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Norma geral antielisiva: conceito, características, constitucionalidade, regulamentação e aplicação no Direito brasileiro

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22/11/2010 às 08:02
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2. Lei Complementar 104/2001: a norma geral antielisiva brasileira

No ano de 2001, através da Lei Complementar 104, foi acrescentado o parágrafo único ao artigo 116 do CTN, que ficou com a seguinte redação:

Art.116. Salvo disposição de lei em contrário, considera-se ocorrido o fato gerador e existentes seus efeitos:

I – tratando-se de situação de fato, desde o momento em que se verifiquem as circunstâncias materiais necessárias a que produza os efeitos que normalmente lhe são próprios;

II – tratando-se de situação jurídica, desde o momento em que esteja definitivamente constituída, nos termos do direito aplicável;

Parágrafo único. A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos estabelecidos em lei ordinária.

Este dispositivo penetrou no sistema jurídico nacional para operar como norma geral antielisiva. Permanece inaplicável até hoje porque não foi editada a lei ordinária exigida na parte final do parágrafo único, estabelecendo os procedimentos a serem observados para a desconsideração dos atos ou negócios jurídicos pelas autoridades fiscais.

2.1. Constitucionalidade

Esta inovação legal tem provocado grande agitação nos meios jurídicos. Sua compatibilidade com a Constituição Federal tem sido muito questionada, a pondo de tramitar no Supremo Tribunal Federal uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 2446), protocolada em 2001 [53]. Os debates travam-se entre aqueles que levantam a bandeira da inconstitucionalidade do instituto [54], por ofender princípios como a legalidade, tipicidade fechada, liberdade de contratação e segurança jurídica e, de outro lado, aqueles que entendem que o dispositivo é compatível com a Carta Magna, devendo a questão ser enfocada sob a ótica dos princípios da isonomia, da capacidade contributiva e da solidariedade. Examinemos os argumentos centrais utilizados pelas partes.

O princípio da legalidade, de todos conhecidos, está previsto no artigo 5º, inciso II da Constituição Federal [55]. Aparece novamente no inciso I do artigo 150 [56], o que faz a doutrina concluir pela consagração constitucional do princípio da tipicidade fechada [57]. Desta forma o disposto no parágrafo único do artigo 116 do CTN seria uma afronta a estes princípios por permitir que a autoridade fiscal, arvorando-se no papel de legislador, desconsidere atos e negócios jurídicos praticados pelo contribuinte para economizar tributo, em flagrante ofensa ao princípio da segurança jurídica.

Para os que pensam desta forma [58], após o ato administrativo de desconsideração, o tributo seria cobrado por analogia [59]. Explique-se. O contribuinte elegeu uma forma jurídica não tributada para a prática de determinado ato ou negócio. Desta forma, o fato gerador do tributo não aconteceu, tendo ocorrido outro fato, não tributado. Após o Fisco desconsiderar a forma adotada pelo contribuinte para elidir a norma tributária, remanesce o mesmo fato não tributado. Sobre este fato, não tributado, repita-se, o Fisco pretende fazer incidir a mesma norma que incidiria sobre o fato intencionalmente não praticado pelo contribuinte. E isto seria uma operação analógica, vedada pelo CTN [60], violadora dos princípios da legalidade e da tipicidade fechada. Agindo desta forma, autoridade fiscal estaria criando norma para o caso concreto [61], sem previsão legal da hipótese de incidência, base de cálculo, alíquota e demais elementos necessários ao tipo tributário. Em suma, um disparate frente ao princípio da segurança jurídica.

Entendemos que a fenomenologia da desconsideração não é corretamente descrita desta forma. Não estamos frente a um caso de analogia. Na elisão o contribuinte vale-se um negócio jurídico indireto com a finalidade única de economizar imposto. Atinge o mesmo efeito econômico (desejado) que conseguiria caso praticasse o negócio em sua forma típica, tributada. A norma geral antielisão permite que o Fisco desconsidere a veste formal dada ao negócio pelo contribuinte e o tribute de acordo com a sua verdadeira natureza. Desconsiderando-se o ato ou negócio praticado pelo contribuinte, o que resta? Restam os elementos que configuram o fato gerador do tributo que o mecanismo elisivo quis contornar [62]. Ou seja, deixando de lado a forma e buscando o conteúdo do ato ou negócio praticado, observa-se que o fato gerador efetivamente ocorreu. Portanto, não se trata de analogia, e sim de incidência direta da norma instituidora do tributo [63]. Desta forma, não há que se falar em afronta aos princípios acima mencionados, pois, na prática, após a desconsideração ou os elementos constituintes do fato gerador estão presentes, e é caso de lançar o tributo, ou não estão presentes, e é caso de não incidência [64].

Tal interpretação homenageia os princípios constitucionais da capacidade contributiva e da isonomia, que estabelecem que cada um deve pagar tributo na medida de suas forças, e que aqueles que se encontrem na mesma situação devem suportá-lo na mesma medida, como imperativo de justiça fiscal. Estes princípios têm a mesma estatura constitucional que os da legalidade, tipicidade fechada e segurança jurídica. A solução sobre quais devam prevalecer no caso concreto passa pelo uso da técnica da ponderação de valores, formulação do pós-positivismo jurídico [65]. A doutrina que, para execrar a norma geral antielisiva, defende a supremacia absoluta do princípio da legalidade e da tipicidade fechada em matéria tributária não resiste a uma leitura principiológica do ordenamento jurídico brasileiro. Ou será que o constituinte de 1988 quis fundar um Estado Liberal, nos moldes dos séculos XVIII e XIX?

A alegação do princípio da liberdade de contratação, de derivação constitucional, também é insuficiente para impingir inconstitucionalidade ao parágrafo único do artigo 116 do CTN. Como vimos acima, a liberdade de contratação sofre limitações pela função social que devem guardar os contratos.

Portanto, não há óbice constitucional à edição de normas gerais antielisivas em nosso país. Sua aplicação é que deverá observar todas as garantias constitucionais, sob pena de seu uso converter-se em arbítrio do Fisco.

2.2. Critério material eleito ou a falta de critério

O parágrafo único do artigo 116 do CTN confere poderes para a autoridade fiscal desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador ou de seus elementos constitutivos. A pedra filosofal para a compreensão do sentido e alcance deste dispositivo é o termo "dissimular". Muitos autores de direito tributário têm entendido que o verbo dissimular ali empregado é sinônimo de simulação relativa [66], e que, portanto, o conceito a ser adotado seria o do Código Civil. Desta forma, não haveria nada de novo no sistema tributário nacional, pois a simulação já tem disciplina legal, tanto no Código Civil [67] como no CTN [68][69]. Haveria aqui um erro monumental do legislador, que quis criar uma norma geral antielisão e acabou criando uma norma antievasão [70].

Outros autores, como Marco Aurélio Greco [71], entendem que o termo dissimular abrange, no direito tributário brasileiro, mais do que simulação relativa. Como já foi demonstrado acima, o direito tributário pode alterar o significado e alcance de institutos de direito privado, desde que não agrida o disposto no artigo 110 do CTN. Seria o presente caso. Desta forma, o vocábulo dissimular teria a potencialidade de abranger figuras como a fraude à lei, o negócio jurídico indireto, o abuso de direito, cuja aferição seria possibilitada pelo teste do propósito negocial. Esta interpretação fica reforçada pela letra da extinta Medida Provisória 66/2002 [72], que excluía expressamente de seu âmbito de incidência os atos e negócios jurídicos em que fossem verificadas a ocorrência de dolo, fraude ou simulação. Em seu artigo 14 este diploma legislativo trazia como critérios para a desconsideração dos atos e negócios jurídicos a falta de propósito negocial e o abuso de forma. O projeto de lei 536/2007, de autoria do Governo, vai no mesmo sentido.

A opinião mais lúcida sobre o assunto parece ser a de Hamilton Dias de Souza [73]. Segundo ele, ultrapassada a questão da constitucionalidade, o parágrafo único do artigo 116 do CTN é inaplicável por falta de densidade semântica. De fato, se o termo "dissimular" previsto no texto quer dizer algo mais do que simulação relativa, deveria tê-lo feito expressamente. Portanto, faltam critérios materiais capazes de pôr em movimento o dispositivo analisado. A previsão destes critérios em medida provisória ou lei ordinária é de validade muito discutível, já que a parte final do parágrafo único diz que a lei ordinária a ser editada para dar aplicabilidade ao dispositivo deverá estabelecer procedimentos (leia-se, apenas procedimentos) [74].

De fato, nos parece inviável consertar o erro de técnica do legislador complementar, que não previu critérios materiais [75] prestáveis para a aplicabilidade da norma geral antielisiva, através de lei ordinária. Esta lei ordinária só pode dispor sobre procedimentos. Concordamos que no contexto do direito tributário a expressão dissimular quer significar mais que simulação relativa, mas daí vem a pergunta: o quê? Em nosso sentir há apenas dois cominhos para o futuro da norma geral antielisiva: ou a redação do parágrafo único do artigo 116 do CTN é alterada por outra lei complementar para prever critérios materiais explícitos, ou o Governo terá que aguardar o pronunciamento do Supremo Tribunal Federal sobre o tema, e torcer para que ele dê uma interpretação tão elástica ao termo "dissimular" que torne viável a aplicação da norma [76].

2.3. Regulamentação

O parágrafo único do artigo 116 do CTN não é auto-aplicável. Depende

da edição da lei ordinária prevista na parte final de sua redação, que disporá sobre procedimentos. A primeira tentativa de regulamentação do dispositivo veio com a Medida Provisória nº 66, de 29 de agosto de 2002, um ano e meio após a edição da Lei Complementar 104, de 10 de janeiro de 2001. Tratava dos "Procedimentos Relativos à Norma Geral Anti-Elisão" nos seus artigos 13 a 19. Neste ponto não foi convertida em lei, perdendo sua eficácia e deixando a matéria sem regulamentação.

Para além dos procedimentos, trazia no artigo 14 novos critérios materiais para a norma geral antielisiva, numa tentativa de corrigir a falta de densidade semântica da expressão "dissimular", prevista no parágrafo único do artigo 116 do CTN. Dispunha que, para a desconsideração de ato ou negócio jurídico dever-se-á levar em conta, entre outras, a ocorrência de: I – falta de propósito negocial, indicada pela opção pela forma mais onerosa ou mais complexa entre duas ou mais possíveis para a prática de determinado ato; II – abuso de forma, consistindo na prática de ato ou negócio jurídico indireto, que produza o mesmo resultado econômico do ato ou negócio jurídico dissimulado. Neste ponto a MP 66/2002 foi muito criticada [77]. Ao trazer novos critérios materiais para aplicação da norma geral antielisiva, teria invadido o campo reservado a lei complementar e o seu artigo 14 seria, portanto, inconstitucional.

Quase cinco anos após, dentro do projeto legislativo que acabou se convertendo na Lei 11.457, de 16 de março de 2007, que criou a Receita Federal do Brasil, foi inserida e emenda 3, com a finalidade de alterar a redação do artigo 6º da Lei 10.593/02, acrescentando o § 4º:

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§ 4º No exercício das atribuições da autoridade fiscal de que trata esta lei, a desconsideração da pessoa jurídica, ato ou negócio jurídico que implique em reconhecimento de relação de trabalho, com ou sem vínculo empregatício, deverá ser sempre precedida de decisão judicial [78].

Esta emenda reacendeu os debates em torno da norma geral antielisiva, uma vez que possibilitaria ao Fisco desconsiderar as "empresas de uma pessoa só" [79] e lançar tributos como se de pessoa física se tratasse, independentemente de prévia decisão judicial. O parágrafo 4º acabou vetado pelo Presidente da República, ao argumento de que condicionar a ocorrência do fato gerador à existência de decisão judicial não atende ao princípio constitucional da separação dos poderes. Em verdade a emenda 3 não veio para regulamentar o parágrafo único do artigo 116 do CTN [80]. Após o veto o Governo enviou ao Congresso Nacional o Projeto de Lei 536/2007.

A redação original do PL 536, enviado ao Congresso Nacional em 21 de março de 2007, trata apenas de procedimentos [81][82]. Ao contrário da Medida Provisória 66/02, não traz critérios materiais para a aplicação da norma geral antielisiva. Caso aprovado com esta redação, os tribunais, em especial o STF, serão chamados a dar densidade semântica à expressão "dissimular", prevista no parágrafo único do artigo 116 do CTN, ou, caso entendam que esta tarefa é exclusiva do legislador, poderão proclamar a inaplicabilidade (ou inconstitucionalidade) do dispositivo na sua redação atual.

No entanto, já existe proposta de emenda modificativa [83], alterando os artigos 1º e 2º do PL 536/2007, acrescentando critérios materiais para aplicação da norma geral antielisiva e restabelecendo a disciplina pretendida pela emenda 3. Confira-se a nova redação proposta:

Art. 1º. Os atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária serão desconsiderados, para fins tributários, pela autoridade administrativa competente, observados os procedimentos estabelecidos nesta lei. Vedada a desconsideração da pessoa jurídica prestadora de serviços sem a prévia manifestação da Justiça do Trabalho.

§ 1º. São passíveis de desconsideração os atos ou negócios jurídicos que adotem formas ou estruturas lícitas, porém não usuais e sem propósito negocial outro que não ocultar os elementos do fato gerador que decorreriam do emprego da forma ou estrutura usual, de forma a reduzir o valor do tributo, evitar ou postergar o seu pagamento.

Art. 2º. Na hipótese de atos ou negócios jurídicos passíveis de desconsideração, nos termos do § 1º do art. 1º, o Auditor-Fiscal da Receita Federal do Brasil expedirá notificação fiscal ao sujeito passivo, na qual relatará os fatos e fundamentos que justifiquem a desconsideração, observada a prévia decisão da Justiça do Trabalho, quando se tratar de desconsideração de pessoa jurídica prestadora de serviços [84].

Mencionamos que existem outros dos Projetos de Lei em tramitação no Congresso Nacional, números 133 e 888/2007 [85], visando regulamentar o parágrafo único do artigo 116 do CTN. Seu enfoque pende mais para a questão da relação de emprego, permitindo a desconsideração da pessoa jurídica prestadora de serviços sem prévia apreciação pela Justiça do Trabalho.

2.4. Limites ao comportamento das autoridades fiscais: princípio da razoabilidade

Fica muito claro que, uma vez regulamentada a norma geral antielisiva e chancelada a sua constitucionalidade pelos Tribunais, ficarão imensamente majorados os poderes do Fisco. Também é cristalino que o uso destas novas prerrogativas pode descambar facilmente para o arbítrio, pois existem planejamentos tributários oponíveis ao fisco, que laboram no campo da liberdade de contratar, agregando-se a arranjos jurídicos que têm outros propósitos que não apenas o de economizar tributo. Por isso é preciso um poderoso antídoto constitucional para os eventuais desvios de conduta do Fisco. Pensamos que este antídoto está no princípio constitucional da razoabilidade.

Segundo Fábio de Oliveira [86]:

Razoabilidade é a norma constitucional que estabelece critérios formais e materiais para a ponderação de princípios e regras, com o que confere lógica aos juízos de valor e estreita o âmbito da discricionariedade com base na pauta prevista na Constituição, estando essencialmente ligada ao bom senso mais do que ao senso comum.

O princípio da razoabilidade é a chave do funcionamento dos sistemas constitucionais abertos, embasados pelos direitos fundamentais, como é o caso brasileiro. É ferramenta de mediação na ponderação de princípios, instrumento da dogmática constitucional principialista (pós-positivista). Subdivide-se nos subprincípios da adequação, necessidade e proporcionalidade. O princípio da adequação estabelece que, na busca do um determinado objetivo ou resultado, deve haver coerência entre a causa (ou motivo), o meio utilizado e a finalidade. O princípio da necessidade diz que a medida não deve exceder do imprescindível para o alcance do resultado pretendido. O princípio da proporcionalidade exalta a compatibilização dos valores (princípios e regras) que incidem sobre a questão [87].

O uso conjunto destes três princípios é capaz de identificar as situações em que existe discricionariedade, ou seja, as situações onde à autoridade administrativa é dado escolher entre dois ou mais caminhos, todos eles razoáveis. Estes casos são a minoria. Porém, devemos ter sempre em mente que a atividade administrativa de cobrar tributo é plenamente vinculada, como reza o artigo 3º do CTN. Portanto, sempre que, frente a uma situação que à primeira vista parece possibilitar a aplicação do instituto da desconsideração, um exame mais detido levar à conclusão de que existe outra ou outras interpretações razoáveis para os atos ou negócios jurídicos praticados pelo contribuinte, que não levem à aplicação da norma geral antielisiva, o Fisco deve abster-se de aplicar o parágrafo único do artigo 116 de CTN. Só deve aplicá-lo quando a única interpretação razoável para os atos ou negócios jurídicos praticados pelo contribuinte revelar com clareza a ocorrência de um fato gerador que o contribuinte pretendeu elidir, com o único fito de economizar tributo [88].

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Sobre o autor
Fábio João Szinwelski

Procurador da Fazenda Nacional

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SZINWELSKI, Fábio João. Norma geral antielisiva: conceito, características, constitucionalidade, regulamentação e aplicação no Direito brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2700, 22 nov. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17876. Acesso em: 27 abr. 2024.

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