazer uma ponderação teleológica: qual a utilidade processual do desentranhamento da contestação? Não haverá benefício relevante para o andamento processual. Não há que se falar em celeridade, pois a contestação tardiamente apresentada em nada alterará a marcha processual, já que o réu revel terá ingressado, de qualquer modo, no processo, passando a ser intimado de todos os atos processuais, ainda que extraída dos autos a sua contestação. O único ato cartorário adicional é a intimação do autor para manifestar-se sobre as alegações do réu, o que é um acréscimo temporal relativamente pequeno e justificável diante das circunstâncias mencionadas.

É preciso distinguir, ainda, a contestação apresentada de forma tardia do recurso interposto tardiamente: em um caso há preclusão, justificada, mas no outro, não. Tratando-se de prazo recursal, a preclusão temporal tem função processual justificável: primeiro, porque o processo não pode perdurar indefinidamente; segundo, pela possibilidade, ainda que potencial, de conformismo pessoal do sucumbente com decisão e conseqüente não interposição do recurso.

Há diversas outras razões que diferenciam a interposição de um recurso e o exercício do direito de defesa, pois este é essencial e básico enquanto aquele é meramente circunstancial. Por fim, a impossibilidade de apresentação de um recurso depois do prazo legal é prevista de forma clara nas normas processuais, que não trazem nenhuma previsão proibindo a apresentação tardia da contestação – pelo contrário, já que há norma processual garantindo que o réu possa intervir no processo "a qualquer tempo".

Diante do exposto, é forçoso concluir que, ingressando o réu no processo, ainda que tardiamente, não há nenhuma norma legal que o impeça de apresentar petição escrita contendo toda a matéria de defesa que achar conveniente. E, ainda que houvesse, essa norma seria inconstitucional, por ofender os princípios da ampla defesa, do contraditório e do devido processo legal.

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Em face de decisão do magistrado planicial que determina o desentranhamento da contestação apresentada depois do prazo legal, cabe, de início, caso a decisão não esteja suficientemente fundamentada – o que, ordinariamente, é o caso – a oposição de embargos de declaração, para que o magistrado exponha as razões jurídicas que o levaram àquela conclusão. A fundamentação da decisão é importante para que toda a matéria seja prequestionada e debatida desde a instância inicial.

Tratando-se de decisão suficientemente fundamentada, o réu deve interpor, contra essa decisão interlocutória, recurso de agravo de instrumento para o tribunal revisor. Não há que se falar em agravo retido, pois a decisão gera prejuízos imediatos e possivelmente irremediáveis ao réu.

Se o tribunal mantém a decisão do magistrado planicial, pelo desentranhamento da contestação, tanto cabe o recurso especial quanto o extraordinário. Na verdade, é possível a interposição dos dois recursos. Especial, porque se trata de decisão sem suporte legal, violando as normas processuais que trazem as conseqüências estritas da decretação da revelia; além de existir claro dissídio jurisprudencial na matéria. Cabe, ainda, recurso extraordinário, já que a decisão afasta a aplicação do princípio constitucional da ampla defesa, violando, ainda, o contraditório e o devido processo legal.

A contestação, ainda que extemporânea, demonstra o interesse do réu na sua defesa, no exercício de garantias asseguradas pela Constituição, devendo, em qualquer caso, ser mantida nos autos processuais.


Referências

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Sobre o autor
João Aurino de Melo Filho

Procurador da Fazenda Nacional, Especialista em Direito Público e Mestre em Direito.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MELO FILHO, João Aurino. Efeitos da revelia e possibilidade de desentranhamento da contestação apresentada depois do prazo legal.: Aparentes restrições preclusivas e princípio constitucional da ampla defesa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2611, 25 ago. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17262. Acesso em: 18 abr. 2024.

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