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Júri: pequenas observações históricas sobre um instituto ainda não compreendido

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20/10/2010 às 07:22
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Conclusão

O júri na história sempre foi uma instituição violentada pelas circunstâncias políticas que um Estado ainda não consolidado de direito se prestava. O poder de julgar, de dizer o direito no caso concreto, de produzir uma norma jurídica concreta entre as partes, de reconhecer no semelhante o grau de reprovação ou aprovação da sua conduta é determinante em uma sociedade amadurecida. O discurso da impunidade é preconceituoso e demonstra apenas um enorme desconhecimento e, por conseqüência, incompreensão da sua natureza.

Ao negar o júri, estamos incorrendo em um retrocesso democrático, de convivência comunitária, originado em nossas raízes, exposto pela nossa tradição e comumente observado pelo comezinho hábito das pessoas levarem as discussões relevantes para a um espaço público. Hoje essa praça pode ser vista de diversas formas, seja com a assunção de novas mídias, criando comunidades virtuais sobre a discussão do tema, seja pela ainda existencial presença que procuramos ter uns com os outros, mesmo com aqueles que não conhecemos. Visualmente relembramos a idéia que não somos seres autárquicos e necessitamos ainda dos nossos semelhantes, das nossas tribos, freqüentando os mesmo lugares com algum significado ideológico e construtivo.

A luta histórica da humanidade sempre foi no sentido de aumentar ou diminuir o poder do déspota (nas múltiplas formas que se apresenta), o julgamento popular foi um dos maiores expoentes dessa secular batalha. Mas nunca nos posicionamos para discutir, aprofundar e melhorar o nosso sistema, deixando-o como se fosse uma coisa menor dentro de toda a nossa prática democrática. Ser jurado ainda é uma função inexpressiva, uma exceção ao exercício da cidadania, um dever (ônus) e não um direito (bônus).

O chamado "repouso dogmático" do instituto, apontado por Aury Lopes Júnior, "pois há anos ninguém ousa questionar mais a sua necessidade e legitimidade" [31], implica na necessidade de uma clara revisão do que passamos, com as novas perspectivas de uma sociedade moderna e mais conectada. A utilidade do instituto será proporcional à possibilidade de renovarmos a sua prática, sem que com isso implique necessariamente no desprezo de sua existência.

Apesar de vivermos um período de estabilidade democrática há mais de vinte anos, feito quase inédito na nossa história, com a assunção de inúmeras práticas modernas da democracia, inexplicavelmente o júri permaneceu relegado a um exercício menor do nosso poder político. Para tanto, registre-se que só alteramos, e, diga-se muito timidamente, o Código de Processo Penal, que foi editado sob a Constituição de 1937, apenas no ano de 2008, deixando de incorporar um novo sentido de cidadania, que a Constituição de 1988 nos delegou.

A indiferença ao fortalecimento do instituto se explica de certa maneira pelas inúmeras intervenções políticas que sofreu ao longo da nossa história, o que levou E. D. Magalhães de Noronha a afirmar que "seria ir muito longe na crítica ao apontar os defeitos da instituição (do Júri). Em sua essência, ela é recomendável, em teoria perfeitamente aceitável, pois permite que o indivíduo julgado por seus pares seja; é o Júri a expressão de democracia. Todavia, na prática é facilmente desvirtuado".

De fato, como uma expressão geral podemos afirmar que o desvirtuamento em nossa democracia, especialmente no exercício do poder, na prática também é facilmente ocorrente, nem por isso relegamos os ideais de juntos, coletivamente, pelo voto, eleger (e renovar) os nossos mandatários e fiscalizar os atos de governos, muito menos de aperfeiçoarmos legislativamente essa prática.

O sistema jurídico norte-americano tem por pedra angular a discussão dos conflitos (cíveis ou criminais) pelo Tribunal do Júri, ainda numa formação pura, como foi concebido na Inglaterra em 1166, com um Grand Jury e um Petit Jury. Nem por isso eles abandonaram a sua conhecida praticidade ou incentivaram qualquer forma de impunidade. Ao contrário, isso não pode ser debitado àquela coletividade. Por outro lado, ao fortalecerem essa instituição, por conseqüência, revigorou-se na origem o sentido de cidadania do país, outro reconhecido traço marcante de sua sociedade.

Já em nosso sistema, em que predomina as decisões monocráticas, é disseminada na sociedade a idéia de que vivemos na impunidade, com uma inegável crise de legitimidade de decisão. Por mais injusto que possa ser esse ou aquele entendimento, isso é um fato, que se explica à sua medida pela falta contumaz de participação da sociedade no importante exercício de dizer o direito, que foi há anos usurpado pela elite sob o argumento da fragilidade/possibilidade de nosso povo de julgar bem.

Enquanto continuarmos a difundir esse modelo, estamos ao mesmo tempo condenando perpetuamente os nossos cidadãos a uma tutela desnecessária e injusta. Por outro lado, verifica-se que as deficiências do nosso modelo democrático de participação popular estão de alguma forma sendo superadas pelo exercício do voto, embora ainda com muitas resistências de setores mais conservadores. Nesse sentido, portanto, devemos prosseguir com o exercício contumaz da prática de julgamento popular, para que possamos naturalmente alcançar o aperfeiçoamento institucional necessário, sempre olhando para frente e sem esquecermos o que fomos submetidos no passado, superando todo acomodamento dogmático.

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Estamos no Século XXI. A nossa constituição foi hábil em delegar à lei a organização do júri. Já nos encontramos suficientemente maduros enquanto nação para assumirmos uma nova roupagem, atual e eficiente, controlada e acessível, para o julgamento popular. O que de fato não podemos é ficar, sem uma mínima postura construtiva, repetindo as práticas (erros) do passado e continuarmos criticando um instituto de vital importância para o nosso reconhecimento enquanto cidadãos e desenvolvimento/reconhecimento de nossa sociedade.

Por fim, é sempre bom lembrar Luigi Ferrajoli, quando professa que "em um verdadeiro Estado Democrático de Direito as garantias do Direito e do Processo Penal, de fato, expressam a técnica adotada pelo Estado com o objetivo de minimizar a violência e o poder punitivo, ou seja, para reduzir no máximo possível a previsão do delito, o arbítrio dos juízes e a aflição da pena". [32]


Notas

  1. Reis Friede, Ciência do Direito, Norma, Interpretação e Hermenêutica Jurídica. 5ª edição. Editora Forense Universitária. 2002. p. 09.
  2. Reis Friede, idem.
  3. Firmino Whitacker. Jury. 1904. TYP. ESPÍNDOLA, SIQUEIRA & COMP. Disponível no sítio eletrônico: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bd000105.pdf
  4. Rogério Lauria Tucci Tribunal do Júri – estudo sobre a mais democrática instituição jurídica brasileira, 1999, p.21. apud Reinaldo Oscar de Freitas Mundim Lobo Rezende no sitio eletrônico: http://jus.com.br/artigos/6865
  5. Idem.
  6. Paulo Rangel. Tribunal do Júri: Visão Linguistica, Histórica, Social e Jurídica. 2ª edição. Editora Lumen Juris, p. 42
  7. Paulo Rangel. Tribunal do Júri: Visão Linguistica, Histórica, Social e Jurídica. 2ª edição. Editora Lumen Juris, p. 43
  8. Idem
  9. Apud Paulo Rangel. Direito Processual Penal. 16ª edição. Editora Lumen Juris. 2009, p. 541
  10. Wikipédia no sitio eletrônico: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ord%C3%A1lia
  11. James Tubenchlak. Tribunal do Júri. Contradições e Soluções. 4ª edição. Editora Saraiva. 1994, p. 3 e 4.
  12. Guilherme Souza Nucci. Tribunal do Júri. Editora Revista dos Tribunais, p. 42
  13. Apud Paulo Rangel. Tribunal do Júri: Visão Linguistica, Histórica, Social e Jurídica, p. 62
  14. James Tubenchlak. Obra citada, p. 5.
  15. Guilherme Souza Nucci, Obra citada, p. 42 e 43.
  16. Paulo Rangel. Tribunal do Júri: Visão Linguistica, Histórica, Social e Jurídica, p. 63
  17. Paulo Rangel. Direito Processual Penal, p. 545.
  18. Paulo Rangel. Direito Processual Penal, p. 546.
  19. Paulo Rangel. Direito Processual Penal, p. 547.
  20. Carlos Marchi. A Fera de Macabu – O Maior Erro da Justiça Brasileira. Edições BestBolso. 1998.
  21. Guilherme Souza Nucci, Obra citada, p. 43.
  22. Instituições do Júri, apud Paulo Rangel. Direito Processual Penal, p. 554.
  23. James Tubenchlak. Obra citada, p. 7.
  24. Paulo Rangel. Tribunal do Júri: Visão Linguistica, Histórica, Social e Jurídica, p. 84
  25. James Tubenchlak. Obra citada, p. 7 e 8.
  26. Eugenio Pacelli de Oliveira. Curso de Processo Penal. 11ª edição. Editora Lumen Juris. 2009, p. 588.
  27. Guilherme Souza Nucci, Obra citada, p. 34
  28. Denílson Feitoza. Direito Processual Penal. 6ª edição. Editora Impetus. 2009, p. 493
  29. Aury Lopes Jr. Direito Processual Penal e a sua Conformidade Constitucional. Volume II. 2ª Edição Editora Lumen Juris. 2009. p. 338
  30. Universidade Federal do Paraná. Tese de doutorado. 2005. Disponível no sitio eletrônico: http://dspace.c3sl.ufpr.br/dspace/handle/1884/2619
  31. Aury Lopes Jr. Obra citada. p. 333
  32. Apud Paulo Rangel. Tribunal do Júri: Visão Linguistica, Histórica, Social e Jurídica, p. 85
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Sobre o autor
Fernando Antônio Calmon Reis

Defensor Público do Distrito Federal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

REIS, Fernando Antônio Calmon. Júri: pequenas observações históricas sobre um instituto ainda não compreendido. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2667, 20 out. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17652. Acesso em: 18 mai. 2024.

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