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O alargamento da "disregard doctrine" no Brasil e a responsabilização pessoal dos sócios no âmbito das sociedades empresariais limitadas.

Uma necessidade de sistematização pelo Direito

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04/01/2011 às 17:43
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3. PANORAMA DA TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

3.1 A Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica (disregard doctrine).

Em inúmeras situações patológicas a pessoa jurídica acabou por ser o instrumento viabilizador de abusos de direito ou cometimento das mais diversas fraudes, à custa dos que com ela contratavam, terceiros, Poder Público, e o que é pior: subvertendo toda a construção jurídico-científica que gravita em torno do próprio instituto.

Assim, a pessoa jurídica e a separação patrimonial se por um lado incrementaram a economia, por outro passaram a ser um manto protetor que acobertava as mais diversas fraudes e abusos, pois alguns sócios, àvidos por lucro fácil, tinham a certeza da impunidade através de artifícios cada vez mais inteligentes e sofisticados que fincavam o muro da pessoa jurídica como proteção à responsabilização pessoal dos mesmos.

Por tal razão, foi concebida a teoria da desconsideração da personalidade jurídica (disregard doctrine) a fim de não apenas coibir a fraude e o abuso de direito quando a pessoa jurídica era utilizada indevidamente, mas, sobremaneira, para manter a higidez do sistema jurídico [61]. Enfim, como bem delimitado por GUIMARÃES NUNES [62], "a desconsideração da personalidade jurídica cuida de responsabilidade por ato ilícito".

De acordo com ULHOA COELHO [63]:

Deve-se ressaltar, contudo, que a solução para evitar manipulações como estas não é abolir a autonomia da pessoa jurídica, como regra. O problema não está no perfil básico do instituto, mas no seu mau uso. O objetivo da teoria da desconsideração da personalidade jurídica (disregard doctrine ou piercing the veil) é exatamente possibilitar a coibição de fraude, sem comprometer o próprio instituto da pessoa jurídica, isto é, sem questionar a regra da separação de sua personalidade e patrimônio em relação aos seus membros. Em outros termos, a teoria tem o intuito de preservar a pessoa jurídica e sua autonomia, enquanto instrumentos jurídicos indispensáveis à organização da atividade econômica, sem deixar ao desabrigo de terceiros vítimas de fraude.

A disregard doctrine não significa, pois, a extinção da pessoa jurídica. Muito pelo contrário, propõe a sua continuidade. Para tanto, sugere a responsabilização direta dos sócios em face do reconhecimento da ineficácia da pessoa jurídica para a prática específica do ato ou negócio viciado. Por assim dizer, não foi a pessoa jurídica quem cometeu a fraude ou o abuso de direito, mas sim os próprios sócios. "A pessoa jurídica não constitui um direito absoluto, mas está sujeita e contida pela teoria da fraude contra credores e pela teoria do abusos de direito" [64] [65].

REQUIÃO [66] sustenta que a teoria em comento teve origem no "direito anglo-saxão, espairando-se para o direito germânico e mais recentemente repercutindo na literatura jurídica da Itália".

Baseando-se na doutrina estrangeira, GUIMARÃES NUNES [67] aponta que a origem histórica da disregard doctrine se deu, em verdade, nos Estados Unidos em 1809, no caso Bank of Unites v. Devaux, por meio do voto do Justice Marshall. Mas o mesmo autor reconhece que foi o caso inglês Salomon v. Salomon & Co [68] o de maior repercussão e responsável pelo lançamento mundial das bases da teoria sob comento.

Por seu turno, CARNEIRO MARTINS [69] leciona que

A desconsideração da personalidade jurídica teve sua origem no ordenamento jurídico americano e não no sistema inglês, através do bastante referido caso Salomon & Salomon Brothers Co. E foi exatamente ao analisar a solução aplicada pelos juízes americanos que o teórico alemão Rolf Serick sistematizou, em sua tese de doutorado, no ano de 1953, as soluções aplicadas judicialmente, através da busca pelos critérios gerais ensejadores do afastamento da autonomia das pessoas jurídicas – e, consequentemente, de sua autonomia patrimonial -, formulados e adotados pelos tribunais norte-americanos.

(…) Rolf Serick não foi o primeiro a abordar questões relativas ao afastamento da autonomia das pessoas morais, mas foi o primeiro a sistematizá-la e, sem dúvida, o primeiro a organizar o assunto sob a ótica do direito continental europeu, modelo ao qual se filia o Brasil (…).

No Brasil, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica foi introduzida por Rubens Requião em conferência realizada na Universidade do Paraná no final da década de 60, que defendeu que o "juiz brasileiro também tem o direito de se indagar, em casos de fraude, a desconsiderar a pessoa jurídica" [70]. Importante frisar, que o mesmo defendia a aplicação da disregard doctrine, mesmo sem o anteparo legal.

Que fique claro, portanto, que uma vez apercebido pelos tribunais anglo-saxões que a pessoa jurídica, em certas e determinadas situações, não estava cumprindo sua função jurídica, perspicazmente contornou o problema da autonomia/separação patrimonial, lançando as bases da disregard doctrine. Coube a ROLF SERICK, pai da referida teoria, sistematizá-la e imprimir-lhe cientificidade, permitindo-se, por conseguinte, sua utilização ao redor do mundo. Inclusive, em seu estudo, CARNEIRO MARTINS [71] separa 04 princípios estabelecidos por SERICK para que haja, em tese, a correta aplicação da disregard doctrine, quais sejam:

a) Se a estrutura formal da pessoa jurídica é utilizada de maneira abusiva, o juiz poderá desprezá-la para que fracasse o resultado contrário ao Direito, para o que prescindirá da regra fundamental que estabelece uma radical separação entre a sociedade e os sócios (SERICK, 1958, p. 241);

b) Não basta alegar-se que se não houver a desconsideração da personalidade jurídica não poderá lograr-se a finalidade de uma norma ou de um negócio jurídico.

É que se trata da eficácia de uma regra do Direito de Sociedade de valor tão fundamental que não deve ser obstada nem de maneira indireta (SERICK, 1958, p. 246);

c) As normas que se fundam em qualidades ou capacidades humanas que pertinem a valores humanos também se devem aplicar às pessoas jurídicas quando a finalidade da norma diga respeito a esta classe de pessoas (SERICK, 1948, p. 251);

d) Se a forma de pessoa jurídica é utilizada para ocultar que de fato existe identidade entre as pessoas que intervém em determinado ato, poderá ser ela descartada quando a norma a aplicar pressuponha que a identidade ou diversidade dos sujeitos interessados não é puramente nominal, mas verdadeiramente efetiva (SERICK, 1958, p. 256)

Pois bem, diante do que já foi exposto no presente tópico, tem-se que situações que envolvam a utilização da pessoa jurídica de forma indevida, fraudulenta, caracterizando atuação individual dos sócios, merecem ser reprimidas, face a responsabilização direta dos verdadeiros culpados. Daí, inevitável será a desconsideração episódica da pessoa jurídica.

Ocorre, todavia, que a jurisprudência e o legislador brasileiro constantemente têm alargado a base de incidência da teoria em comento, privilegiando, em muitos casos, a teoria menor [72] da desconsideração da personalidade jurídica, permitindo sua aplicação em detrimento da efetiva existência dos requisitos da fraude ou do abuso de direito. Não é por outra razão, que a doutrina nacional já se mobiliza pela defesa do fim da própria disregard doctrine, seguindo exemplo da doutrina alienígena [73].

3.2 Hipóteses de responsabilidade dos sócios cotistas.

De acordo com o art. 1052 do Código Civil em vigor, "na sociedade limitada, a responsabilidade de cada sócio é restrita ao valor de suas quotas, mas todos respondem solidariamente pela integralização do capital social".

No ato de constituição de uma sociedade limitada, o sócio já define qual a medida de sua responsabilidade ao subscrever cotas do capital social, estando obrigado a integralizá-las. Porém, de acordo com a norma jurídica acima, ficará solidariamente obrigado à integralização do capital social total em havendo omissão dos demais sócios, sendo-lhe assegurado, todavia, o direito de regresso em face dos mesmos. Mas, uma vez integralizado o capital social, a regra é sua irresponsabilidade, cabendo aos que contratam com a sociedade avaliar se o patrimônio da pessoa jurídica pode fazer frente às obrigações assumidas pela mesma. É a aplicação prática do princípio da autonomia/separação patrimonial visto no item 2.4.

No Brasil não há a regra do capital mínimo [74] para operacionalizar a sociedade limitada, existindo, de igual sorte, "nenhum sistema de controle da realidade do capital social", de modo que os sócios estão livres para pactuar o capital inicial prudente para início das atividades sociais, embora sujeitos ao princípio da boa-fé. Assim, aqueles que contratam com a sociedade é que devem avaliar o grau de risco e a possibilidade do patrimônio da pessoa jurídica honrar com os compromissos firmados, daí repercutindo nos custos da atividade econômica desenvolvida.

Tal regra geral da limitação da responsabilidade, segundo ULHOA COELHO, cede em função de três exceções, momento em que os sócios podem vir a ser responsabilizados diretamente, a saber: a) falta de integralização do capital social (visto anteriormente); b) tutela dos interesses não negociais [75]; e c) repressão a práticas de fraudes perpetradas pelos sócios. Estas duas últimas exceções é que causam tumulto no meio jurídico, pois acabam por confrontar toda a técnica que envolve a separação patrimonial de um lado e a responsabilização pessoal dos sócios de outro.

A lei 8.078/90, que trata do Código de Defesa do Consumidor, não diferencia as hipóteses de responsabilidade direta e desconsideração da personalidade jurídica lançando tudo na vala desta última [76], por conta da adoção da teoria menor da personalidade jurídica. Chega a associar má administração com fraude, abuso e ilícito, o que é, deveras, lastimável. Ou seja, com redação demasiadamente ampla visa amarrar todas as hipóteses possíveis para responsabilizar diretamente o sócio, sendo irrelevante as noções de pessoa jurídica, de autonomia/separação patrimonial, de fraude ou abuso de direito. Melhor seria que em um único artigo se dissesse que a pessoa jurídica não tem eficácia no âmbito consumerista, sendo os sócios sempre responsabilizados pessoalmente, já que o objetivo é puramente este. Assim, atualmente, por força do § 5º do diploma consumerista, os sócios sempre poderão responder pessoalmente, ficando tal decisão adstrita exclusivamente ao juízo de valor do magistrado [77].

A lei 8.884/94 estabelece no artigo 16 que "as diversas formas de infração da ordem econômica implicam a responsabilidade da empresa e a responsabilidade individual de seus dirigentes ou administradores, solidariamente". Sendo que no artigo 18 [78] trata da desconsideração da personalidade jurídica, a despeito da última parte da norma não ser causa da aplicação da teoria, sendo uma ampliação equivocada. Aqui o legislador utilizou a técnica de separar claramente as hipóteses de responsabilização direta do sócio-administrador, daquelas em que a responsabilização se dá por meio da desconsideração da personalidade jurídica. Talvez, com a observação feita antes, seja a norma que existe em nosso ordenamento mais próxima do ideal.

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A lei 8.620/93 tratava no artigo 13 [79] da hipótese de responsabilidade pessoal e solidária dos sócios de empresas por cotas de responsabilidade limitada de débitos junto a Seguridade Social. Era fonte de profunda controvérsia doutrinária e jurisprudencial, tendo sido até mesmo objeto de ação direta de inconstitucionalidade. Mas a lei 11.941/2009 veio em boa hora revogar tal dispositivo, não obstante tentativas de mantê-lo vivo [80]. Assim, somente a pessoa jurídica pode ser responsabilizada perante o INSS. A presente hipótese, pois, deixa de ser exceção à regra geral.

O Código Tributário Nacional prevê as hipóteses de responsabilidade dos sócios nos arts. 134 [81] e135 [82], que tratam da responsabilidade por transferência de terceiros. Da leitura da primeira norma, depreende-se que se tratam, na verdade, de hipóteses taxativas de responsabilidade subsidiária, pois só terá lugar nos casos de impossibilidade de exigência do cumprimento da obrigação principal pelo contribuinte. Além do que mister se faz a ação ou indevida omissão à pessoa designada como responsável. Condição sine qua non, pois, é que o sócio exerça alguma função de administração da pessoa jurídica para que haja sua responsabilização pessoal lastreada em tal dispositivo. Logo, sócio meramente cotista não pode ser responsabilizado se não concorreu com o ato. Já no que toca ao art. 135, a responsabilidade do sócio será pessoal, desde que resulte de atos praticados com excesso de poderes ou infração da lei, contrato social ou estatutos.

Por oportuno, vale lembrar ainda que, por força de comando constitucional [83], só por meio de lei complementar é possível tratar de responsabilidade tributária [84], razão pela qual a jurisprudência tem que analisar com um cuidado muito maior seus alargamentos realizados, a exemplo da aceitação de presunções formuladas pelo fisco. Com a inserção da súmula vinculante no Brasil, seria muito fácil positivar novas situações de responsabilidade tributária por meio do Poder Judiciário. Inclusive, o STJ, corretamente, já afastou as presunções de que falta de pagamento [85] e mudança de endereço [86] por si só não são causas de responsabilidade direta dos sócios.

Como se evidencia, quando a atribuição da responsabilidade não for adstrita ao direito empresarial, tocando outros ramos jurídicos, verifica-se que outros princípios e fundamentos jurídicos são levados em consideração, cabendo ao legislador sopesar, por exemplo, entre a livre iniciativa e a tutela do consumidor, a fim de tutelar satisfatoriamente os interesses em jogo. Por isso, parte da doutrina já vem tratando a "tutela dos interesses não negociais" como "relativização da pessoa jurídica", como forma de conferir harmonia ao sistema, embora isso já se mostre quase impossível diante da mixórdia que tomou forma. Vejamos o que diz BORBA VIANNA [87] sobre a mencionada relativização:

Em razão disso, quando se estiver diante de um impasse como o de um obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados ao consumidor ou à qualidade do meio ambiente, utilizando-se da nova ordem constitucional de 1988, poder-se-á responsabilizar, dependendo das circunstâncias concretas de cada caso (v.g., da repercussão social do caso e do ato praticado contra o consumidor ou o meio ambiente), a pessoa responsável pelo prejuízo ou mesmo seus dirigentes que estão agindo em nome da pessoa jurídica.

Todavia, tal responsabilidade não se dará através da aplicação da disregard doctrine como impropriamente prevê o Código de Defesa do Consumidor e a Lei do Meio Ambiente (nos artigos supra referidos), mas sim, através de uma nova técnica jurídica, que, não obstante ainda não ter merecido o devido tratamento doutrinário, já foi chamada de "relativização da pessoa jurídica" por parte da doutrina, definida da seguinte forma:

"A relativização da pessoa jurídica significa que, à luz dos princípios gerais da atividade econômica previstos na CF e da função social da pessoa jurídica, os danos causados aos consumidores ou ao meio ambiente devem ser reparados, independentemente da pessoa jurídica, ou seja, ainda que esta não possua patrimônio suficiente ou adequado à indenização, hipótese em que os bens do sócio, que aceitou os riscos de explorar aquela determinada atividade econômica, devem responder pelos prejuízos causados".

Ou seja, esta formulação doutrinária (relativização da pessoa jurídica), muito próxima da teoria menor tratada por Fábio Ulhoa Coelho, ignora a existência da personalidade jurídica concedida à pessoa jurídica, responsabilizando diretamente os administradores (sócios etc.) da sociedade sempre que restar obstacularizado o integral ressarcimento do consumidor ou do meio ambiente.

Pois bem, no que se refere à terceira exceção, repressão a prática de fraudes perpetradas pelos sócios, a responsabilização do sócio se dá por meio da aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica vista no item 3.1, ao qual remetemos o leitor, ou por força do artigo 1.080 do Código Civil que assim dispõe: "as deliberações infringentes do contrato ou da lei tornam ilimitada a responsabilidade dos que expressamente a aprovaram".

Neste tópico, pode-se concluir que a regra geral aponta pela irresponsabilidade dos sócios em prestígio ao princípio da autonomia/separação patrimonial.

Ocorre que, a depender do interesse objeto de tutela, o legislador estabelece hipóteses em que os sócios poderão ser responsabilizados pessoalmente. Às vezes isso se dá exclusivamente, solidariamente, ou subsidiariamente. Em determinadas situações de forma taxativa, noutras de forma aleatória, deixando ao puro critério do magistrado no momento de aperfeiçoamento da norma jurídica.

Por seu turno, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica se aplicaria em situações em que não haja previsão legal de responsabilização direta dos sócios, mas, consoante lições de Rolf Serick, desde que presente requisitos específicos para sua aplicação, a exemplo da fraude e do abuso de direito. Inclusive, registre o pensamento de STOLZE & PAMPLONA FILHO [88], in verbis:

De fato, há uma distinção nítida entre responsabilidade dos sócios por dívidas da sociedade e desconsideração da pessoa jurídica.

A disregard somente se justifica para as hipóteses em que não há responsabilidade. Se o sócio já é diretamente responsável, não há que se falar em desconsideração. A teoria da desconsideração da pessoa jurídica serve, exatamente, para achar, desvendar, revelar o verdadeiro "negociante", que se escondeu com a "máscara" da pessoa jurídica. Serve, pois, para as situações em que o ato é, em princípio, lícito, só sendo ilícito na medida em que se revela que houve um abuso no exercício do direito de constituir ou valer-se de uma pessoa jurídica.

Em verdade, o que tem ocorrido, a despeito dessa tentativa de sistematização [89], é que quando se legisla ou se julga matéria atinente a responsabilidade, não há a menor preocupação com a cientificidade ou técnica no trato com a matéria, muito menos uniformidade. A responsabilidade empresarial é uma coisa, a consumerista é outra, a tributária é totalmente estranha a ambas e assim por diante. E o que é pior: quando são confrontadas geram teratologias jurídicas, que sequer a doutrina por meio da disregard doctrine ou, mais modernamente, da relativização da pessoa jurídica tem explicado de forma satisfatória. Enfim, é preciso um freio de arrumação, antes que o dano à ordem econômica seja irreversível.

Ainda, é preciso deixar claro que não se vislumbra aqui a desregulamentação da responsabilidade pessoal dos empresários ou o fim da teoria da desconsideração da personalidade, porquanto imprescindíveis ao próprio ordenamento. Não se entoa a tese de total irresponsabilidade dos empresários sob o manto da pessoa jurídica, pois parece ser mais coerente o pensamento de EROS GRAU [90]: "é necessário que o Estado se empenhe na defesa do capitalismo contra os capitalista".

Em poucas palavras: o tema responsabilidade pessoal dos sócios, por conseguinte a disregard doctrine, precisa de um tratamento sistemático, uniforme, coerente e seguro para que possa, a partir de então, ser adaptado às especifidades de cada ramo jurídico, e não como é feito atualmente, de forma aleatória e indiscriminada. É preciso simplificar, ao revés de ampliar e complicar, de modo a prestigiar a segurança jurídica, valor tão caro ao ordenamento jurídico brasileiro.

3.3 Críticas à disreagard doctrine

A doutrina [91] nacional costuma relacionar, com razão, os seguintes equívocos à aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica. Vejam que tais casos catalogados afastam-se daqueles princípios vetores relacionados por ROLF SERICK para aplicação fidedigna da disregard doctrine:

. presunção de fraude;

. inversão do ônus probatório [92];

. ausência de prévio acertamento da responsabilidade do sócio;

. a insuficiência de bens sociais como critério para a desconsideração;

. a restrição do princípio da autonomia da pessoa jurídica às obrigações negociáveis;

. aplicação na generalidade dos casos de dissolução irregular;

. o uso da desconsideração nos casos de fraude a credores ou a execução;

. possibilidade de aplicação ex officio.

Pois bem, visando superar essa aplicação desastrada pelo Poder Judiciário brasileiro, a doutrina [93] sugere o fim da mencionada teoria e adoção de outros institutos, quais sejam:

. abuso de direito;

. simulação;

. negócio indireto com fins ilícitos;

. fraude à lei;

. fraude à execução;

. teoria da aparência;

. teoria ultra vires;

. relação obrigacional;

. capital social;

. função social do contrato e as exigências que daí decorrem, sobretudo a tutela externa de crédito;

. boa-fé objetiva, seus deveres anexos e demais cláusulas gerais trazidas pelo novo Código Civil, tudo sem prejuízo das diversas hipóteses previstas em lei, por meio das quais os sócios respondem quando violam norma legal pré-existente e/ou contrato/estatuto social.

Entende-se corretíssima a preocupação e crítica da doutrina, mais que abalizada, acerca da aplicação da teoria da desconsideração personalidade jurídica no Brasil. Pelas razões demonstradas até aqui, a aplicação açodada pelo Poder Legislativo e Pelo Poder Judiciário brasileiros têm causado enorme dano a ordem econômica. Porém, não se acredita que o fim da disregard doctrine do cenário nacional e a aplicação autônoma dos institutos previstos na parte geral e das obrigações do direito civil seria a melhor solução para se acabar com a crise da pessoa jurídica. Ao contrário, a confusão apenas aumentaria, porquanto os tribunais perderiam a noção da preservação da personalidade jurídica e as hipóteses judiciais de responsabilização pessoal dos sócios seriam ampliadas op judice, sem mencionar o fato de que inúmeros juristas admitem a aplicação da teoria mesmo inexistindo previsão em texto legal.

Veja, a disregard doctrine é ancorada nas teorias da fraude e do abuso do direito, não tendo uma origem autônoma. Além do que, mesmo antes da sistematização da referida teoria, aqueles outros institutos já estavam ao alcance dos juristas de outrora, e, mesmo assim, havia a crise da pessoa jurídica. Por isso, tem-se que a teoria da desconsideração positivada representa uma evolução e garantia à livre-iniciativa, ainda que esteja longe do ideal. Trata-se de uma teoria concebida diante das particularidades que envolvem a pessoa jurídica, sobretudo a preocupação fundamental em preservar a personalidade jurídica, a autonomia patrimonial, por conseguinte, a ordem econômica.

O problema que há com a dita teoria é precisamente no seu alargamento indevido para além das situações de fraude ou abuso de direito, que precisa ser corrigido urgentemente pelo Poder Legislativo, uma vez que no âmbito do Poder Judiciário já é quase impossível corrigir-se atualmente, afora aqueles outros equívocos técnicos catalogados por CEOLIM, conforme visto, mas que também podem ser superados por meio de uma norma jurídica precisa.

Assim, defeitos existem na aplicação do teoria da desconsideração da personalidade jurídica, mas se entende que decretar o seu fim será um retrocesso desnecessário. Também não se pode ser inocente a ponto de acreditar que uma lei uniforme sobre o tema vá erradicar com todos os problemas que existem atualmente, pois o Direito não se restringe a tanto, salvo na concepção dos exegetas. Logo, o caminho mais indicado é aperfeiçoar a aplicação da disregard doctrine em nosso país.

3.4 Pretensões Legislativas.

O Projeto de Lei n° 2.426/2003 de autoria do então Deputado Federal Ricardo Fiúza tinha por objetivo regulamentar o disposto no art. 50 do Código Civil, exatamente em razão da insegurança jurídica promovida pela jurisprudência ao tratar da disregard doctrine, como fica claro na justificação do projeto ora transcrita:

Embora só recentemente tenha sido introduzido na legislação brasileira, o instituto da desconsideração da personalidade jurídica vem sendo utilizado com um certo açodamento e desconhecimento das verdadeiras razões que autorizam um magistrado a declarar a desconsideração da personalidade jurídica.

Como é sabido e consabido o instituto em referência tem por escopo impedir que os sócios e ou administradores de empresa que se utilizam abusivamente da personalidade jurídica, mediante desvio de finalidade ou confusão patrimonial, prejudiquem os terceiros que com ela contratam ou enriqueçam seus patrimônios indevidamente. A "disregard doctrine" pressupõe sempre a utilização fraudulenta da companhia pelos seus controladores, (Ver lei inglesa art. 332, Companies Act de 1948). Na Inglaterra, essa responsabilidade dos sócios e administradores originalmente só era admitida no caso de dolo. Atualmente já é extensiva aos casos de negligência ou imprudência graves na conduta dos negócios (reckless trading). De acordo com o art. 333 da Companies Act, admite-se a propositura de ação contra o administrador (officer), nos casos de culpa grave (misfeasance e breach of trust), mas tão-somente para que sejam ressarcidos os danos causados à sociedade pelos atos contra ela praticados. Nos Estados Unidos, a doutrina da transparência tem sido aplicada com reservas e tão somente nos casos de evidente intuito fraudulento, quando a sociedade é utilizada como simples instrumento ou alter ego do acionista controlador. Em tais hipóteses de confusão do patrimônio da sociedade com o dos acionistas e de indução de terceiro em erro, a jurisprudência dos Estados Unidos tem admitido levantar o véu (judges have pierced the corporate veil) para responsabilizar pessoalmente os acionistas controladores (v. o comentário Should Shareholders be Personally Lieble for the Torts of their Corporations? In Yale Law Journal, nº 6, maio de 1967, 76/1.190 e segs. E especialmente p. 1.192).

Esses casos, entretanto, vêm sendo ampliados desmesuradamente no Brasil, especialmente pela Justiça do Trabalho, que vem de certa maneira e inadvertidamente usurpando as funções do Poder Legislativo, visto que enxergam em disposições legais que regulam outros institutos jurídicos fundamento para decretar a desconsideração da personalidade jurídica, sem que a lei apontada cogite sequer dessa hipótese, sendo grande a confusão que fazem entre os institutos da co-responsabilidade e solidariedade, previstos, respectivamente, no Código Tributário e na legislação societária, ocorrendo a primeira (co-responsabilidade) nos casos de tributos deixados de ser recolhidos em decorrência de atos ilícitos ou praticados com excesso de poderes por administradores de sociedades, e a segunda (solidariedade) nos casos em que genericamente os administradores de sociedades ajam com excesso de poderes ou pratiquem atos ilícitos, daí porque, não obstante a semelhança de seus efeitos, a matéria está a exigir diploma processual próprio, em que se firme as hipóteses em que a desconsideração da personalidade jurídica possa e deva ser decretada.

Todavia, convém lembrar a inconveniência de se atribuir a todo e qualquer sócio ou administrador, mesmo os que não se utilizaram abusivamente da personalidade jurídica ou até mesmo daqueles que participam minoritariamente do capital de sociedade sem praticar qualquer ato de gestão ou se beneficiar de atos fraudulentos, a responsabilidade por débitos da empresa, pois isto viria a desestimular a atividade empresarial de um modo geral e a participação no capital social das empresas brasileiras, devendo essa responsabilidade de sócio ser regulada pela legislação societária aplicável ao tipo de sociedade escolhido.

Essas as razões que me fizeram apresentar este projeto de lei, que espero mereça a aprovação do Congresso Nacional e venha a ser sancionado como lei pelo Excelentíssimo Senhor Presidente da República.

O parecer do Dep. Léo Alcantra recebido na Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria e Comércio foi positivo no sentido de aprovação do projeto, contudo foi arquivado posteriormente com fundamento no art. 105 [94] do Regimento Interno da Câmara dos Deputados Federais. Assim, o país perdeu uma grande oportunidade de avançar no trato do tema. Tratava-se de um projeto de qualidade, em que pese, de lege ferenda, acreditar-se que poderia vir a ser modificado para melhor.

Em nosso sentir, uma vez que aqui se defende o tratamento uniforme da matéria, deveriam não apenas ser suprimidos os arts. 5° e 6° do Projeto, mas ainda ser veiculado por meio de lei complementar, para ter validade na seara tributária e previdenciária, além de constar dispositivo revogando expressa e discriminadamente todas as outras normas que façam menção a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, a exemplo do art. 18 da Lei 8.884/94 e art. 28 da Lei 8.078/90. Ou seja, somente a nova legislação iria regular a desconsideração da personalidade jurídica no ordenamento brasileiro. Mas nada impede que possa vir a ser admitida no projeto uma norma específica de inversão do ônus da prova a ser aplicada na seara consumerista, ambiental e trabalhista, desde que oportunizado efetiva e previamente o contraditório, justamente para se atender aos desígnios constitucionais.

Não tem sentido exigir em cada um dos micro-sistemas jurídicos requisitos e hipóteses distintas para a desconsideração, uma vez que a aplicação da teoria é limitada à repressão ao abuso de direito e fraudes, somente! Outrossim, em havendo situações específicas de atribuição de responsabilidade direta dos sócios em cada um dos ramos do Direito, permanece a necessidade dessas serem previamente tipificadas em respeito ao princípio da segurança jurídica, concorrendo, todavia, a exigência de uma razão lógico-jurídica, sob pena de a norma padecer de eficácia social.

Repise-se não é lógico que o sistema societário disponha pela limitação da responsabilidade dos sócios às quotas ou ações por eles integralizadas e, em paralelo, para fins de consumo, que são bastante abrangentes, de responsabilidade ambiental, trabalhista, de direito concorrencial a regra praticamente contrária ao regime geral de responsabilização de sócios e administradores [95].

Havia, ainda, o Projeto de Lei n° 7.160/2002 que visava dar nova redação ao artigo 50 [96] do Código Civil. Inclusive, estabelecia que a pessoa jurídica têm existência distinta de seus membros, noção que não foi textualmente reproduzida pelo novo Diploma Civil. Logo, tal correção seria muito bem bem vinda. Porém, também foi arquivado com fundamento no art. 105 do Regimento Interno no ano de 2007.

Cite-se o Projeto de Lei n° 5140/05 que traz o art. 883-D da CLT, para dizer que "a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, à execução trabalhista, exige prévia comprovação de ter ocorrido abuso de direito, desvio de finalidade, confusão patrimonial, excesso de poder, ocorrência de fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social".

Tem-se ainda que a Comissão de Juristas [97] encarregada de elaborar o Anteprojeto do Novo Código de Processo Civil já discute o assunto da desconsideração da personalidade jurídica no âmbito processual, tamanha a importância do assunto em destaque. Inclusive, em mensagem ao Sen. José Sarney, o Min. Luiz Fux expressa a necessidade de

n) Regular, na Parte Geral, a desconsideração da Pessoa Jurídica na forma da lei civil como condição para a fixação da responsabilidade patrimonial dos sócios na futura fase de cumprimento da sentença bem como regular o instituto na execução extrajudicial, garantido o contraditório prévio, aos sócios no próprio processo satisfativo.

Apenas um dos problemas que envolve a desconsideração, qual seja a necessidade de contraditório prévio, será tocada pela reforma do Código de Processo Civil. Mas permanecerá a necessidade de alteração substantiva cujos projetos anteriormente transcritos procuram tratar, sob pena do esforço processual se tornar inócuo.

Portanto, atualmente, há um esforço legislativo no sentido de barrar o uso indiscriminado da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, trazendo mais segurança para nosso sistema, e, por conseguinte, diminuindo o custo-Brasil [98]. Uma vez que existem vários projetos legislativos, muitos dos quais arquivados, pode-se aproveitar o conteúdo dos mesmos para dar continuidade aos trabalhos já realizados. Mas repita-se que há uma necessidade imperiosa de positivar uma única norma específica para tratar de forma uniforme a desconsideração da personalidade jurídica, daí decorrendo a utilização por todos os ramos jurídicos, por conseguinte mantendo-se a harmonia de nosso sistema.

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Sobre o autor
Jorge Leal Spínola Costa

Advogado, Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Católica do Salvador.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Jorge Leal Spínola. O alargamento da "disregard doctrine" no Brasil e a responsabilização pessoal dos sócios no âmbito das sociedades empresariais limitadas.: Uma necessidade de sistematização pelo Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2743, 4 jan. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18129. Acesso em: 23 abr. 2024.

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