Resumo:
O propósito do presente estudo dirige-se à análise crítica das decisões do STF tomadas à luz da ADI 2135 e Reclamações posteriores, onde se vem decidindo pela incompetência da Justiça do Trabalho para processar e julgar quaisquer feitos entre trabalhadores e o Poder Público, com fundamento na suposta inadmissibilidade, pelo regime constitucional atual, de celebração de contrato de trabalho (regime celetista) entre Estado e indivíduo. Para chegar ao nosso objetivo, incursaremos pela doutrina e jurisprudência construídas desde a promulgação da Constituição de 1988, passando por breve análise das Emendas Constitucionais n. 19 e 45, até adentrarmos à ADI 3395 e, por fim, mais detidamente, à ADI 2135/DF.
Palavras-chave: ADI 2135; competência material; incompetência; Justiça do Trabalho; contrato de trabalho; regime jurídico; regime estatutário; regime celetista; trabalhador temporário; ADI 3395; EC 19; EC 45; EC 51.
1. Introdução
O tema "competência da Justiça do Trabalho" tem inspirado doutrinadores e juristas a acalorados debates desde o surgimento da nova ordem constitucional. Contudo, com o advento da Emenda Constitucional n. 45/2004, tais discussões sofreram sensível amenização, haja vista que, com a emenda, incorporaram-se ao texto constitucional as várias teses majoritárias dantes defendidas. No entanto, nos três anos seguintes, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento de duas ações diretas, desestabilizou inteiramente o que já se dava por consagrado no que tange à matéria da competência da Justiça laboral. O primeiro abalo veio logo após a promulgação da EC 45, com a ADI 3395, em 2005; o segundo, mais recente e bem mais grave, surgiu com o julgamento, ainda liminar, da ADI 2135, em 2007. Desde então, a jurisprudência nacional encontra-se à deriva no que pertine à questão, e mesmo o próprio STF não entende à unanimidade o tema.
Com efeito, faz-se necessário o estudo crítico do problema, perpassando-se, de início, pela matéria da competência material e residual da Justiça do Trabalho.
2. Competência jurisdicional ratione materiae da Justiça do Trabalho – breves considerações.
A competência do órgão jurisdicional, do ponto de vista constitucional e legal, é definida em razão de várias subdivisões. Tais subdivisões são critérios de fixação da competência, agrupados, conforme o entendimento de cada doutrinador, em três, quatro ou cinco planos, sendo o mais importante deles, para efeito deste artigo, o critério material. Ressalva-se a existência de outros, desimportantes neste estudo.
Ao procurar identificar o órgão jurisdicional que teria competência para processar e julgar a causa, o intérprete (juiz, advogado, parte) norteia-se, de início, pelo critério material. Tal critério é de cognição bem simples, bastando para superá-lo o conhecimento da estrutura judiciária nacional: se a matéria é trabalhista, a competência é da Justiça do Trabalho; se a matéria é eleitoral, a competência é da Justiça Eleitoral; se a matéria é comum (assim entendida como toda aquela que não seja concernente às justiças especializadas da União), tem competência a Justiça Comum.
O primeiro problema a ser examinado pertine à proximidade entre o Direito do Trabalho e o Direito Civil, e a questão que se coloca, corriqueira na doutrina processual laboral, é a seguinte: ajuizada a demanda na Justiça do Trabalho, como saber se esta é realmente a justiça competente para o caso concreto, se se desconhece o mérito, ainda carente de apreciação? Noutras palavras: se o juiz do trabalho ainda não apreciou a natureza da relação jurídica material – se trabalhista ou outra qualquer, o que fará por ocasião da instrução e da sentença – como se afirmar que era a Justiça do Trabalho a competente, desde o início, para o processamento do feito?
Esse ponto de conflito do Direito Processual decerto que diminuiu com a ampliação da competência da Justiça do Trabalho, havida com a EC 45/2004, que incluiu na competência jurisdicional trabalhista várias relações jurídicas que sempre estiveram imersas na esfera da Justiça Comum, inobstante detivessem natureza marcadamente laboral, como as relações envolvendo os trabalhadores autônomos em geral.
Com efeito, a EC 45/2004 consagrou em definitivo um delineio que já se tinha jurisprudencialmente: a Justiça do Trabalho deveria ser a competente para processar e julgar as causas relativas a quaisquer relações de trabalho. A EC 45 consagrou uma justiça verdadeiramente do trabalho, em detrimento da mera justiça do emprego que se tinha antes. A espécie de direito material regente (se cível ou trabalhista ou administrativa; se relação de trabalho lato sensu ou relação de emprego) não mais seria óbice à análise do caso concreto pela Justiça do Trabalho. Se a relação jurídica detivesse cunho laboral, isto é, se a relação jurídica analisada tivesse como objeto principal o trabalho humano, regida ela ou não pelas normas específicas do Direito do Trabalho, atraída estaria a competência da justiça especializada.
Foge ao tema deste estudo analisar com detalhes o teor e os aspectos históricos envolvidos na elaboração da EC 45/2004, até porque o material doutrinário que se construiu nestes seis anos sobre o tema já é razoavelmente farto. Importa saber é que a referida emenda contribuiu grandemente para a solução do primeiro problema que se pôs linhas atrás. Com todas as relações de trabalho inclusas genericamente na competência da justiça trabalhista, a apreciação de seu mérito configuraria mero exaurimento da causa, pois certamente a competência já estaria definida. Pouquíssimas relações laborais ainda fugiriam à competência da justiça especializada, depois da promulgação da emenda, a exemplo do contrato de representação comercial, que, para parte da doutrina, ainda persiste nos domínios da Justiça Comum, por expressa previsão legal (Lei 4.886/65, art. 39).
Dessarte, imaginemos o seguinte exemplo: determinado trabalhador, representante comercial, esperançoso para se ver incluído no diploma protetivo da CLT, ajuizou demanda contra seu tomador dos serviços, alegando presentes os caracteres clássicos da relação de emprego, dizendo-se, portanto, empregado. Ora, tratando-se de representação comercial, a competência para o julgamento da causa é da Justiça Comum. Contudo, o juiz do trabalho ainda não sabe de que se trata. A princípio, ele tem em mãos uma causa para a qual se julga, ao menos inicialmente, o juiz competente. O magistrado só se aperceberá da real natureza da relação jurídica havida entre as partes quando da análise meritória da lide, aperfeiçoada com a instrução processual. E sua conclusão acerca dessa relação jurídica só poderá se manifestar por sentença. Ou seja: o juiz do trabalho é competente em toda e qualquer causa que se lhe apresente, até que se defina sua competência ou incompetência. Trata-se da denominada competência residual. O juiz trabalhista é sempre competente, nem que o seja apenas para se declarar incompetente. Só então os autos, se incompetente concluir o juízo, devem ser remetidos à Justiça Comum. Cuida-se de uma premissa inafastável: não se poderia exigir que o trabalhador ajuizasse a demanda na Justiça Comum, quando ele próprio se considerasse empregado. Aceitar tal proposição equivaleria a subverter a ordem lógica do processo, haja vista que cabe ao juiz do trabalho dizer se certa relação jurídica está sujeita a sua competência especializada ou não.
Com essa premissa, que é uma realidade processual fática, constrói-se a idéia de que a fixação da competência jurisdicional em razão da matéria (competência material ou competência ratione materiae) se dá em face da natureza das alegações deduzidas em juízo, isto é, da causa de pedir e do pedido. Sempre foi assim, mesmo antes da EC 45/2004. E, assim, casos haverá em que se identificará de plano a competência e, noutros, a fixação definitiva da competência dependerá de apreciação mais detida do mérito. Em ambas as situações, porém, a competência foi inicialmente alocada em razão da causa de pedir e do pedido suscitados.
Sobre o tema, explica LEITE (2008, p. 190):
"A competência em razão da matéria no processo do trabalho é delimitada em virtude da natureza da relação jurídica deduzida em juízo. Tem-se entendido que a determinação da competência material é fixada em decorrência da causa de pedir e do pedido. Assim, se o autor da demanda aduz que a relação material é a regida pela CLT e formula pedidos de natureza trabalhista, só há um órgão do Poder Judiciário que tem competência para processar e julgar tal demanda: a Justiça do Trabalho".
E prossegue o autor citando jurisprudência do próprio STF (CC 6.959-6. Relator Min. SEPÚLVEDA PERTENCE. DJ 22/02/1991).
No mesmo sentido, DIDIER JR. (2007, p. 106):
"É pela natureza da relação jurídica substancial deduzida em juízo que se faz a distribuição da competência pelo critério objetivo. (...) O legislador vale-se dos elementos da demanda como critérios para distribuir a competência (...). A competência em razão da matéria é determinada pela natureza da relação jurídica controvertida, definida pelo fato jurídico que lhe dá ensejo (vara de família, vara criminal, vara cível, etc.)".
Percebamos: quando se trata de critério de fixação de competência, a justiça especializada é sempre preferencial à comum. Primeiro se verifica a eventual especificidade da matéria para, em caso de negativa, encaminhá-la ao juízo ordinário. Não fosse assim, a sistemática da justiça brasileira recairia no seguinte absurdo: o juiz comum analisaria se a relação material é realmente especializada ou não e, declarando que o é, remeteria os autos à Justiça do Trabalho, com o mérito já julgado. Ao juiz trabalhista competiria apenas efetuar os cálculos pertinentes. Teríamos então um juiz comum examinando matéria para a qual não teria competência e um juiz especializado impedido de examinar a matéria que seria de sua competência, haja vista que já foi decidida por outro, incompetente, em decisão transitada em julgado. Evidente que tal proceder se afiguraria ilógico.
Assim, à guisa de conclusão deste primeiro tópico, tem-se que a competência material é fixada, pelo menos de início, em razão da natureza das relações materiais deduzidas em juízo, isto é, da causa de pedir e do pedido. Portanto, ajuizando o trabalhador uma reclamação trabalhista em que se diz empregado, perdura, em razão da causa de pedir e do pedido, a competência material do juiz do trabalho, ao menos até que se verifique a inveridicidade dos fatos alegados na inicial, se for o caso. Trata-se da competência residual.
Muito bem. Para finalizar este tópico, devemos frisar que, depois da promulgação da EC 45/004, o Supremo Tribunal Federal, nos autos da ADI 3395/DF, referendou a medida cautelar anteriormente deferida pelo então presidente Nelson Jobim, em que se declarou que a Justiça do Trabalho era incompetente para processar e julgar as relações jurídicas de natureza estatutária, isto é, aquelas existentes entre os servidores e a Administração Pública (ADI 3395/DF. Rel. Min. CÉZAR PELUSO. Pleno. DJ 10/11/2006). A partir de então, a contrario sensu da redação claríssima do art. 114, I, da Constituição Federal, extraiu-se grosseiramente da competência da Justiça especializada a relação jurídica estatutária, inobstante se trate de indiscutível relação de trabalho. Com as decisões tomadas nos autos da ADI 3395, iniciava-se a confusão interpretativa em que se encontra hoje o STF acerca do tema.
3. A ADI 3395 e sua incompatibilidade com a EC 45/2004
Não é propriamente objeto deste estudo a análise cuidadosa da ADI 3395, senão como fator de compreensão da atual confusão jurisprudencial que fez o STF sobre a matéria. Para que possamos chegar à ADI 2135, é importante tecer comentários breves sobre esta outra Ação Direta, bem como sobre as emendas constitucionais n. 19 e 45.
À época da promulgação da Constituição de 1988, seu art. 39 dispunha expressamente que os entes federados (União, Estados, DF, Municípios), bem assim suas autarquias e fundações, deveriam instituir regime jurídico único para seus servidores. O regime constitucional anterior (CF/67) permitia à Administração direta ou indireta admitir ou contratar. Noutras palavras, sob o pálio da Constituição de 1967, o Poder Público poderia arregimentar trabalhadores pelo regime administrativo ou pelo regime celetista.
O constituinte de 1988 procurou modificar esse panorama de duplo regime, imprimindo exigência às pessoas jurídicas de direito público no sentido de que o uniformizassem. A partir da atual carta, não mais seria possível ao Poder Público (Administração direta, autárquica e fundacional) manter contratos de trabalho. A intenção do legislador foi a de unificar o regime jurídico para o estatutário. Surgiu então a noção de regime único. A despeito de alguns que entendam possa ser esse regime único o celetista, pensamos que se trata do estatutário, de natureza administrativa, que é o regime estatal por excelência. A figura do Estado-empregador é historicamente nova, posterior à noção de Estado-monarca, Estado-imperial, e isso é per si suficiente para concluir que o art. 39 tratava do regime típico de Estado, isto é, de estatuto. Não faria sentido o Estado se despojar de seu poder de império nas relações com os seus servidores.
Além dessa obrigatoriedade de instituição do regime jurídico único, de natureza estatutária, a Constituição de 1988 trouxe ainda uma outra novidade. A Constituição de 1967 não exigia o concurso público para as contratações, ou seja, para a arregimentação de trabalhadores pelo regime celetista. Essa exigência de certame para o provimento de empregos surgiu com a Carta de 1988. É certo que para a Administração direta, autárquica e fundacional essa novidade pouco importava, porquanto não lhe seria mais permitido celebrar contrato de trabalho. A norma interessava, a priori, apenas à Administração indireta de direito privado. Empresas públicas e sociedades de economia mista eram e são estatais sujeitas ao regime privado; assim, não estavam abrangidas pela regra do regime único. No entanto, ficavam pela CF/88 obrigadas a realizar o concurso.
Pois bem. Como dissemos, a Constituição Federal atual determinou, sem prazo, conforme redação de seu art. 39, que os entes de direito público elaborassem seu regime único. Contudo, passados quase dez anos de sua promulgação, grande parte dos entes federados, mormente os Municípios, ainda não haviam cumprido a norma constitucional. Movido por essa realidade fática e pela ideologia do Estado gerencial então reinante, o constituinte derivado editou a Emenda Constitucional n. 19, de 05/06//1998. A EC 19 extinguiu a obrigatoriedade do regime jurídico único. Sua nova redação não mais fazia remissão a qualquer necessidade de unificação. Passou-se assim a entender, corretamente, que o Poder Público se desobrigara de unificar o regime. A Administração direta e indireta poderia, agora, com a EC 19, arregimentar validamente trabalhadores tanto pelo regime administrativo quanto pelo regime celetista, salvo os entes que já houvessem editado sua legislação unificadora.
Em verdade, a EC 19 só incluiu na tecnologia jurídica constitucional uma realidade fática pré-existente: havia entes que não unificaram seu regime jurídico. Logo, permaneciam presentes no cotidiano do serviço público, em vários lugares do país, categorias de servidores stricto sensu e categorias de trabalhadores celetistas prestando labor ao mesmo ente federado.
Àquela época, entre 1988 e 2004, a Justiça do Trabalho, ao se deparar com ações movidas contra o Poder Público, apenas apreciava as relações laborais celetistas. A maior parte da doutrina e jurisprudência nacionais entendia que o art. 114, em sua redação original, só dava permissão à justiça obreira para processar e julgar os feitos entre empregados e empregadores. Assim, desde a promulgação da Constituição (05/10/1988) - que mandou unificar o regime - e depois, com o advento da EC 19 (05/06/1998) - que permitiu a dualidade de regime, mas apenas confirmando uma situação fática que já existia, porquanto vários entes federados não haviam mesmo elaborado seu regime único - a Justiça do Trabalho só apreciava as relações regidas pela CLT. Eis a redação original do art. 114, verbis:
"Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta dos Municípios, do Distrito Federal, dos Estados e da União, e, na forma da lei, outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, bem como os litígios que tenham origem no cumprimento de suas próprias sentenças, inclusive coletivas".
Em fins de dezembro de 2004 sobreveio a EC 45 que, como já dito anteriormente, trouxe para a seara laboral a generalidade das relações de trabalho, incluindo a estatutária. Eis a redação do art. 114, I, da CF/88, com a alteração da EC 45:
"Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar:
I. as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios; (...)".
Agora, não se falava mais de "dissídios entre trabalhadores e empregadores", mas de "relação de trabalho", apenas. Ficava evidente que a EC 45, imprimindo nova redação ao art. 114 constitucional, ao enfatizar que competia à justiça trabalhista julgar relações de trabalho, abrangidos os entes da Administração Pública direta e indireta, incluía em sua competência a relação estatutária, porque a celetista, não se tinha dúvida, já o era. Isto é de clareza total quando se busca a redação original da própria emenda, em que constava exclusão expressa dos servidores estatutários; trecho que se removeu depois, redundando na redação acima, disposta na atual carta política.
No entanto, o STF, nos autos de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade movida por uma associação de juízes federais temerosos pela perda de parcela de sua jurisdição, cedeu às pressões coorporativistas e terminou por julgar procedente o pedido, conferindo ao art. 114, I, da CF/88 o que se denomina de interpretação conforme, excluindo da competência da Justiça do Trabalho as relações de natureza estatutária (ADI 3395/DF. Rel. Min. CÉZAR PELUSO. Pleno. DJ 10/11/2006). A nós mais nos parece interpretação "disforme", haja vista que por meio de ação judicial se legitimou o descumprimento de clara norma constitucional, a despeito de doutrina, inclusive laboral, que apóie a decisão (FAVA, 2005, p. 195; CARVALHO FILHO, 2005, p. 484), sob a escusa de que as normas preponderantes sobre aquelas relações são de natureza administrativa. Esse pensamento, aliás, é semelhante ao que se entendia antes da EC 45 quanto às relações de trabalho autônomo, regidas que são pelo Direito Civil: se não se trata de CLT, não deve ser da alçada do juiz do trabalho. Esse "dogma" de tratar a Justiça do Trabalho como a "justiça do emprego", a "justiça do contrato de trabalho", e seus magistrados como "juízes de CLT" ainda é fortemente imberbe no pensamento dos juristas de escolas mais conservadoras e não são os seis anos de aniversário da emenda que farão deletar, ainda, esta forma de pensar. Como já se disse no cotidiano jurídico dos tribunais: competência traduz idéia de poder!
Enfim, em face da dualidade de regime - não surgida, mas aceita com o advento da EC 19 - porém, em razão da ADI 3395, a Justiça do Trabalho, incompetente que foi declarada para julgar as relações estatutárias, passou a decidir a questão da competência material, nos processos a ela submetidos, como sempre fez: provada nos autos a existência e a vigência do regime estatutário, que é formal e imprescinde de lei instituidora, a competência seria da Justiça Comum; não provados nos autos esses elementos, presumir-se-ia o regime celetista, prosseguindo ela no julgamento do feito.
Sobre essa presunção, há quem a critique, justamente por ser o regime administrativo o típico de Estado. Logo, uma vez figurando no pólo passivo da demanda um ente público, a presunção deveria recair sobre o regime estatutário, e não sobre o regime da CLT. Contudo, não se vislumbra regime administrativo sem estatuto. Nos termos da redação original do art. 39 da Constituição, não existe um estatuto genérico, de cunho nacional (como a CLT está para o regime celetista), mas apenas um federal, os estaduais e os municipais, cada qual vigente em sua parcela de autonomia político-administrativa. Daí porque não é possível presumir a existência do regime administrativo. A presença deste requer um estatuto vigente; há uma forma a ser adotada: a edição e publicação de lei instituidora do estatuto no âmbito daquele ente federado. Já o regime celetista, por outro lado, é informal. O diploma celetista é nacional, e o contrato de trabalho pode ser celebrado verbalmente, apenas (contrato realidade).
Poder-se-ia perguntar: e o concurso público? Não traduz o concurso uma forma a ser seguida? Evidente que sim, mas ele não é o traço distintivo entre os dois regimes, porquanto a CF/88 o exige para ambos. Casos há em que não haverá concurso. O que distingue os regimes são os traços peculiares de cada um, como a necessidade (quanto ao regime administrativo) de estatuto vigente na esfera do ente público demandado. Ora, tal necessidade não há quando se fala de regime celetista, vez que a CLT é uma lei nacional. O concurso, por sua vez, é uma característica em comum, que pode ou não estar presente (como nas situações de cargo em comissão, no regime administrativo, e nas de contrato nulo, no celetista).
Ademais, partindo-se da presunção pelo regime público apenas por que figurasse no pólo passivo a Administração, seria forçoso concluir que toda e qualquer demanda trabalhista contra o Poder Público deveria ser aforada, de início, na Justiça Comum. A tese de quem assim preconiza, se adotada, subverteria a ordem lógica processual que já comentamos: a de que a competência jurisdicional é sempre preferencialmente da Justiça especializada (competência residual). E como é fixada essa competência inicial ou residual? Através dos fatos e pretensões alegados em juízo, isto é, da causa de pedir e do pedido.
Repetimos, sempre foi assim. Até agora, não discutimos nenhuma novidade.
Entrementes, em 02/08/2007, o plenário do STF, nos autos da ADI 2135 (Rel. Min. ELLEN GRACIE. Pleno. Julgto 02/08/2007. DJ 07/03/2008), reconheceu o vício de inconstitucionalidade formal de que padecia a EC 19/1998, conferindo efeito repristinatório à antiga redação do art. 39 da Constituição Federal. Noutras palavras, voltou a exigência da unicidade de regime. E partindo dessa premissa, passou a entender o Supremo Tribunal que não há nem jamais haveria a possibilidade de a Justiça do Trabalho processar e julgar qualquer feito contra o Poder Público.