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A aplicação da sanção administrativa disciplinar.

Relação entre a vinculação deôntica, a razoabilidade e a proporcionalidade das medidas punitivas

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02/04/2011 às 08:20
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3.A posição favorável da jurisprudência, em especial do Superior Tribunal De Justiça, para a comutação da sanção disciplinar, com fundamento no princípio da razoabilidade e da proporcionalidade

Em que pese a ocorrência esporádica de decisões que limitem a comutação de sanções disciplinares, o Superior Tribunal de Justiça tem-se posicionado mais de uma vez no sentido de que "em face dos princípios da proporcionalidade, dignidade da pessoa humana e culpabilidade, típicos do regime jurídico disciplinar, não há juízo de discricionariedade no ato administrativo que impõe sanção a Servidor Público, razão pela qual o controle jurisdicional é amplo, de modo a conferir garantia aos servidores públicos contra eventual arbítrio, não se limitando, portanto, somente aos aspectos formais". Com isso a jurisprudência dessa Corte assinala favoravelmente à transmutação da sanção disciplinar, com fundamento nos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade [10] que normatizam os contornos do ato de decisão e de dosagem da sanção disciplinar pela autoridade julgadora. A Corte entende possíveis as comutações entre as sanções previstas no ordenamento jurídico afeto ao tema [11]/ [12], possibilitando, se de forma fundamentada e após a identificação de causas agravantes ou atenuantes, ou mesmo de aumento ou diminuição, a aplicação das sanções de advertência a casos de suspensão ou demissão, ou de demissão aos casos previstos como de suspensão ou mesmo advertência, facultando, malgrado entendermos inconstitucional tal procedimento, qualquer tipo de comutação.

Esses apontamentos favoráveis à comutação também se depreendem do teor do Informativo de Jurisprudência n.º 423 – STJ, onde a Terceira Turma inclina-se no sentido da necessidade de razoabilidade e proporcionalidade na aplicação da sanção, nos seguintes termos "servidores do Judiciário, conforme apurado em processo administrativo disciplinar (PAD), com objetivo de obterem o anonimato, teriam ludibriado partes para que assinassem documento de cujo teor e finalidade não tinham conhecimento: assinaram representações contra a juíza, o escrivão e dois escreventes da comarca, acusando-os de cometer injustiças, maltratar usuários do serviço forense, contribuir para a morosidade e praticar corrupção. Segundo o Min. Relator, apurados os ilícitos de indisciplina, eles merecem reprovação na medida em que demonstrado o intuito dos ora recorrentes de, no mínimo, submeter os representados a constrangimento, por figurarem em processo instaurado em corregedoria-geral de Justiça estadual. Também aponta que, não obstante sua indiscutível gravidade, o ato não teve maiores consequências nem para os representados nem para a própria Administração, uma vez que logo foi constatada a impropriedade das imputações. Assim, conclui que a aplicação da pena máxima de demissão, imposta com base nos arts. 273, I e IV, 274, V, e 285, III, da LC estadual n. 59/2001, deu-se mediante inobservância dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, impondo-se que a Administração aplique sanção disciplinar mais branda. Diante do exposto, a Turma deu parcial provimento ao RMS, concedendo em parte a segurança para anular a demissão dos recorrentes e determinar a reintegração aos cargos que ocupavam, ressalvada à Administração eventual aplicação de pena menos gravosa em decorrência das infrações disciplinares já apuradas, se for o caso. Precedentes citados: MS 12.369-DF, DJ 10/9/2007, e MS 8.401-DF, DJe 17/5/2009. RMS 29.290-MG, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, julgado em 18/2/2010".

A doutrina expressiva, em posição intermediária à adotada pela jurisprudência e defendendo a comutação parcial, a depender da gravidade da sanção a ser aplicada, considera comutáveis as sanções de natureza leves ou médias. Nesta esteia são os ensinamentos de Marcello Caetano, ao alinhavar que "ao contrário do que sucede no direito criminal, na lei disciplinar não se estabelece a correspondência rígida de certas sanções para cada tipo de infração, deixando-se a quem haja de decidir amplo poder discricionário para punir as infrações verificadas. Esta regra tem exceções para certas infrações e sobretudo quanto à aplicação das sanções mais graves – como a demissão" [13]. Entende ainda o autor que o princípio da legalidade é plenamente atendido com a simples enumeração do rol taxativo de sanções passíveis de aplicação (taxatividade das sanções disciplinares), facultando-se-lhe à autoridade competente escolher, a partir dessa premissa, a sanção adequada ao caso concreto, considerando as causas agravantes e as atenuantes, "consoante a gravidade das infrações e o interesse dos serviços impuser, a pena aplicável procurará melhorar o agente que se conserva ao serviço, ou expulsá-lo dele por inconveniente, pernicioso ou incorrigível" [14].

Deste modo, sem embargo da plena aceitação da comutação das sanções para a jurisprudência, para a doutrina dominante, a nosso ver arraigada em razões de política administrativa da disciplina interna do serviço público, é possível a comutação de sanções para os ilícitos de leve ou de média gravidade, estando impossibilitada, entretanto, para os ilícitos graves.


4.Conclusão: a impossibilidade de utilização dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade para comutação de sanções disciplinares

Em que pese os argumentos da doutrina e da jurisprudência, com base nos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, para a realização da comutação de sanções disciplinares, estes institutos não se prestam a sustentar tal mister.

Os argumentos da razoabilidade e da proporcionalidade não podem suplantar os ditames legais, para, em substituição ao legislador, dizer a sanção a ser aplicada ao caso concreto, sem que haja previsão legal nesse sentido.

Não estão autorizados a dizer que uma lei não é razoável ou proporcional e, com efeito, aplicar outra em analogia. Ao julgador cabe sim dizer se a lei ou o ato normativo são constitucionais e, com isso, declarar em concreto ou em abstrato, a sua não compatibilidade vertical com o Texto Constitucional. Cabe também declarar a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade de determinada interpretação (interpretação conforme a Constituição), mas dizer que a norma válida não é razoável, sem declará-la inconstitucional, isso não é possível.

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A razoabilidade e a proporcionalidade são incidentes em ambientes normativos que comportem dosagem de efeitos jurídicos, os quais ficam a cargo de determinado intérprete e aplicador do Direito e, em cima disso, cabe, para o poder judiciário, dizer se tal medida adotada foi ou não razoável, foi ou não proporcional. Mas dizer que o fato de a Administração ter seguido a lei, em observância a deontologia jurídica que implica, na aplicação da sanção, o tipo à penalidade, foi desproporcional, desarrazoado, é, sem dúvida, ofensa em concreto à própria lei que regula a forma de sanção disciplinar.

Com efeito, se a lei previu que para determinada conduta é passível, por exemplo, somente a demissão, não pode o poder judiciário contrariar a lei, sem declará-la inconstitucional, para dizer que para essa mesma conduta, no caso concreto, sob a análise subjetiva de cada caso e sob a luz da razoabilidade e da proporcionalidade, não cabe a demissão, mas sim outra sanção disciplinar.

Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade não podem, sem a declaração de inconstitucionalidade, irem de encontro ao disposto em lei, quando esta seja válida e eficaz.

No nosso entender, a comutação de sanções disciplinares, com base nos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade é levada a efeito concretamente e aparadas por doutrina e jurisprudência, por medida de política administrativa disciplinar que, porém, não encontra amparo na deontologia jurídica.

Assim, em que pese os doutos posicionamentos de juristas de escol e de relevante jurisprudência da Corte de Legalidade, mas pelos argumentos já esposados, pautamo-nos pela impossibilidade de comutação de sanções disciplinares sem a previsão específica no estatuto disciplinar ou em legislação especial aplicável. Quanto à dosimetria, deve a dosagem incidir somente sobre os limites das sanções que possibilitem, pela própria natureza jurídica, ampliar ou reduzir o seu quantum sem, contudo, modificar a essência da medida sancionatória.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Caetano, Marcello. Princípiosfundamentais de direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense.

Engisch, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1972.

Informativo de Jurisprudência n.º 423 – STJ.

Kelsen, Hans. Teoria pura do direito. Tradução João Batista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

Menegale, J. Guimarães. O Estatuto dos funcionários. Vol. II. 1. Ed. São Paulo: Forense, 1962.

Moussallem, Tárek Moysés. Fontes do direito tributário. São Paulo: Max Limonad, 2001.

Santi, Eurico Marcos Diniz. Lançamento Tributário. São Paulo: Max Limonad, 1996.

Vilanova, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo. 2. ed. São Paulo: Max Limonad, 1997.


Notas

  1. Atento à vinculação da dosimetria com o princípio da legalidade, J. Guimarães Menegale, op. cit. p. 586, ensina que a norma que determina a dosagem da sanção disciplinar faz parte do preceito secundário da norma proibitiva, em uma espécie de duplo preceito secundário ou "momentos" de aplicação da sanção, onde o primeiro momento seria a ameaça de sanção e o segundo momento a individualização da ameaça, com a dosimetria da repressão estatal.
  2. Santi, Eurico Marcos Diniz. Lançamento Tributário. São Paulo: Max Limonad, 1996, p. 31-32.
  3. Engisch, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1972, p. 46.
  4. Como bem assevera o Prof. Tárek Moysés Moussallem, op. cit., p. 28: "O estudo do conhecimento é a principal tarefa do ramo da Filosofia chamado Epistemologia (do grego, episteme, conhecimento) ou Teoria do Conhecimento."
  5. Kelsen, Hans. Teoria pura do direito. Tradução João Batista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 05 e 87.
  6. Vilanova, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo. 2. ed. São Paulo: Max Limonad, 1997.
  7. Mister observar que essa pureza metodológica só pode ser assegurada no plano do dever-ser.
  8. Santi, Eurico Marcos Diniz. Lançamento Tributário. São Paulo: Max Limonad, 1996, p. 34-35.
  9. Menegale, J. Guimarães. O estatuto dos funcionários. Vol. II. São Paulo: Forense, 1962, ppj. 596/597.
  10. No mesmo sentido, com fundamento na razoabilidade e na proporcionalidade, o tribunal Regional Federal da 4.ª Região assim prescreveu: "ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO FISCAL. DEMISSÃO. PROPORCIONALIDADE. 1. A autoridade competente, na aplicação da penalidade, em respeito ao princípio da proporcionalidade (devida correlação na qualidade e quantidade da sanção, com a grandeza da falta e o grau de responsabilidade do servidor), observar as normas contidas no ordenamento jurídico próprio, verificando a natureza da infração, os danos para o serviço público, as circunstâncias atenuantes ou agravantes e os antecedentes funcionais do servidor. Inteligência do art.128, da Lei n° 8.112/90. 2. Ademais, por se tratar de demissão, pena capital aplicada a um servidor público, a afronta ao princípio supracitado constitui desvio de finalidade por parte da Administração, tornando a sanção aplicada ilegal, sujeita a revisão pelo Poder Judiciário.3.Deve a dosagem da pena, também, atender ao princípio da individualização inserto na Constituição Federal de 1988 (art. 5o, XLVI), traduzindo-se na adequação da punição disciplinar à falta cometida. 4. Apelação provida para declarar a nulidade da sanção disciplinar e determinar a reintegração dos servidores aos respectivos cargos".
  11. Assim, infere-se do julgado da Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça que, não obstante conflitante com a decisão proferida no Recurso em Mandado de Segurança Nº 18.391 - PE (2004/0077509-0), onde assevera: "DIREITO ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. SERVIDOR PÚBLICO. PENAS DE SUSPENSÃO E DEMISSÃO. BIS IN IDEM E REFORMATIO IN PEJUS. OCORRÊNCIA. VEDAÇÃO. SÚMULA 19/STF. PARECERES GQ-177 E GQ-183, DA ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO. ILEGALIDADE. SEGURANÇA CONCEDIDA. AGRAVO REGIMENTAL PREJUDICADO. 1. O simples rejulgamento do processo administrativo disciplinar ofende o devido processo legal, por não encontrar respaldo na Lei 8.112/90, que prevê sua revisão tão-somente quando houver possibilidade de abrandamento da sanção disciplinar aplicada ao servidor público. 2. O processo disciplinar se encerra mediante o julgamento do feito pela autoridade competente. A essa decisão administrativa, à semelhança do que ocorre no âmbito jurisdicional, deve ser atribuída a nota fundamental de definitividade. O servidor público punido não pode remanescer sujeito a rejulgamento do feito para fins de agravamento da sanção, com a finalidade de seguir orientação normativa, quando sequer se apontam vícios no processo administrativo disciplinar. 3. "É inadmissível segunda punição de servidor público, baseada no mesmo processo em que se fundou a primeira" (Súmula 19/STF). 4. São ilegais os Pareceres GQ-177 e GQ-183, da Advocacia-Geral da União, segundo os quais, caracterizada uma das infrações disciplinares previstas no art. 132 da Lei 8.112/90, se torna compulsória a aplicação da pena de demissão, porquanto contrariam o disposto no art. 128 da Lei 8.112/90, que reflete, no plano legal, os princípios da individualização da pena, da proporcionalidade e da razoabilidade. 5. O ideal de justiça não constitui anseio exclusivo da atividade jurisdicional. Deve ser perseguido também pela Administração, principalmente quando procede a julgamento de seus servidores, no exercício do poder disciplinar. 6. Segurança concedida. Agravo regimental prejudicado".
  12. Com efeito, mantendo o precedente, decidiu a Terceira Seção do STJ, no Mandado de Segurança n.º 2008/0167030-9: "MANDADO DE SEGURANÇA. SERVIDOR PÚBLICO CIVIL. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. VEÍCULO LOCADO. UTILIZAÇÃO. PERCURSO CASA/TRABALHO. PENALIDADE. DEMISSÃO. DESPROPORCIONALIDADE. SEGURANÇA CONCEDIDA. I - Inexiste aspecto discricionário (juízo de conveniência e oportunidade) no ato administrativo que impõe sanção disciplinar. Nesses casos, o controle jurisdicional é amplo e não se limita a aspectos formais (Precedentes: MS nº 12.957/DF, 3ª Seção, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJe de 26/9/2008; MS nº 12.983/DF, 3ª Seção, da minha relatoria, DJ de 15/2/2008). II - Esta c. Corte pacificou entendimento segundo o qual, mesmo quando se tratar de imposição da penalidade de demissão, devem ser observados pela Administração Pública os princípios da razoabilidade e proporcionalidade, individualização da pena, bem como o disposto no art. 128 da Lei n.º 8.112/90 (Precedentes: MS nº 8.693 / DF, 3ª Seção, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, DJe de 8/5/2008; MS nº 7.260 / DF, 3ª Seção, Rel. Min. Jorge Scartezzini, DJ de 26/8/2002 e MS nº 7.077 / DF, 3ª Seção, Rel. Min. Edson Vidigal, DJ de 11/6/2001). III - In casu, revela-se desproporcional e inadequada a penalidade de demissão do cargo de técnico do seguro social imposta à impetrante, por ter se utilizado de veículo contratado pela agência Rio de Janeiro/Sul do INSS, para efetuar deslocamentos no percurso residência/trabalho e vice-versa, enquanto no exercício do cargo de gerente executiva daquele posto de atendimento, tendo em vista seus bons antecedentes funcionais, a ausência de prejuízo ao erário, bem como a sua comprovada boa-fé. Segurança concedida, sem prejuízo da imposição de outra penalidade administrativa, menos gravosa. Prejudicado o exame do agravo regimental da União".
  13. Caetano, Marcello. Princípios fundamentais de direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense, p. 403.
  14. Op. cit. p. 403.
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Sobre o autor
Sandro Lúcio Dezan

Mestre em Direitos e Garantias Constitucionais Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória – FDV. Delegado de Polícia Federal, Coordenador da Escola Superior de Polícia do Departamento de Polícia Federal. Professor Universitário.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DEZAN, Sandro Lúcio. A aplicação da sanção administrativa disciplinar.: Relação entre a vinculação deôntica, a razoabilidade e a proporcionalidade das medidas punitivas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2831, 2 abr. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18822. Acesso em: 6 mai. 2024.

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