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A responsabilidade civil do transportador marítimo de cargas

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18/02/2011 às 11:55
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Das Causas Excludentes Legais de Responsabilidade

Três são as causas excludentes de responsabilidade do transportador:

Vício de origem

Caso fortuito

Força maior

O vício de origem abraça outras modalidades: vício de embalagem, culpa exclusiva do credor da obrigação de transporte e vício redibitório.

Vício de origem é o vício existente na própria coisa confiada para transporte.

Em outras palavras, é o vício ou defeito oculto da coisa já existente quando da entrega para o transporte marítimo, que impede sua utilização ou importa desvalorização.

Ora, se os danos constatados nos bens confiados para transporte marítimo preexistiam ao próprio transporte, não há que se falar em culpa do transportador.

Mesmo em se considerando a responsabilidade objetiva, é manifestamente injusto obrigar o transportador a responder por danos os quais nem minimamente deu causa.

Trata-se, pois, de uma causa excludente de responsabilidade que bem se ajusta aos muitos mecanismos de calibragem do sistema jurídico brasileiro e, mesmo, internacional.

Mas, a prova da existência do vício de origem compete exclusivamente ao transportador marítimo, por conta e ordem do império da teoria da inversão do ônus da prova, um dos pilares da teoria objetiva imprópria.

Assim, em sendo alegado pelo transportador eventual ocorrência de vício de origem, caberá a ele próprio a respectiva produção de prova, normalmente por meio de perícia judicial.

Não havendo prova específica em tal sentido, mantém-se, em desfavor do transportador, a presunção de culpa pelo inadimplemento contratual.

Dá-se isso porque o transportador muito provavelmente, num caso dessa natureza, recebeu a carga para transporte sem qualquer ressalva no conhecimento marítimo, vale dizer, "limpa a bordo".

O vício de embalagem é mais comumente alegado nas lides forenses sobre Direito Marítimo.

De certo modo, o conceito de vício de origem é parecido com o de vício de embalagem.

O vício de embalagem é o defeito existente na proteção da carga confiada para transporte.

Todo transporte, especialmente o marítimo, é sujeito a oscilações diversas.

Um navio, numa viagem normal entre a Europa e a América do Sul balança lateralmente centenas de milhares de vezes.

Logo, a embalagem da carga é medida de rigor e imprescindível para sua integridade física e qualitativa.

Se a embalagem, normalmente feita pelo embarcador, não for adequada poderá o transportador marítimo afastar a presunção legal de culpa por eventuais avarias.

Mas, nesse caso, a inversão do ônus da prova, além de igualmente imprescindível, é mais complexa de ser considerada.

Com efeito, o vício da embalagem não poderá ser visível a olho nu ou apurado por meio de procedimentos práticos ou máximas de experiência.

O artigo 746 do Código Civil expressamente prevê que "O transportador poderá recusar a coisa cuja embalagem seja inadequada, bem como possa pôr em risco a saúde das pessoas ou danificar o veículo e outros bens."

Em sendo conferida, por lei, a possibilidade do transportador de recusar a coisa suja embalagem seja inadequada, muito difícil a eventual caracterização de vício de embalagem.

De fato, ao receber a carga, o transportador automaticamente reconhece que a embalagem é adequada, pois se assim não fosse, poderia ter exercitado a faculdade disposta no citado artigo 746 do Código Civil.

Logo, para se ter caracterizada a figura do vício de embalagem é preciso provar, ainda, que o vício e defeito dessa mesma embalagem era manifestamente oculto no momento do embarque.

E ao se falar em "oculto", fala-se oculto aos olhos e as máximas de experiência, ao bom-senso e conhecimento da tripulação do navio, que sabe, a rigor, quais embalagens são ou não adequadas para a maioria das cargas que lhe são confiadas por meio de sucessivos transportes.

Importante destacar que vício de embalagem, jamais poderá ser confundido com vício de estivagem da carga.

O vício de estivagem, apesar do nome, não tem a nada a ver com o vício oculto. Trata-se, sim, de grave modalidade de falta contratual do transportador marítimo, que se revela desidioso quanto aos seus deveres operacionais.

Com efeito, a estivagem, ainda que operada por terceiro, é de inteira responsabilidade do transportador, por meio do comandante do navio.

O vício de estivagem, nada mais é do que a falha operacional do transportador marítimo em arrumar as cargas a bordo do navio.

Se o transportador não estivou corretamente um contêiner a bordo do navio e, em razão disso, o sinistro ocorreu, caracterizada sua culpa, não se cogitando a respeito de qualquer outra causa significativa para o acontecimento.

Da mesma forma, o tempo adverso não é motivo, por si só para a ocorrência de um sinistro, pois a despeito da intensidade deste, o que de fato ocorre é a estivagem inadequada da carga, dando causa ao evento danoso.

Pois bem:

Força maior e caso fortuito, são as causas excludentes de responsabilidade mais comumente alegadas pelos transportadores marítimos e as que são objeto das grandes discussões em lides forenses, posto que sua caracterização, não raro, é difícil de ser constatada no mundo fático nos dias correntes.

Referidas causas fazem parte do gênero fortuidade, sendo diferentes, apenas, no que diz respeito ao agente causador. Explica-se: enquanto na força maior o agente causador é a conduta humana, no caso fortuito, o agente é a força da natureza.

É importante destacar que esse entendimento não é pacífico na doutrina mundial. O Direito comparado apresenta a doutrina alemã em sentido contrário. Para os alemães, o conceito de força maior implica força da natureza e o de caso fortuito, a conduta humana.

No Brasil, muitos doutrinadores seguem o modelo alemão. Por isso, temos no Brasil uma situação particular em termos de conceitos e definições.

Explicando melhor: em termos estritamente maritimistas, costuma-se utilizar a expressão força maior como decorrente da conduta humana e caso fortuito como o evento nascido da natureza. Mas no âmbito geral do Direito Civil, temos o contrário: força maior, para eventos da natureza e, caso fortuito, para eventos originários do homem.

Há quem considere caso fortuito e força maior expressões sinônimas, sem distinção de qualquer natureza, uma vez que o que é relevante ao ordenamento jurídico é a projeção dos efeitos legais e concretos de um e de outro e que são praticamente os mesmos.

Em que pese o antagonismo conceitual existente entre os diversos ordenamentos jurídicos do mundo, é certo é que os efeitos são os mesmos e as conseqüências, no mundo do Direito, também.

Operando-se o gênero, fortuidade, é possível compreender melhor os institutos e postulados que regem as espécies, força maior e caso fortuito.

A caracterização da fortuidade depende dos seguintes elementos, tidos como pressupostos essenciais: imprevisibilidade, inesperabilidade [09] e irresistibilidade.

Os três itens acima são concorrentes, de tal sorte que precisam estar presentes, a um só tempo, dentro de um cenário fático para se cogitar ocorrência de fortuidade. A ausência de qualquer um dos itens fulmina, de pleno Direito, a invocação de fortuidade, sempre levando em consideração que quem a invoca tem o ônus de prova-la, sendo perfeitamente inserida no contexto da inversão do ônus da prova.

Não basta, portanto, a ocorrência de um fato considerado anormal e provocador de um determinado dano para se validar a alegação de fortuidade, é preciso que este fato seja absolutamente imprevisível, inesperado e irresistível.

Na esteira dos comentários feitos, Pedro Calmon Filho [10] afirma: "Por caso fortuito, ou força maior, que muitos consideram expressões sinônimas, temos os fatos imprevisíveis ou irresistíveis, que vencem a normal diligência e perícia que se pode razoavelmente esperar do armador e seus prepostos. São os fatos inesperados que ultrapassam a capacidade do homem de prevenir contra um perigo não normalmente esperado, ou lhe fazer face depois de deflagrado."

Fortuidade, portanto, é o evento originário das forças da natureza ou da conduta humana que, em Direito Marítimo, impede o cumprimento regular, pelo transportador marítimo, da obrigação de transporte. É, em resumo, o evento não esperado, totalmente imprevisível e de força irresistível. O fato (fenomênico e jurídico) que não depende da conduta humana, superando-a em todos os seus limites. É algo que acontece no mundo concreto, um verdadeiro e devastador happening, ou seja, um fenômeno invencível e que produz efeitos relevantes ao mundo jurídico.

Assim, não é, por exemplo, qualquer greve de trabalhadores portuários capaz de configurar a fortuidade e, da mesma forma, não é a simples ocorrência de uma tempestade, ainda que muito forte, igualmente capaz.

Não é ocioso repetir que a fortuidade reclama a existência efetiva, bem caracterizada e concomitante dos requisitos imprevisibilidade, inesperabilidade (inevitabilidade) e irresistibilidade.

Só se falará em fortuidade se o transportador marítimo conseguir provar, à luz do caso concreto, a ocorrência de um fenômeno imprevisível, inevitável e irresistível, sob pena de não se aproveitar alegação em tal sentido.

Significa dizer que a falta de apenas um dos requisitos em destaque tem o condão de afastar eventual caracterização de fortuidade. A força maior e o caso fortuito só existem se presentes os referidos três requisitos, capazes de superar os limites máximos de cuidado do transportador marítimo em relação aos bens sob sua custódia.

A falta de apenas um deles é o bastante para se ter afastada qualquer pretensão no sentido de se caracterizar a fortuidade. É de vital significado, ter-se como postulado tal entendimento, porque muito comum transportadores marítimos de cargas alegarem, diante dos casos concretos, fortuidade com base em apenas um dos referidos requisitos. Fazem-no porque continuam defendendo a idéia, há muito ultrapassada, de a expedição marítima ser uma verdadeira aventura, sujeita a inúmeros riscos e perigos, todos imprevisíveis ao homem.

Sobre o tema fortuidade em relação à navegação nos dias de hoje, Rubens Walter Machado, [11] afirmou: "...a força maior ou o caso fortuito previstos por nossa legislação comercial, são os fatos imprevisíveis ou irresistíveis que superam a normal diligência e perícia que se podem exigir do comando do navio. São os fatos inesperados que extrapolam a capacidade do homem prevenir-se contra um perigo não esperado, ou de enfrentar depois de iniciado. Em nossos dias, com o avanço da tecnologia, os navios são planejados e construídos para enfrentar os usuais perigos do mar. Os meios de comunicação existentes permitem que o comando do navio tenha uma exata e perfeita informação das condições do mar a ser enfrentado, permitindo que se afastem — quase que por completo — os fatos imprevisíveis, imprevistos e inesperados."

A lição acima evidencia a atual tendência pelo repúdio a idéia malsã de a expedição marítima continuar sendo, hoje, final do século XX, considerada uma aventura (tese ampla e isoladamente defendida pelos transportadores marítimos e os seus simpatizantes).

Aliás, a própria expressão "expedição marítima", não mais se ajusta a mecânica contemporânea do transporte marítimo de cargas, sendo mais conveniente a utilização de, simplesmente, "viagem marítima".

Existem inúmeras razões e motivos para repudiar a idéia da aventura. É fato notório que o constante avanço da tecnologia impulsionou um enorme desenvolvimento da engenharia naval. Nos dias de hoje, os navios são planejados e construídos para suportarem as adversidades [12] próprias do mar. São, aliás, construídos para superarem os mares mais furiosos e tempestuosos. Não é só: com a explosão da informática, a ciência meteorológica foi premiada com poderosos recursos e fantásticos equipamentos. Os modernos meios de comunicação existentes permitem que o comando do navio, por meio dos poderosos radares e computadores de bordo, diretamente ligados a satélites de última geração, tenha uma exata, ampla e segura informação, a qualquer tempo, das condições do mar e do clima a serem enfrentados.

Logo, bem se trabalhando o conceito de fortuidade, é muito difícil, para não dizer impossível, haver, nos dias atuais, um caso concreto em que um navio, no curso de uma expedição marítima, venha a ser colhido por um fato, ao mesmo tempo, inesperado, imprevisível e irresistível.

A questão, bom observar, está praticamente pacificada no Tribunais brasileiros, subsistindo dúvidas não mais em relação ao suporte jurídico, e a forma de entendê-lo e aplicá-lo em um dado caso concreto, mas, sim, ao próprio suporte fático do tema, vale dizer: se determinado acontecimento é ou não é um fato merecedor de ser amparado pela fortuidade.

Para melhor tratar do assunto, faz-se necessário um breve exercício de imaginação de nossa livre elaboração, figura ilustrativa criada a partir da repetição de acontecimentos similares em muitas disputas judiciais.

Um navio, recém-chegado no Porto de Santos, vindo de Paranaguá, deve seguir rumo aos Estados Unidos e à Europa, fazendo escala no Porto do Rio de Janeiro.

Para chegar ao seu destino final deve singrar parte do Atlântico Norte, durante o inverno. Todos que operam o transporte internacional sabe que aquela região do globo no inverno é notadamente afetada pelo mau tempo, ou seja, mares agitados ou furiosos, acossados por constantes tempestades.

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É previsível, portanto, a possibilidade de o navio vir a enfrentar adversidades no curso da expedição marítima. Já no Rio de Janeiro, porto de escala, o comandante do navio, preposto do transportador marítimo, é oficialmente comunicado que está sendo esperada uma terrível tempestade, verdadeira storm, alteração climática equivalente a um furacão, precisamente na área de navegação do navio rumo ao Atlântico Norte.

O comandante do navio tem duas opções: ficar atracado no porto fluminense até a passagem da storm ou zarpar assumindo todos os riscos inerentes ao enfrentamento da adversidade climática. Antes de tudo, é importante observar que o mau tempo, que já era previsível, tornou-se efetivamente esperado.

Pois bem, o comandante acredita ser capaz de resistir ao mau tempo e o transportador marítimo não aceita o fato de o navio ficar mais tempo parado, sem ganhar frete e gerando despesas elevadas com a paralisação cautelar. Assim, a opção escolhida é a de levar a efeito a viagem, mesmo correndo todos os riscos ao próprio navio, a integridade física da tripulação e aos bens confiados para transporte.

O resultado não poderia ser outro. O comandante do navio não consegue sair absolutamente incólume do enfrentamento com a storm e os bens, as cargas, são extraviados e/ou danificados, acarretando enormes prejuízos.

Num caso como o ora ilustrado, é comum o transportador marítimo alegar a fortuidade, baseando-se, tão-só, no protesto lavrado a bordo e judicialmente ratificado no primeiro porto brasileiro de atracagem, sendo este protesto alicerçado, provavelmente, na inteligência do comandante do navio de as forças da adversidade natural terem superado os níveis normalmente ocorridos neste tipo de evento, desprezada toda e qualquer consideração de natureza jurídica.

Não é preciso dizer que esse raciocínio é equivocado, na verdade sofistico, posto que o importante não é o fato de as forças da storm terem sido demasiadamente elevadas, mas sim o de serem absolutamente previsíveis e, mesmo, esperadas, descaracterizando a fortuidade.

Uma adversidade climática é sempre uma adversidade climática e a sua fúria pode variar em intensidade, razão pela qual, sabendo-se previamente da sua ocorrência, a ninguém é dado enfrentá-la sem o devido preparo. Quem o faz, assume, integralmente, todos os riscos, não podendo, posteriormente e mediante a constatação de infortúnio, alegar o benefício legal da fortuidade.

O caso ilustrado é bastante emblemático e serve para enfatizar a idéia de hoje ser muito difícil, talvez impossível, a caracterização de fortuidade, em face de todo o aparato tecnológico existente e que faz previsível, senão esperado, todas as eventuais ocorrências de adversidades climáticas. Com efeito, se o evento é, de qualquer forma esperado, ou previsível, ainda que irresistível, não há como subsistir a excludente de responsabilidade em estudo.

E mesmo que o evento não seja plenamente previsível, há que se imputar ao transportador, em princípio, o dever de arrostar a intensidade do sinistro. Para que um evento mereça a chancela da irresistibilidade, há que se ter, também, a imprevisibilidade.

A eficiência dos serviços de plotagem ao redor do globo terrestre, informando hora a hora os navios espalhados pelos mares do mundo, mediante boletins confiáveis, as condições climáticas, dificulta sobremodo a alegação de fortuidade, impedindo, na maior parte dos casos, a concessão do benefício legal da exclusão de responsabilidade.

Até porque, salvo em último caso, deve o transportador arcar com os prejuízos do transporte marítimo em razão de ser o principal beneficiário da atividade. Assim, quem tem o benefício, também tem que arcar com os ônus.

Naquilo que toca a conduta humana enquanto geradora da fortuidade, o aspecto mais problemático e bastante relevante, é o versa sobre o roubo de mercadorias a bordo do navio transportador.

O roubo de carga exonera ou não o transportador em termos de responsabilidade civil.

Pensamos que não. Em havendo roubo, o transportador deverá responder, perante quem de Direito, pelos prejuízos decorrentes.

Trata-se, todavia, de questão difícil e, certamente, longe de estar pacificada na doutrina e na jurisprudência brasileiras. Para melhor estudar a questão, faz-se necessário novo exercício de imaginação, também da nossa livre ilustração:

Um navio encontra-se atracado em um porto qualquer. Todas as medidas praxistas de segurança foram providenciadas. Um grupo de criminosos, os chamados "piratas modernos", consegue burlar os esquemas de segurança e toma de assalto o navio. Mediante grave ameaça e atos de violência rendem a tripulação e levam parte de um determinado e valioso lote de mercadorias.

Muitos entendem que o roubo, como fato caracterizador de fortuidade, afasta a responsabilidade do transportador marítimo pelo eventual inadimplemento contratual. Os que defendem esse posicionamento, fazem-no sedimentados no pressuposto de o transportador marítimo não se ter desviado das cautelas e precauções a que está obrigado, logo o roubo é acontecimento inevitável e, sendo também imprevisível, é fato irresistível, porquanto rodeado de elevada periculosidade a integridade física da vítima, no caso os prepostos do transportador marítimo.

Mais: para os partidários dessa posição não há falar-se em eventual previsibilidade da ocorrência do evento, pois o roubo é, por essência e natureza, um fato imprevisível e inesperado.

Trata-se de uma tese sedutora, é verdade, porém totalmente distanciada do dinamismo das relações sociais e das constantes mudanças do Direito, o que faz dela refém de seus próprios fundamentos.

Daí nosso entendimento inicial no sentido do roubo não configurar causa excludente de responsabilidade.

Há certos lugares, portos ou mares, nos quais a pirataria não é muito difícil de ocorrer. Diante de tal constatação, é coerente imaginar que um evento dessa envergadura poderá ocorrer a qualquer tempo, razão pela qual é correto falar em previsibilidade e, falando-se em previsibilidade, impossibilidade de caracterização de fortuidade.

Vamos mais além: ainda que o local onde se deu o roubo não seja, costumeiramente, palco de crimes, o contexto geral de violência e de criminalidade que imperam hoje no mundo são critérios suficientes para a caracterização do requisito previsibilidade. Afinal, todo aquele que se dispõe a transportar mercadorias, bens e valores deve estar preparado para as mais adversas situações, assumindo o risco em face da inequívoca previsibilidade delas ocorrerem. O roubo, após o furto, é, com toda a certeza, uma das principais ocorrências a que se tem previsibilidade em se tratando deste tipo de atividade comercial.

O roubo, definitivamente, não é um fato que implica força maior. Como exaustivamente mencionado, o contrato de transporte de mercadorias via marítimo, a exemplo de todo contrato de transporte, é um contrato de fim, vale dizer, que só se aperfeiçoa com o resultado, o pronto cumprimento da obrigação celebrada. Por tal razão e pelo que dispõe a legislação brasileira, sua responsabilidade é objetiva. Logo, discorrer acerca de ter ou não o transportador marítimo se desviado dos cuidados de praxe é subverter os princípios gerais da teoria objetiva e lançar-se ao sabor da teoria subjetiva, ou seja, a caracterização e a prova de culpa.

Demais, é interessante notar que os defensores da mencionada tese se esquecem do fato de ela, por via reflexa, espancar o conceito de fortuidade. Claro, uma vez que se faz necessário tomar providências e cuidados para se evitar o roubo, é correto entender que este é previsível, ou mesmo esperado, fatos inibidores da caracterização da excludente. Ora, não pode o roubo ser entendido como um fato caracterizador da força maior por lhe faltar requisitos imprescindíveis a sua existência, em especial: a imprevisibilidade e a inesperabilidade. Com efeito, todo aquele que se dispõe a transportar mercadorias e valores sabe que, a qualquer momento, pode vir a ser vítima de um roubo ou de um furto, daí a razão de ser dos referidos cuidados a que tanto se reporta a jurisprudência.

Nunca é demais lembrar, sob pena de ser repetitivo, que os elevados índices de criminalidade existentes hoje, em quase todo o mundo, e, em especial no Brasil, servem como indicadores seguros da previsibilidade de ocorrer o fato indesejável, porém fartamente existente no mundo dos fatos. Não é só: há lugares no Brasil, como o Porto de Santos, o maior e mais famoso de toda a América Latina, em que os atos de pirataria acontecem com lastimável freqüência, sendo, inclusive, alvos de amplo noticiário, transcendendo os limites da mera previsibilidade para adentrar naqueles pertinentes a esperabilidade.

É sabido que o contrato de transporte marítimo, a exemplo de todo e qualquer contrato de transporte, é uma obrigação de fim, também conhecida como de resultado, na qual uma parte obriga-se ao pagamento de um preço certo e determinado (frete) e a outra a entrega dos bens confiados para o transporte em idênticas condições as recebidas. Somente com o pronto e perfeito cumprimento destas obrigações há falar-se em aperfeiçoamento do negócio jurídico celebrado.

Sabido também é, que a responsabilidade civil a ditar o caso dos transportadores em geral, e o marítimo em especial, é a de natureza contratual, tendo sido abraçada a teoria objetiva imprópria para regrá-la em todos os seus aspectos.

E, como visto, também é sabido que o que se discute hoje no Direito brasileiro é a existência ou não, em um dado caso concreto, de suporte fático suficiente para caracterizar alguma das causas legais excludentes de responsabilidades, especialmente o caso fortuito e a força maior.

Diante de tal quadro, a impressão que se tem é a de o assunto estar sedimentado no plano jurídico, subsistindo, tão-só, questões a serem debatidas no campo dos fatos. Não é, contudo, o nosso entendimento.

Os fatos do mundo inspiram o Direito.

E, inspirando o Direito, os fatos, a cada dia, reclamam melhores soluções para os problemas que gravitam em torno deles. Com efeito, é a norma jurídica que deve se ajustar aos fatos e não o contrário. Logo, é coerente imaginar que se o mundo dos fatos altera-se com velocidade assustadora, no mesmo ritmo e inteligência deve comportar-se o mundo jurídico, composto pelos chamados sistemas de interação. Tais sistemas devem incorporar a essência dos fatos que pretendem regular. Daí, serem revestidos de lógica e legitimidade.

No dizer de Pontes de Miranda [13]: "Os sistemas jurídicos são sistemas lógicos, compostos de proposições que se referem a situações da vida, criadas pelos interesses mais diversos. Essas proposições, regras jurídicas, prevêem (ou vêem) que tais situações ocorrem, e incidem sobre elas, como se as marcassem. (...) Mediante essas regras, consegue o homem diminuir, de muito, o arbitrário da vida social, e a desordem dos interesses, o tumultuário dos movimentos humanos à cata do que deseja, ou do que lhe satisfaz algum apetite"

Extremamente precisa a lição do maior tratadista brasileiro de Direito Privado. O Direito existe para regular os fatos da vida, harmonizando o convívio social e distribuindo o Justo, aquele sentimento inerente a natureza humana e que pode ser comparado, em termos metafísicos, com o equilíbrio universal entre as forças da ordem e do caos. Não é só: as palavras do famoso tratadista enfatizam, e bem, a idéia de a regra jurídica ser parte da norma jurídica e esta, do contexto jurídico. A soma dos contextos jurídicos, levada a efeito dentro de uma razão lógica, faz surgir o sistema jurídico e o conjunto de sistemas, isto é, o próprio Direito.

Nessa correta linha de raciocínio, é ainda de Pontes de Miranda [14] o seguinte comentário: "As proposições jurídicas não são diferentes de outras proposições: empregam-se conceitos, para que se possa assegurar que, ocorrendo a, se terá a',. Seria impossível chegar-se até aí, sem que os conceitos jurídicos não correspondessem fatos da vida, ainda quando esses fatos da vida seja criados pelo pensamento humano. No fundo, a função social do direito é dar valores a interesses, a bens da vida, e regular-lhes a distribuição entre os homens. Sofre o influxo de outros processos sociais mais renovadores; de modo que desempenha, no campo da ação social, papel semelhante ao da ciência, no campo do pensamento. Esse ponto é da maior importância."

Mais uma vez, só elogios merece o renomado estudioso. É claro que a relação fatos da vida e regra jurídica é o postulado maior do Direito e a fonte de toda a produção legislativa. É claro, também, que os fatos da vida são infinitos e oriundos dos mais diferentes planos existenciais, razões estas que os fazem objetos de constantes e velozes transformações, quando não abruptas. E por serem tão mutáveis é que muito atento deve estar o Direito, para, sempre, estar devidamente apto a se manifestar no sentido de oferecer, ao caso concreto, a melhor e correta resposta.

Lastreado nesse entendimento e na importância de se observar a mutação do contexto fático e o influxo, no Direito, de outras áreas do saber humano, bem como visando acrescentar um pouco mais de celeuma à dogmática da responsabilidade civil dos transportadores, homenageando, para tanto, institutos afetos a responsabilidade civil do Estado, é o entendimento que, nos dias atuais, a teoria objetiva imprópria, já não é mais a adequada para regrar a responsabilidade civil dos transportadores, em caso de não adimplemento contratual, posto insuficiente para ditar os acontecimentos e circunstâncias observados no mundo dos fatos.

É verdade, afinal ninguém pode negar aquilo que facilmente se observa e amplamente se constata no plano da realidade. As relações comerciais, hoje globalizadas, alcançaram um rápido desenvolvimento, sedimentando-se em um estágio antes inimaginável, no qual o número de transações havidas por dia é assustadoramente volumoso e os valores envolvidos, elevadíssimos.

Não é exagero dizer que noventa por cento, senão mais, do transporte internacional de bens e mercadorias é feito por via marítima. Todos os dias, de todos os importantes portos do mundo, centenas de navios zarpam ou atracam, levando ou trazendo as mais diferentes mercadorias, no maior intercâmbio comercial da história da humanidade, intercâmbio este, a propósito, que teve o seu início com os antigos Fenícios e Cretenses, séculos antes de o advento da era Cristã.

É a realidade fático-social conclamando o Direito.

Tão relevante quadro, aliado a tudo aquilo que já foi mencionado a respeito da elevada tecnologia com a qual os navios são construídos e os aparatos eletrônicos e computadorizados que auxiliam nos trabalhos de navegação e investigação climática, são indicadores excelentes para, no diapazão da evolução do próprio Direito, autorizarem um entendimento diverso e mais rigoroso acerca dos institutos, preceitos e comandos que operam o tema responsabilidade civil do transportador.

Com efeito, é razoável imaginar que a correta teoria a ser empregada para o tema destacado é a contratual sedimentada na responsabilidade civil objetiva própria. Tal teoria, também conhecida por responsabilidade civil objetiva pura, é aquela em que a presunção legal de culpa do devedor de uma dada obrigação inadimplida é tão poderosa que nada, absolutamente nada, tem a qualidade de afastá-la, nem mesmo o caso fortuito e a força maior.

Bom repetir: tratando-se de responsabilidade civil objetiva própria, contratual ou extracontratual, mas especialmente a contratual, nada poderá exonerar ou atenuar a culpa daquele que a tem contra si. Não há falar-se na incidência das chamadas excludentes legais de responsabilidade, nem mesmo culpa exclusiva de terceiro, embora neste segundo ponto haja certa divergência entre os estudiosos do assunto (há quem entenda que a culpa exclusiva da vítima, do prejudicado, tem a propriedade de afastar a referida presunção legal de culpa).

A responsabilidade civil contratual objetiva pura funda-se na idéia de que nada poderá elidir a presunção legal de culpa de um devedor de uma dada obrigação jurídica. Fácil observar que se trata de um instituto muito rigoroso e que tem o seu provável nascedouro com o desenvolvimento, no âmbito do Direito Administrativo, das teorias disciplinadoras da responsabilidade civil do Estado.

No remoto passado, a bem da verdade, a responsabilidade civil era a de natureza objetiva e, quase sempre, própria, ou seja, despida de causas excludentes. A fundamentação para a sua vigência, entretanto, não era satisfatória eis que eivada de vingança e não de Justiça. Ao invés de ser o fruto de uma formação jurídico-política visando solucionar, com eqüidade, os casos que a reclamavam, a teoria objetiva do passado, de caráter próprio ou puro, nada mais era do que a retaliação imediata, e não raro desmedida, a um dano causado.

Nesse sentido, Carlos Roberto Gonçalves [15], comparando o espírito da responsabilidade civil objetiva dos tempos antigos com a dos dias atuais, leciona: "Primitivamente, a responsabilidade era objetiva, como acentuam os autores, referindo-se aos primeiros tempos do direito romano, mas sem que por isso se fundasse no risco, tal como o concebemos hoje. Mais tarde, e representando essa mudança uma verdadeira evolução ou progresso, abandonou-se a idéia de vingança e passou-se à pesquisa da culpa do autor do dano. Atualmente, volta ela ao objetivismo. Não por abraçar, de novo, a idéia de vingança, mas por se entender que a culpa é insuficiente para regular todos os casos de responsabilidade".

Hoje, já não mais subsiste o espírito de vingança na adoção da teoria objetiva, seja a própria ou a imprópria. Pelo contrário, o que a justifica e ampara é, justamente, um espírito diverso, qual seja: o de Justiça.

O desenvolvimento das relações sociais, dos fatos da vida, com especial destaque aos fatos de natureza contratual, exigiu dos Operadores do Direito e, consequentemente, dos legisladores, instrumentos mais hábeis e capazes de corretamente regular os eventos revestidos de interesse ao mundo jurídico, daí a razão de ser da responsabilidade civil objetiva.

A idéia de culpa já não era bastante para resolver todas as questões levadas ao Estado-juiz em todo o mundo. Outra idéia, a da responsabilidade objetiva, portanto, foi criada justamente para preencher o vácuo até então existente e que não promovia outra coisa senão a injustiça e o trato imperfeito nas coisas afetas ao Direito.

Com efeito, há importante precedente na matéria. Trata-se do caso da responsabilidade civil do Estado. Nos tempos passados, a idéia que predominava era a de o Estado, diretamente ou através dos seus prepostos (funcionários públicos e/ou agentes políticos), jamais ser o autor de uma conduta danosa. O extremo da dita idéia era conhecido pela expressão universal "The King do not wrong". Pois bem, com o passar dos anos e com o avanço social-tecnológico da humanidade, foi-se consagrando, nos vários ordenamentos jurídicos espalhados pelo mundo, a tese de o Estado ser perfeitamente caracterizado como o agente de uma conduta lesiva, razão pela qual se passou a adotar a teoria objetiva imprópria. Não obstante, o sucesso e o acerto da referida mudança de mentalidade, a justiça não conseguia se materializar com a frequência necessária, e os entraves jurídicos decorrentes acabaram por se transformar em odiosos mecanismos de ofensa a dignidade do particular frente ao Estado. Mais uma vez, portanto, o mundo dos fatos reclamou do mundo do direito uma solução mais eficaz; e, esta, veio com a adoção da teoria objetiva própria.

Não é nosso objetivo, no momento, o estudo específico da responsabilidade civil do Estado, infinitamente mais complexa do que a do transportador marítimo, até mesmo porque inserida num contexto mais importante e expressivo, qual seja: o do Direito Público, especificamente o Administrativo. Não, ao contrário, nossa intenção é facilitar a inteligência e compreensão do tema em estudo demonstrando, como dito, significativo precedente, capaz de ilustrar a hipótese de se alterar o Direito em razão das exigências do mundo, o famoso binômio "dever-ser/ser". Alteração esta que, no presente caso, significa abolir do sistema jurídico brasileiro as causas excludentes de responsabilidade adotando-se, para os contratos de depósito e de transporte (em especial os de transporte marítimo) a teoria objetiva própria.

Ora, esse mesmo quadro evolutivo deve ser aplicado, feitas as necessárias ressalvas e imprescindíveis adaptações, aos transportadores em geral, especialmente aos marítimos, seja através de regulamentação legislativa específica, seja através da incidência dos princípios gerais do Direito na produção jurisprudencial.

Como já exaustivamente visto, o elevado desenvolvimento da tecnologia reduziu significativamente a probabilidade da existência da fortuidade. Mais, não só reduziu como praticamente eliminou a dita possibilidade. Se, por um lado, não se pode prever a fúria e a intensidade de um fenômeno adverso da natureza, por outro, é perfeitamente possível saber que o mesmo fenômeno irá manifestar-se em um dado momento, num dado local, razão pela qual, sendo esperado, e previsível a possibilidade de ele ser violento, não há que se falar em caso fortuito. Na mesma linha de raciocínio, roubos e furtos são fatos perfeitamente previsíveis, sobretudo em um mundo tão violento e socialmente injusto como o contemporâneo (donde se destaca, infelizmente, o caso do Brasil), não existindo motivo algum a amparar a falta de proteção de um caso concreto.

Isso tudo, não se pode esquecer, vem a reboque do fato de os navios serem construídos de tal forma que a irresistibilidade aos eventos fortuitos é nula, tornando coisa do passado, há muito sepulto, o chamado espírito de aventura que caracterizava as expedições marítimas.

Mas, e nesse aspecto justifica-se a defesa ora empregada, mesmo que em uma certa hipótese os requisitos da imprevisibilidade, inesperabilidade e irresistibilidade estejam presentes, o transportador marítimo, a exemplo de o depositário, deve responder pela perdas ocorridas, pois a ninguém colhido pelo infortúnio é dado estender a sua infelicidade a outrem, sobretudo quando este outrem havia lhe pago para o perfeito cumprimento de uma obrigação.

Se o transportador marítimo foi vítima de um violentíssimo furacão, totalmente inesperado, sequer passível de previsibilidade, ou se, atracado em um porto qualquer, foi vítima de uma abrupta comoção social, é problema exclusivamente dele e de mais ninguém, sobretudo em relação aos proprietários das cargas nele estivadas. É por isso que se diz, com muita propriedade, que a obrigação do transportador é a de risco.

Uma vez que recebeu o frete, vale dizer o pagamento para o cumprimento da obrigação de transportar, e iniciada a sua obrigação contratual, o transportador marítimo imanta o conceito do risco. O risco, bom frisar, é intrínseco aos seus exercícios regulares e justamente por isso que ele, o transportador, cobra um frete tão elevado. Não é razoável, portanto, que ele venha a se valer, às avessas, desse mesmo risco para, fundado em alguma causa legal excludente de responsabilidade, eventualmente exonerar-se da obrigação de reparar o dano que, por nexo de causalidade, lhe é imputado a título de responsabilidade civil, caracterizada pelo inadimplemento contratual.

Nunca é demais repetir: as obrigações do transportador marítimo, a exemplo das do depositário, são as de guardar, conservar e restituir. Deixando de cumprir uma delas, existe a sua responsabilidade pelo inadimplemento contratual e por tal responsabilidade ele deve necessariamente responder, independentemente da causa fenomênica que motivou a inadimplência.

É antiga a idéia de excludentes legais de responsabilidade civil, basta dizer que estão consignadas no vetusto Código Comercial (datado da época do Brasil-Império), e não mais corresponde a realidade e às necessidades vivenciadas no contemporâneo mundo dos fatos. Deve ser urgentemente afastada, em prol de uma nova disciplina legal capaz de atender os reclamos atuais.

De fato, no século passado e até as três primeiras décadas deste século, havia algum sentido falar-se em fortuidade, ou seja: matéria de defesa e de exclusão de responsabilidade do transportador marítimo. Hoje, pleno Século XXI é um despropósito enorme e sem qualquer fundamentação fática. Há, contudo, suporte jurídico e é este suporte que se pretende ora contrariar.

A única excludente legal de responsabilidade que se pode admitir, quando muito, é a do vício de origem, uma vez que este, dentro da sumária digressão histórica feita a respeito da evolução da responsabilidade civil do Estado, é equiparado com a culpa exclusiva da vítima. Claro, se o próprio interessado, dono das mercadorias e dos bens, entregou-os com defeitos, eivados em vícios, não há que se falar na eventual responsabilização do transportador, posto que a culpa é exclusiva da pseudo-vítima. Observa-se, porém, que a caracterização do vício de origem, equiparado com a culpa exclusiva da vítima, é ato de natureza subjetiva, o que significa a exigência de prova e, como se sabe, prova, nesta disciplina, implica inversão do seu ônus.

E é verdade inafastável; afinal causas limitativas ou restritivas de responsabilidade sempre foram motivo de acirradas e apaixonantes discussões no cenário jurídico internacional e, em especial, o do Brasil. Não é de hoje que essas cláusulas, também conhecidas como cláusulas impressas são objeto da especial atenção dos Operadores do Direito brasileiro.

Não raro, elas aparecem nos chamados contratos de adesão, nos quais uma das partes dita as regras e a outra, em face de as exigências e as necessidades circunstâncias, simplesmente adere, ou melhor, é forçado a aderir.. É o caso dos contratos de transporte em geral e com especial destaque o do marítimo.

Logo, é perfeitamente sustentável (não apenas do ponto de vista da dogmática ou do entendimento doutrinário, mas, sim, do ponto de vista jurídico, ou seja, da fundamentação normativa) a idéia de os transportadores marítimos responderem objetivamente e da forma mais pura e absoluta possível sobre todo e qualquer acidente ou incidente que decretar danos nas mercadorias confiadas para o transporte.

O próprio direito positivo, na sua visão mais estreita, que é a da aplicação rigorosa da lei, fornece, através da analogia, elementos suficientes e bastantes para a incidência do mencionado entendimento para o caso dos transportadores marítimos e mesmo os rodoviários.

Importante será a manifestação dos melhores doutrinadores e estudiosos brasileiros a respeito do tema nos próximos anos e igualmente importante será a Jurisprudência orientando-se gradativa e majoritariamente nesse sentido, de tal sorte que, num futuro não muito distante, os legisladores brasileiros venham a se sentir suficientemente inspirados a elaborarem dispositivos legais capazes de melhor regrar os acontecimentos do mundo dos transportes, especialmente os marítimos, e, assim, aproximarem-se mais da realidade, perfazendo o verdadeiro ideal do direito que, em última análise, é a eterna busca pelo justo.


Notas

  1. Tratado de responsabilidade civil. 6ª ed. São Paulo: RT, 2004, p. 118
  2. Idem, ibidem
  3. NA: em Direito Marítimo, costuma-se usar a expressão carga. Mercadoria é outra bem utilizada. O Código Civil prefere a palavra "coisa", ao passo que alguns estudiosos consideram mais correta a palavra ‘bem". Como sabido, coisa é tudo o que existe no mundo, salvo o ser-humano. Bem, a coisa com valor econômico agregado. Mercadoria, o bem objeto de uma transação comercial e, por fim, carga, qualquer uma dessas expressões com um "plus" especializante: o embarque a bordo de um meio de transporte. Logo, carga é a coisa ou bem (mercadoria), confiando ao transportador e sob sua custódia para o transporte. Enfim, o objeto transportado.
  4. Responsabilidade civil. 4ª ed. Saraiva: São Paulo, 1998, p. 111
  5. Da inexecução das obrigações e suas conseqüências, São Paulo: Saraiva, 1955, p. 341
  6. NA: conclusão inspirada em "LYON CAEN ET RENAULT", Traité de Droit Commercial, III, 593, SABRUT, Transport des merchandises, p. 653 e seguintes.
  7. Guia Marítimo, 1ª quinzena de abril/97, ano 06, nº 117, São Paulo: 1997
  8. Revista do IRB, Aspectos Jurídicos: o que interessa ao seguro, 44, (232), Set/Dez, 1983, Rio de Janeiro, p. 20
  9. NA: muitos comentaristas preferem a palavra inevitabilidade ao invés de inesperabilidade.
  10. Estudos do Mar Brasileiro - A Lei do Mar, Renes, Rio de Janeiro: 1972, p. 152
  11. op. cit., p. 21
  12. NA: e ao se falar em adversidades, fala-se nas mais graves e violentas condições possíveis, sendo poucos os fenômenos desconhecidos ou verdadeiramente imprevisíveis e inesperados. O homem está longe de dominar os mares. A luta constante dos holandeses e seus diques contra as forças do Mar do Norte é prova cabal da impossibilidade de domínio pleno; mas, da mesma forma, o homem contemporâneo não é mais o aventureiro dos tempos das Grandes Navegações, haja vista o conhecimento, a tecnologia, os equipamentos e as medidas de segurança empregados na arte da navegação marítima.
  13. Tratado de Direito Privado, Parte Geral, v. 1. Borsoi, Rio de Janeiro: 1970, p. IX
  14. Idem, ibidem
  15. Responsabilidade Civil, Saraiva, 6ª ed., São Paulo: 1995, p. 18/19
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Sobre o autor
Paulo Henrique Cremoneze

Sócio fundador de Machado, Cremoneze, Lima e Gotas – Advogados Associados, mestre em Direito Internacional pela Universidade Católica de Santos, especialista em Direito do Seguro e em Contratos e Danos pela Universidade de Salamanca (Espanha), acadêmico da ANSP – Academia Nacional de Seguros e Previdência, autor de livros jurídicos, membro efetivo do IASP – Instituto dos Advogados de São Paulo e da AIDA – Associação Internacional de Direito do Seguro, diretor jurídico do CIST – Clube Internacional de Seguro de Transporte, membro da “Ius Civile Salmanticense” (Espanha e América Latina), associado (conselheiro) da Sociedade Visconde de São Leopoldo (entidade mantenedora da Universidade Católica de Santos), patrono do Tribunal Eclesiástico da Diocese de Santos, laureado pela OAB Santos pelo exercício ético e exemplar da advocacia, professor convidado da ENS – Escola Nacional de Seguros e colunista do Caderno Porto & Mar do Jornal A Tribuna (de Santos).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CREMONEZE, Paulo Henrique. A responsabilidade civil do transportador marítimo de cargas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2788, 18 fev. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18524. Acesso em: 11 mai. 2024.

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