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A eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares

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07/09/2010 às 14:29
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RESUMO:Objetiva-se fazer uma breve abordagem acerca da incidência ou não dos direitos fundamentais nas relações privadas, fenômeno conhecido como eficácia dos direitos fundamentais entre particulares. Destacam-se as teorias a respeito, tanto no plano externo como interno, como pontuam-se algumas decisões judiciais proferidas pelos Tribunais pátrios.

PALAVRAS-CHAVE: Direitos Fundamentais. Relações privadas. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

SUMÁRIO: Introdução. Dos Direitos Fundamentais nas Relações entre Particulares. A Jurisprudência Pátria. Conclusão. Referências.


INTRODUÇÃO

Hodiernamente, com a difusão do ideário de acesso à justiça e o aumento gradativo das relações estabelecidas entre particulares, em que o foco do poder se prolifera para além das fronteiras estatais, verifica-se que a noção tradicional de aplicação dos direitos e garantias fundamentais, até então restrita às relações firmadas entre o Estado e os seus cidadãos, vem cedendo espaço para a sua inserção no âmbito das relações privadas.

Não raro vê-se o grupo dirigente de uma associação esportiva ou recreativa alijar sumariamente de seus quadros um sócio que não comunga de seu pensamento ou que não concorda com os rumos adotados pela administração da entidade, sem lhe conferir quaisquer oportunidades de defesa.

Outrossim, comum a vedação de ingresso em determinados estabelecimentos de pessoas que possuam um certo patamar social, não desejado, normalmente de extrema pobreza, ou ainda, que detenham um credo não comungado pelos freqüentadores destes lugares.

Tais práticas, que até poucos anos atrás eram consideradas como uma questão interna das entidades privadas, vêm, nos dias atuais, sendo tratadas de forma distinta pelos estudiosos e aplicadores do direito, a fim de que lhes sejam conferidas a aplicação dos direitos e garantias fundamentais previstos na Carta Constitucional, hipótese denominada como "eficácia horizontal dos direitos fundamentais".

Eis a razão, portanto, de se tecer algumas linhas sobre o tema, dissertando-se sobre as teorias a respeito, tanto as que negam como as que defendem a incidência desta espécie de direitos nas relações privadas, bem como pontuando-se algumas decisões judiciais pátrias.


DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES ENTRE PARTICULARES.

Costumeiramente, sob uma ótica liberal, ainda formulada sob os auspícios da dicotomia entre direito público e direito privado, os direitos fundamentais apresentavam-se como uma forma de prevenir a atuação repressora do Estado, tendo como finalidade a proteção da sociedade contra as intromissões do poder político, sendo vistos como um instituto específico das relações mantidas entre o indivíduo e o Estado, a fim de salvaguardar a liberdade individual e social. [01]

Ocorre, todavia, que esta visão tradicional da matéria começou a ser posta em xeque após a 2ª Guerra Mundial, na década de 50, do século passado, passando a se sustentar a possibilidade da incidência dos direitos fundamentais nas relações privadas, sendo expoente desta discussão países como a Alemanha e os Estados Unidos da América.

Com razão, inicialmente, houve uma forte oposição doutrinária e jurisprudencial a esta nova conjuntura, especialmente por ainda estar impregnada da dicotomia liberal entre o público e o privado, até que na metade do século passado começou a formar-se movimentos no sentido de que os direitos fundamentais têm relação com a generalidade das relações humanas sejam na esfera pública sejam na esfera privada. [02]

Ingo Von Munch, assim disserta,

Uma vez desmoronado o dique que, segundo a doutrina precedente, separava o direito constitucional do direito privado, os direitos fundamentais se precipitaram como uma cascata no mar do Direito Privado. [03]

Para exemplificar a densidade da problemática cite-se as lições de Jane Reis Gonçalves Pereira, para quem,

É possível cogitar de uma série de hipóteses envolvendo potenciais lesões a direitos fundamentais na esfera privada, cabendo questionar: i) "se ou até que ponto as liberdades (religiosas, de residência, de associação, por exemplo) ou bens pessoais (integridade física e moral, intimidade, imagem) podem ser limitadas por contrato, com acordo ou consentimento do titular", ii) se uma empresa pode celebrar contratos de trabalho com cláusulas pelas quais os trabalhadores renunciem a exercer atividade partidária ou a sindicalizar-se; iii) se um partido político pode impedir que participem das convenções destinadas a escolher seus candidatos nas eleições, indivíduos da raça negra; iv) se é legítimo que um clube social recuse o ingresso de novo sócio sem declinar a motivação, ou proíba o acesso de pessoas de determinada raça ou sexo; [...]. [04]

Neste diapasão, importante destacar as diversas teorias surgidas para discutir a aplicação ou não dos direitos fundamentais na esfera privada, iniciando-se pela doutrina norte americana do "state action" que nega a eficácia dos direitos fundamentais nas relações particulares e sua amenização pela doutrina do "public function", passando-se pelas doutrinas alemãs da eficácia indireta e mediata dos direitos fundamentais na esfera privada, da eficácia direta e imediata, e finalizando-se, com a teoria dos deveres de proteção, analisadas a seguir.

Com efeito, logo após o surgimento da teoria da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, iniciou-se um forte movimento contrário nos Estados Unidos da América de sua aplicação, lastreado na posição clássica liberal de que os direitos fundamentais representavam exclusivamente direitos de defesa em face do Estado (state action), isto é, somente deveriam ser vistos em uma relação vertical e jamais horizontal. Dentre os argumentos utilizados, destacavam-se não só esta posição histórica, como também a autonomia individual, que seria fulminada no caso de se prevalecer tal tese, e a necessidade de se preservar o pacto federativo, pois lá, via de regra, compete aos Estados-Membros e não à União legislar sobre direito privado. [05]

De acordo com Daniel Sarmento,

[...] É praticamente um axioma do Direito Constitucional norte-americano, quase universalmente aceito tanto pela doutrina como pela jurisprudência, a idéia de que os direitos fundamentais, previstos no Bill of Rights da Carta estadunidense, impõem limitações apenas para os Poderes Públicos e não atribuem aos particulares direitos frente a outros particulares, com exceção apenas da 13ª Emenda, que proibiu a escravidão. [...] [06]

A referida doutrina do "state action" na Suprema Corte americana inicia-se ainda no século XIX com o julgamento de cinco casos de pessoas indiciadas por terem cerceado o acesso de negros a hotéis, teatros e trens, culminando na declaração de inconstitucionalidade da norma editada pelo Congresso Nacional daquele país (Civil Rights Act) sob o argumento de que a União teria recebido da Constituição apenas a competência para editar normas impedindo as discriminações praticadas pelos próprios Estados, mas não aquelas cometidas por indivíduos e empresas privadas. [07]

Todavia, a própria Suprema Corte americana, em alguns casos específicos, a partir da década de 40 do século passado, passou a amenizar esta teoria da "state action" que negava totalmente a aplicação dos direitos fundamentais na esfera privada, adotando a chamada "public function theory", segundo a qual quando particulares agirem no exercício de atividades de natureza tipicamente estatal, estarão sujeitos às limitações impostas pelos direitos fundamentais. [08]

Comentando sobre a "public function theory", Daniel Sarmento assim leciona,

[...] Esta teoria impede, em primeiro lugar, que o Estado se livre da sua vinculação aos direitos constitucionais pela constituição de empresas privadas, ou pela delegação das suas funções típicas para particulares, pois estes, quando assumem funções de caráter essencialmente público, passam a sujeitar-se aos mesmos condicionamentos constitucionais impostos aos Poderes Públicos.

Ademais, existem, segundo a Suprema Corte, certas atividades que, independentemente de delegação, são de natureza essencialmente estatal, e, portanto, quando os particulares as exercitam, devem submeter-se integralmente aos direitos fundamentais previstos na Constituição. [...] [09]

O caso mais importante de aplicação da "public function theory" ocorreu no precedente "Marsh v. Alabama" julgado em 1946 em que se discutia se uma empresa privada possuidora de uma determinada área com ruas, residências e estabelecimentos comerciais, poderia ou não proibir indivíduos da religião Testemunhas de Jeová de ali pregarem o seu credo. A Suprema Corte declarou inválida referida proibição, pois em seu entender a empresa se equiparava ao Estado e se sujeitava à 1ª Emenda da Constituição norte-americana que permite a liberdade de culto religioso. [10]

Embora tenha havido um progresso da Suprema Corte americana quanto à aplicação dos direitos fundamentais na esfera privada, por meio da construção da "public function theory", ainda há uma forte oposição à horizontalização desta espécie de direitos, culminando, inclusive, em obstáculos à possibilidade de tutela pelo legislador ordinário desta espécie de direitos nas relações privadas.

Do ponto de vista crítico, as doutrinas americanas da "state action" e da "public function theory" não representam os anseios protetivos da sociedade moderna, em que a opressão já não mais advém direta e unicamente da figura estatal, mas sim de outros poderes instituídos dentro da própria sociedade, normalmente detentores de capital, como as instituições privadas financeiras, empresariais, recreativas, dentre outras.

Outrossim, impende realçar que no âmbito do sistema jurídico pátrio, a Constituição da República de 1988 em nenhum momento procurou restringir a eficácia de suas normas às relações verticais, como a Constituição norte-americana, ao revés, como afirmado por Wilson Steinmetz "[...] a CF é uma Constituição que, além de normatizar as relações entre indivíduo e Estado, tem a pretensão de modelar, em questões fundamentais, as relações sociais." [11]

Deste modo, em sentido diametralmente oposto à teoria da "state action" norte-americana, surgiu na Alemanha em 1956, com Günter Dürig, a tese da eficácia horizontal mediata ou indireta dos direitos fundamentais, tornando-se concepção dominante naquele ordenamento jurídico. [12]

Para esta teoria, os direitos fundamentais na esfera privada não representam um direito subjetivo de seu titular que possam ser invocados, inclusive judicialmente, com esteio na Carta Constitucional. Representariam apenas uma ordem de valores que deveriam nortear as relações privadas, sem, contudo, nenhuma eficácia impositiva, pois, do contrário, reduziria-se a quase nada a autonomia privada.

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O argumento utilizado por esta teoria para negar a eficácia direta e imediata dos direitos fundamentais nas relações entre particulares assemelha-se com aquele utilizado pelos defensores da "state action". Todavia,

[...] A diferença essencial consiste no reconhecimento, pelos primeiros, que os direitos fundamentais exprimem uma ordem de valores que se irradia por todos os campos do ordenamento, inclusive sobre o Direito Privado, cujas normas têm de ser interpretadas ao seu lume. [13]

Ressalte-se que para os adeptos da teoria da eficácia mediata e indireta dos direitos fundamentais a proteção nas relações entre particulares deve ser prevista pelo legislador, estabelecendo uma disciplina no próprio direito privado que se revele compatível com os ditames constitucionais. Ao Poder Judiciário sobraria apenas o papel de preencher as cláusulas indeterminadas editadas pelo legislador e declarar a inconstitucionalidade daquelas normas privadas incompatíveis com a Carta Fundamental. [14]

Dentre as várias decisões proferidas pelo Tribunal Constitucional alemão destaca-se o julgamento do caso "Lüth". Tratava-se de tentativa de boicote a um filme dirigido por um cineasta de passado nazista pelo Clube de Imprensa de Hamburgo, presidido por Lüth. Após a decisão de primeira instância determinando a cessação do boicote, interpôs Lüth queixa constitucional junto à Corte Constitucional alemã. Esta, ao apreciar o recurso, deu-lhe provimento, assentando a premissa que aos tribunais civis, ao examinar litígios de natureza privada, devem levar em consideração os direitos fundamentais, interpretando os preceitos de direito civil de forma a harmonizá-los com os valores inerentes à Carta Fundamental. [15]

A tese ora em estudo também prevalece nas Cortes de outros países do mundo, como na Áustria e na França. [16]

Desta sorte, para os defensores desta corrente, por se tratar de relações no âmbito do direito privado, caberia aos seus representantes, membros do Poder Legislativo, a solução de eventuais conflitos surgidos, e não ao Poder Judiciário, cujos membros não foram escolhidos de maneira democrática pelo povo.

Do ponto de vista crítico, a teoria da eficácia indireta e mediata dos direitos fundamentais, ao incumbir ao legislador e não ao juiz o dever de estabelecer o campo de proteção dos particulares, se por um lado garante uma maior legitimidade a esta decisão, uma vez que o primeiro é escolhido através de processo de consulta pública, no caso brasileiro por meio de eleições diretas, e o segundo sem a participação direta do povo, seja através de concurso público, seja através de indicação presidencial com aprovação do Congresso Nacional, por outro lado, deixa os particulares sujeitos às maiorias eventuais, bem como à morosidade na aprovação de leis pelo poder Legislativo.

Ademais, no direito pátrio, o poder constituinte originário pareceu claro ao conferir ao poder Judiciário, especialmente ao Supremo Tribunal Federal, por meio do artigo 102, I, a, e III, da Carta Magna, a incumbência de por último dizer a força de atuação dos comandos normativos constitucionais.

Assim, em que pese o avanço obtido com a teoria da eficácia indireta e mediata dos direitos fundamentais, esta ainda não traduz as aspirações da sociedade moderna, tampouco denota a opção do constituinte originário pátrio, razão pela qual surgiu a chamada teoria da eficácia direta e imediata.

Com razão, contrapondo-se à teoria da eficácia indireta e mediata dos direitos fundamentais, outros autores alemães no mesmo período histórico, especialmente Hans Carl Nipperdey, passaram a defender a possibilidade de se invocar diretamente os direitos fundamentais nas relações privadas, sem a necessidade de se esperar a atuação do legislador, conferindo-se um verdadeiro direito subjetivo ao seu titular. [17]

Dissertando sobre o assunto, Carlos Roberto Siqueira Castro afirma que

[...] De acordo com esses autores, os direitos que a Constituição reconhece às pessoas e à coletividade configuram princípios básicos e objetivos da comunidade nacional vista em seu conjunto, destarte vinculantes tanto para o Estado quanto para os particulares e, de conseguinte, válidos e exigíveis para todas as relações sociais estabelecidas no interior da ordem jurídica estadual, sejam elas públicas ou privadas. [...] [18]

Com efeito, a teoria da eficácia direta e imediata dos direitos fundamentais no âmbito privado visa abarcar a generalidade dos indivíduos, possuindo, assim eficácia erga omnes, assumindo uma posição de verdadeiro direito subjetivo em face de indivíduos privados, sejam eles dotados de posições de poder, sejam dotados de posições de igualdade.

Neste diapasão, importante mencionar que a teoria da eficácia direta e imediata dos direitos fundamentais nas relações privadas não prega o fim da autonomia particular, mas defendem a necessidade de se ponderar o direito fundamental em jogo com a autonomia de cada um dos indivíduos presentes na relação.

Apesar de não ter logrado grande aceitação na Alemanha, esta tese é majoritária, tanto na Espanha, como em Portugal, na Itália e na Argentina. [19]

Portanto, para os defensores desta tese, é possível aos indivíduos que tenham seu direito fundamental violado por particulares, pleitear diretamente em juízo, a obediência ao mesmo, traduzindo-se em um verdadeiro direito subjetivo garantido pelo ordenamento constitucional frente a qualquer espécie de pessoas, sejam elas públicas ou privadas.

Do ponto de vista crítico, esta tese parece ser a que melhor se adequa aos anseios da sociedade moderna, conferindo, primeiramente, aos direitos fundamentais, ampla dimensão, abarcando não só as relações Estado-particulares, mas também as relações privadas; e em um segundo momento, ao poder Judiciário, marcado pela imparcialidade, a função de zelar pela observância dos direitos fundamentais nestas espécies de relações.

Seguindo na linha do pensamento das teorias que admitem a eficácia dos direitos fundamentais nas relações horizontais, recentemente, um segmento da doutrina alemã, no qual se destacam autores como Joseph Isensee, Stefan Oeter, Klaus Stern e Claus-Wilhelm Canaris, passou a defender a teoria dos deveres de proteção em relação aos direitos fundamentais na esfera privada, cabendo ao Estado não só o dever de abster-se de violar os direitos fundamentais, mas também o dever de protegê-los contra lesões e ameaças advindos de todas as espécies de terceiros, inclusive os particulares. [20]

Esta tese decorre de um desdobramento da dimensão objetiva dos direitos fundamentais, em que o Estado deve além de deixar de praticar qualquer ato que possa ir de encontro aos direitos fundamentais, atuar de forma positiva, protegendo os bens jurídicos fundamentais de quaisquer tipo de ameaças que provenham de outros indivíduos, sejam pessoas físicas, jurídicas, de direito público ou de direito privado. [21]

Neste sentido José Carlos Vieira de Andrade, para quem

Actualmente, embora se verifique a prevalência das idéias de aplicabilidade mediata, nota-se uma tendência doutrinal para a superação desse modo de apresentar o problema, em favor da construção já referida de um dever de proteção estadual dos direitos fundamentais, que não valeria apenas relativamente aos poderes públicos (incluindo outros Estados), mas também perante privados.

Os preceitos relativos aos direitos fundamentais dirigir-se-iam em primeira linha às relações entre os particulares e os poderes públicos, mas estes, para além do dever de os respeitarem (designadamente de se absterem de os violar) e de criarem as condições necessárias para a sua realização, teriam ainda o dever de os proteger contra quaisquer ameaças, incluindo as que resultam da actuação de outros particulares.

[...]

E esse dever de protecção não se resumiria ao cumprimento pontual daquelas imposições expressamente estabelecidas na Constituição, constituiria, para além disso, um dever geral, decorrente do princípio do Estado de Direito e do correspondente monopólio estadual da autoridade e do uso da força legítima, visto que os particulares, salvo situações excepcionais, só podem evitar ou defender-se das agressões dos seus direitos por outros particulares se os poderes públicos proibirem, prevenirem e reprimirem tais ofensas.

Assim, estas teorias do dever de protecção, embora sejam tributárias de uma idéia de aplicabilidade mediata, alargam a aplicabilidade dos direitos fundamentais para além do tradicional preenchimento das cláusulas gerais de direito privado, impondo aos poderes púbicos (ao legislador, à Administração e ao juiz) a obrigação de velarem efectivamente por que não existam ofensas aos direitos fundamentais por parte de entidades privadas. [22]

Nesta senda, destaca-se uma importante decisão proferida em 1990 pela Corte Constitucional alemã em que se debatia a proibição prevista no Código Comercial alemão ao ex-representante comercial de exercer a mesma atividade por até dois anos, sem indenização, quando sua demissão ocorrer por justa causa. Um determinado ex-representante comercial ingressou em juízo sustentando que esta vedação violaria seu direito fundamental ao livre exercício da profissão. Ao julgar o caso, a Suprema Corte alemã reconheceu, primeiramente, que pelo princípio da autonomia da vontade, era válida a celebração de contrato de trabalho contendo cláusulas restritivas permitidas em lei, mas para a regularidade deste acordo de vontade era necessário verificar se à data de sua assinatura a parte prejudicada encontrava-se em situação de igualdade com a outra, cuja proteção era conferida pela Carta Constitucional. Assim, por não ter o legislador, ao estabelecer a norma do Código Comercial, observado o dever de proteção incutido na Constituição, afastou o Tribunal Constitucional alemão a vedação imposta pela norma legal, dando ganho de causa ao ex-representante comercial. [23]

Do ponto de vista crítico, a teoria dos deveres de proteção aproxima-se da teoria da eficácia indireta dos direitos fundamentais nas relações privadas, cabendo, a priori,ao legislador, e não ao juiz, o dever de evitar a lesão destes direitos, salvaguardando, contudo, a atuação do Poder Judiciário, quando o legislador não exercer adequadamente seu papel, seja protegendo os direitos fundamentais, seja protegendo o ícone liberal da autonomia privada.

E no Brasil? Qual teoria foi, de fato, adotada pela Carta Constitucional de 1988?

Pela leitura da Constituição de 1988, denota-se que esta tem um forte caráter intervencionista e social, dotada de um detalhismo minucioso, [24] abrangendo em seu título II a proteção aos direitos individuais e coletivos, aos direitos sociais, aos direitos da nacionalidade, aos direitos políticos e aos direitos relacionados à existência, organização e participação em partidos políticos. [25]

Este rol de proteção consagra um modelo de Estado do Bem Estar Social, voltado para a promoção da igualdade, não só formal, mas também material, inexistindo uma separação rígida entre o Estado e a sociedade civil, sendo, nos dizeres de Daniel Sarmento "francamente incompatível com a tese radical, adotada nos Estados Unidos, que simplesmente exclui a aplicação dos direitos individuais sobre as relações privadas." [26] Portanto, no Brasil, não houve a adoção da tese da "state action"norte-americana.

Por outro lado, forte ainda nas lições deste jurista pátrio,

[...] Da mesma forma, ela (Constituição de 1988) nos parece inconciliável com a posição mais compromissória, mas ainda assim conservadora, da eficácia horizontal indireta e mediata dos direitos individuais, predominante na Alemanha, que torna a incidência destes direitos dependente da vontade do legislador ordinário, ou os confina ao modesto papel de meros vetores interpretativos das cláusulas gerais do Direito Privado." [27]

Comungando deste entendimento, autores como Jane Reis Gonçalves Pereira [28] e Ingo Wolgang Sarlet. [29]

Vê-se, desta forma, que nossa Lei Fundamental também não adotou a tese da eficácia indireta e mediata dos direitos fundamentais nas relações privadas, tampouco a teoria dos deveres de proteção.

Para Daniel Sarmento nossa Constituição adotou a teoria da eficácia direta e imediata dos direitos fundamentais nas relações entre particulares, pois nada há no texto constitucional que sugira a idéia de vinculação destes direitos apenas ao Estado, ou ainda, e forma indireta e mediata aos particulares. Ao revés, afora alguns direitos cujo destinatário é o Estado, na maioria dos outros casos o constituinte não estabeleceu de antemão nenhuma limitação no pólo passivo das liberdades públicas que afastasse os particulares. [30]

Há que se ter em conta que a Constituição de 1988 é uma Carta que não se baseia na miragem liberal de que o Estado é adversário do Direito, existindo vários direitos fundamentais endereçados contra a atuação privada, como, por exemplo, os direitos sociais trabalhistas, elencados em seu artigo 7º, sem prejuízo de outros tantos previstos no artigo 5º umbilicalmente ligados aos particulares, sem os quais não faria sentido a previsão constitucional.

Demais disso temos um dado empírico, a República Federativa do Brasil é um país extremamente desigual, cujas relações sociais normalmente são injustas e assimétricas, fato que justifica uma maior intervenção para proteção dos direitos fundamentais no âmbito privado.

Neste contexto, importante destacar os ensinamentos de Ingo Wolfgang Sarlet, para quem

[...] inexiste respaldo suficientemente robusto a sustentar uma negativa no que diz com a vinculação direta dos particulares aos direitos fundamentais, ao menos nas hipóteses em que não tenham por destinatário exclusivo o poder público. [31]

Na esteira desta digressão, também defendendo a teoria da eficácia direta e imediata dos direitos fundamentais nas relações privadas temos Gustavo Tepedino [32], posicionamento ao qual se alinha com o apresentado no presente artigo.

Todavia, para a correta aplicação dos direitos fundamentais nas relações horizontais, sem reduzir o papel fundamental do princípio da autonomia da vontade, deve-se partir de algumas premissas básicas, também conhecidas como standards mínimos, estando a primeira ligada ao menor ou maior nível de desigualdade entre as partes. Quanto mais desigual for esta relação, maior deverá ser a incidência protetiva dos direitos fundamentais, e quanto menos desigual for esta relação, menor será a intervenção do Estado, seja na esfera legislativa, seja na esfera judicial, confiando-se na autodeterminação dos indivíduos participantes desta relação.

Já a segunda premissa fundamental possui alicerce na fundamentalidade do direito à luz da ordem de valores prevista na Carta Magna, isto é, quanto mais fundamental for o direito, maior deverá ser a proteção a ele conferida.

Eis, portanto, um apanhado da posição doutrinária pátria a respeito da proteção constitucional conferida aos indivíduos nas relações privadas, defendo-se a tese que nossa Carta Cidadã adotou a teoria da eficácia direta e imediata dos direitos fundamentais na esfera privada, detendo, qualquer pessoa que sofra uma lesão nos mesmos, um verdadeiro direito subjetivo de postular sua proteção em qualquer órgão jurisdicional.

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Sobre o autor
Luis Marcello Bessa Maretti

Procurador da Fazenda Nacional. Bacharel em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, possui Especialização em Direito do Estado pela Universidade Estadual de Londrina.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARETTI, Luis Marcello Bessa. A eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2624, 7 set. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17348. Acesso em: 26 abr. 2024.

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