Resumo
Trata-se de artigo científico que pretende abordar a compreensão da prisão preventiva decretada para assegurar a execução de medida protetiva de urgência nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher. A partir de uma revisão das caracteríticas e hipóteses ensejadoras da prisão preventiva para garantia da ordem pública, pretende-se sustentar uma interpretação conjugada do inciso IV do artigo 313 do Código de Processo Penal, para compreendê-lo a partir da necessidade de interpretação conjunta com as razões ensejadoras da prisão preventiva. Para tanto, buscam-se vetores interpretativos para os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher nas convenções internacionais de que o Brasil é signatário, na Constituição e na Lei 11.340 de 2006, esta última conhecida como Lei Maria da Penha.
Palavras-chaves: Violência doméstica e familiar contra a mulher – Direito penal – Direito processual penal – Prisão cautelar – Prisão preventiva – Garantia da ordem pública – Medida protetiva de urgência.
Introdução
A Lei 11.340, de 7 de agosto de 2006, veio à lume para criar "mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher" (trecho da ementa do diploma legal). Dentre diversas inovações, a Lei 11.340, usualmente identificada como Lei Maria da Penha, acrescentou uma hipótese legal de cabimento da prisão preventiva, de sorte a modificar o texto do Código de Processo Penal. Cuida-se da inserção do inciso IV ao artigo 313 do Código de Processo Penal, para que, nos casos em que o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, presente hipótese de incidência do regime legal disposto na Lei Maria da Penha, se admita a prisão preventiva "para garantir a execução das medidas protetivas de urgência".
O presente artigo, sem qualquer pretensão de esgotamento do tema, pretende delinear a compreensão do referido dispositivo à luz dos pressupostos e circunstâncias autorizadoras da medida extrema que é a prisão preventiva. Para tanto, buscar-se-á uma compreensão à luz da doutrina e principalmente da jurisprudência consolidada no Supremo Tribunal Federal, dirigida ao atendimento dos mandamentos de política criminal insculpidos na própria Lei Maria da Penha, dos casos em que a prisão preventiva deva ser utilizada como meio de assegurar a execução das chamadas medidas protetivas.
Será, portanto, necessário abordar brevemente os escopos da Lei Maria da Penha, de sorte a permitir a visualização das opções lançadas pelo legislador para o tratamento da violência doméstica e familiar contra a mulher. Seguidamente, abordaremos a prisão preventiva, como espécie de prisão processual, e seus pressupostos autorizadores. Daí, alcançaremos uma proposta de leitura do dispositivo legal à luz da Constituição, observando-se para tanto os nortes lançados sobre o tema pelo próprio Supremo Tribunal Federal, de modo a compatibilizá-la (a prisão) não apenas com a Constituição, mas igualmente com os compromissos assumidos pelo Brasil no plano internacional de coibir esse tipo de violência e criminalidade contra a mulher.
1. A Lei Maria da Penha: as obrigações assumidas pelo Estado brasileiro
A primeira atitude necessária para a efetivação de um compromisso com os direitos humanos é a assunção de uma postura que permita a realização de uma função epistêmica de todo conhecimento. É dizer, faz-se necessário, antes de qualquer recorte temático a respeito de um objeto a ser enfrentado juridicamente, tornar visível o contexto ensejador de eventual mudança ou discussão. Em síntese, a partir da compreensão inescondível de que todo conhecimento cumpre uma função social (ora hegemônica, ora emancipatória), faz-se necessário que assumamos uma tarefa de tornar visível o contexto, a realidade a que nos referimos. É dizer: é preciso que construamos abordagens e teorias mundanamente vinculados aos nossos próprios contextos.
O risco de não atendimento a esse reclamo de contextualização é evidente: incorreremos no erro de separar as condições de produção do conhecimento do contexto que as ensejou; não visualizaremos as consequências reais do conhecimento a ser produzido e, o pior, deixaremos de lado a função social que todo conhecimento exerce. A advertência, que é de Joaquín Herrera Flores (2009, p. 105-106), faz-se aqui igualmente necessária, sob pena de pensarmos nosso objeto para outro contexto, para outras realidades. Não estamos falando da violência doméstica e familiar contra a mulher na Noruega, na Dinamarca ou na Alemanha. A abordagem se refere à realidade brasileira, onde, a cada dois minutos, cinco mulheres são espancadas gravemente, conforme pesquisa levada a efeito no ano de 2010 pela Fundação Perseu Abramo em parceria com o SESC (2010, capítulo V). Destaque-se: o problema da violência doméstica e familiar contra a mulher extrapola às escâncaras a compreensão de que se cuida de questão privada – trata-se de um evidente problema social que exige políticas públicas.
Além do caso particular ensejador do Relatório "Caso Maria da Penha Maia Fernandes", oriundo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos em 2001 e cuja vítima deu nome à própria Lei (Maria da Penha), cumpre destacar que o Brasil é signatário da CEDAW (The Convention on the Elimination of All Forms of Discrimination against Women), adotada pelas Nações Unidas em 1979, que o Brasil firmou em 1981 e, em 1984, ratificou. A formalização e vigência dos termos da Convenção no Estado brasileiro só se deram em 2002. Nesse sentido, confiram-se o Decreto Legislativo 107, de 6/6/2002; o Depósito da Carta de Ratificação em 28/6/2002; a promulgação do Decreto 4.316, de 30/7/2002 – tudo para concluir pelo início da vigência dos termos da Convenção no Brasil em 28/9/2002. Antes da CEDAW, o Brasil também já era signatário da Convenção Interamericana sobre a Concessão dos Direitos Civis à Mulher, da Convenção Interamericana sobre a Concessão dos Direitos Políticos à Mulher e da Convenção sobre os Direitos Políticos da Mulher, as duas primeiras de 1948 e terceira de 1953.
No ano de 1994 (09/06/1994), veio à lume a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, promulgada no Brasil por meio do Decreto 1.973 de 1.º/8/1996. Este último acordo internacional ficou conhecido como "Convenção de Belém do Pará". A Convenção traz amplo rol de direitos e garantias às mulheres que sofrem discriminação ou violência. Conceitua violência de modo a respeitar a complexidade do tema, para ir muito além da simples violência subjetiva e abordar também as violências simbólica e sistêmica (ẐIẐEK: 2008, p. 17-22). Ao que interessa ao presente estudo, o artigo 7.º reclama atenção minudenciada:
Os Estados Partes condenam todas as formas de violência contra a mulher e convêm em adotar, por todos os meios apropriados e sem demora, políticas destinadas a prevenir, punir e erradicar tal violência e a empenhar-se em:
a) abster-se de qualquer ato ou prática de violência contra a mulher e velar por que as autoridades, seus funcionários e pessoal, bem como agentes e instituições públicos ajam de conformidade com essa obrigação;
b) agir com o devido zelo para prevenir, investigar e punir a violência contra a mulher;
c) incorporar na sua legislação interna normas penais, civis, administrativas e de outra natureza, que sejam necessárias para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, bem como adotar as medidas administrativas adequadas que forem aplicáveis;
d) adotar medidas jurídicas que exijam do agressor que se abstenha de perseguir, intimidar e ameaçar a mulher ou de fazer uso de qualquer método que danifique ou ponha em perigo sua vida ou integridade ou danifique sua propriedade;
e) tomar todas as medidas adequadas, inclusive legislativas, para modificar ou abolir leis e regulamentos vigentes ou modificar práticas jurídicas ou consuetudinárias que respaldem a persistência e a tolerância da violência contra a mulher;
f) estabelecer procedimentos jurídicos justos e eficazes para a mulher sujeitada a violência, inclusive, entre outros, medidas de proteção, juízo oportuno e efetivo acesso a tais processos;
g) estabelecer mecanismos judiciais e administrativos necessários para assegurar que a mulher sujeitada a violência tenha efetivo acesso a restituição, reparação do dano e outros meios de compensação justos e eficazes;
h) adotar as medidas legislativas ou de outra natureza necessárias à vigência desta Convenção.
Centrado no esforço de efetivação dessas obrigações estatais é que foi editada a Lei 11.340/06. De saída, uma assertiva importante: as obrigações assumidas pelo Estado brasileiro abrangem todas as manifestações de exercício da atividade estatal. Em outras palavras, já passa da hora de os operadores jurídicos do sistema de justiça deixarem a construção de seus papéis como "neutros" exegetas das disposições legais, para enfim se juntarem aos esforços de concretização desses mandados de otimização que, afinal, se referem a todos. Não há qualquer restrição, na descrição dessas obrigações do artigo 7.º da Convenção, a que se compreendam as tarefas ali delineadas como se fossem apenas do legislador: ao contrário, a Convenção é firme e expressa em determinar que os deveres ali descritos se referem a todo e qualquer agente público. Parece evidente que essa obrigação se robustece ainda mais quando tratamos dos agentes políticos do Estado, que, no exercício de suas competências e atribuições, deduzem verdadeira manifestação diretamente decorrente da soberania estatal.
Muito já se disse a respeito da abertura dogmática das soluções dos casos penais a postulados próprios de política criminal. Pois bem: estão aí os postulados, positivados de modo inequívoco. O problema, então, reside na efetivação dessas obrigações.
A Lei 11.340, enfim, positiva o vetor interpretativo, isto é, o norte teleológico da construção das soluções próprias dos casos a serem enfrentados pelo operador do sistema jurídico: "Na interpretação desta Lei, serão considerados os fins sociais a que ela se destina e, especialmente, as condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e familiar" (art. 4.º). Por isso a relevância de tornar visível o contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher no Brasil, para daí pensarmos na desestabilização das estruturas construídas por conta dessa ordem de coisas. Aliás, nisso (desestabilizar) reside a tarefa ética do conhecimento a ser produzido sobre o tema. Seguidamente, enfim, poderemos nos centrar na transformação desse cruel contexto, de modo a assegurar que esse conhecimento cumpra igualmente uma função política.
2. O tratamento da prisão cautelar no Brasil: a prisão preventiva
A prisão processual, no direito brasileiro, só encontra compatibilidade com a ordem constitucional na medida estrita de sua cautelaridade. O tema da prisão é extensivamente tratado na Constituição, que enumera diversos princípios e garantias: a presunção da inocência (art. 5.º, inc. LVII), a cláusula de reserva de jurisdição para decretação da prisão (art. 5.º, LXI); o devido processo legal (art. 5.º, LIV); a comunicação imediata da prisão (art. 5.º, LXII); o direito à assistência jurídica e ao silêncio (art. 5.º, LXIII); a identificação dos responsáveis pela prisão (art. 5.º, LXIV); o imediato relaxamento da prisão ilegal (art. 5.º, LXV); a excepcionalidade da prisão e o primado da liberdade (art. 5.º, LXVI); entre outros.
Daí a compreensão de que hoje são apenas três as espécies de prisão cautelar: a prisão em flagrante, de sede constitucional, vez que substancia a única exceção à cláusula de reserva de jurisdição para a prisão cautelar; a prisão temporária, com sede em lei própria (Lei 7.460, de 1989), cuja finalidade é o resguardo das investigações preliminares à instauração da persecução penal em juízo; e a prisão preventiva, principal espécie de prisão cautelar e, no caso, objeto de nossa maior atenção.
Por se cuidar de providência cautelar, a prisão preventiva exige a demonstração de pressupostos legais, de atendimento a requisitos para sua decretação e, principalmente, a incidência de uma, ou mais, circunstância autorizadora. Tratemos, ainda que de modo breve, a respeito de cada uma dessas exigências.
No que se refere aos pressupostos de cautelaridade, a doutrina processual usualmente os apresenta como o fumus boni iuris, compreendido como a probabilidade de uma sentença favorável à pretensão deduzida em juízo ao requerente da medida, e o periculum in mora, compreendido a partir do fato de que a demora no curso do processo possa fazer com que a tutela jurídica que se busca se torne inócua. Vale lembrar a precisa advertência de Aury Lopes Júnior, ao destacar a impropriedade jurídica e semântica da utilização das duas expressões no Direito processual penal (2004, p. 189). Neste ramo, o correto é falar-se em fumus comissi delicti, dado que o crime é justamente a negação do direito, sua antítese. A probabilidade exigida na espécie não é do direito alegado, mas sim da ocorrência de um fato aparentemente punível. Na dicção do Código de Processo Penal, fala-se em prova da existência do crime e de indícios suficientes de sua autoria. Já o periculum in mora há de ser compreendido aqui como periculum libertatis, isto é, o fator determinante não é o tempo, mas a situação de perigo criada pela conduta do imputado (2004, p. 190). O perigo, então, deriva do estado de liberdade do imputado e não substancia requisito da medida cautelar, mas efetivamente seu próprio fundamento.
Já no que toca aos requisitos legais para a decretação da prisão preventiva, são eles expostos nos artigos 313 e 314 do Código de Processo Penal. O Código expressamente afasta a possibilidade de decretação da prisão preventiva nos casos em que o agente agiu sob o pálio de uma justificante (excludente de antijuridicidade) – é o que determina o art. 314. Já o artigo 313 fixa que a prisão preventiva é decretada nos casos de crimes dolosos, quando são eles apenados com pena de reclusão (inciso I). Se o crime doloso é apenado com pena de detenção, a prisão só é possível quando "se apurar que o indiciado é vadio ou, havendo dúvida sobre a sua identidade, não fornecer ou não indicar elementos para esclarecê-la" (inciso II). A leitura desse dispositivo, com toda a sua carga semântica próprio do contexto que ensejou a edição do Código, reclamaria por si só um estudo específico. É que a compreensão do que seja um réu "vadio" evidencia conceito que apresenta o sério risco de alienar-se da realidade a que se refere. Já o inciso III estabelece que a prisão preventiva poderá ser decretada quando o réu for reincidente, salvo se já tiver decorrido o prazo de cinco anos entre a infração ensejadora do pedido de prisão e o cumprimento ou extinção da pena fixada pela condenação anterior geradora da reincidência.
A Lei Maria da Penha inseriu o inciso IV entre os requisitos legais da prisão preventiva. Reza o referido dispositivo que a prisão será decretada, "se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos da lei específica, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência". Eis o objeto da presente investigação: o dispositivo autoriza, tout court, a decretação da preventiva, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência, ou reclama compreensão que o conjugue com as circunstâncias autorizadoras da prisão preventiva?
Já mencionamos os pressupostos de cautelaridade e os requisitos legais da prisão preventiva. Cumpre apontar quais são as circunstâncias autorizadoras da medida extrema. Estão elas dispostas no artigo 312 do Código de Processo Penal: a garantia da ordem pública, a conveniência da instrução criminal e asseguração da aplicação da lei penal. Esta última evidencia a necessidade de afastar a frustração de eventual sentença condenatória, é dizer, procura afastar a possibilidade de que a fuga do réu acabe por frustrar as razões de ser do próprio processo. Já a conveniência da instrução criminal substancia a preocupação com uma instrução criminal realizada de modo lídimo e imparcial, dirigida à busca de uma verdade processual, de cunho aproximativo e com respeito às garantias insculpidas ao próprio processo. Refere-se, pois, aos "abalos provocados pela atuação do acusado, visando à perturbação do desenvolvimento da instrução criminal, que compreende a colheita de provas de um modo geral" (NUCCI: 2008a, p. 623). O problema maior parece referir-se à circunstância atinente à garantia da ordem pública.
3. A garantia da ordem pública como circunstância autorizadora da prisão preventiva
A abertura semântica da expressão "garantia da ordem pública" já levou alguns autores a afirmarem sua incompatibilidade com a atual ordem constitucional. Por todos, mencione-se Tourinho Filho, para quem o encarceramento nesses casos não tem caráter cautelar, seria uma verdadeira "execução sumária" e acabaria por substanciar "rematado abuso de autoridade e uma indisfarçável ofensa à nossa Lei Magna, mesmo porque a expressão ‘ordem pública’ diz tudo e não diz nada" (2010: 53).
De saída, convém buscar interpretação que compatibilize a disposição veiculada no inciso IV do artigo 313 do Código de Processo Penal com as demais disposições atinentes à prisão preventiva. O que não se pode admitir, por conta de todo o cabedal principiológico a que se encontram jungidos todos os operadores do sistema de justiça criminal e, principalmente, em razão das obrigações assumidas pelo Estado brasileiro, é ignorar que houve alteração legislativa relevante sobre o tema. Veja-se, por exemplo, o que afirma Nucci (2008b, p. 610-611) sobre o referido inciso IV do art. 313:
Trata-se de outra inutilidade, promovida com fim demagógico. Somente se pode decretar a preventiva se os requisitos do art. 312 do CPP estiverem presentes. Por isso, é fundamental que o magistrado atue com cautela e bom senso. Ainda que a infração penal envolva violência doméstica contra a mulher (ex.: lesão corporal simples), não há sentido em se decretar a prisão preventiva para um delito cuja pena varia de três meses a três anos de detenção. Lembremos da conhecida política de aplicação da pena mínima, existente no Brasil, e será fácil concluir a respeito do absurdo de uma prisão preventiva para um crime ser apenado, muito provavelmente, com três meses de detenção.
O raciocínio verificado no excerto – e não é um pensamento isolado na doutrina – não poderia ser mais infeliz. A ser assim, a medida protetiva descumprida somente reclamaria resignação do Estado e da própria ofendida. Será efetivamente essa a compreensão que se deve ter do dispositivo legal? Ao que parece, a interpretação acima transcrita peca justamente pela inobservância da advertência feita no início deste trabalho: olvida-se do contexto em que nos encontramos e dos compromissos assumidos por todos os agentes públicos do Estado. E, o que é pior, parte de compreensão isolada do dispositivo e alienada da ideia fundamental de que, hoje, o Estado brasileiro fez lídima opção política de coibição da violência doméstica e familiar contra a mulher. Entre, de um lado, uma "política" de aplicação da pena mínima surgida de jurisprudência generalizada e descontextualizada da violência a que nos referimos e, de outro lado, uma política oriunda dos compromissos assumidos pelo Estado brasileiro ao longo de mais de duas décadas no plano internacional e justificada pelas gritantes mostras de que a violência contra a mulher é admitida como um dado cultural imutável no Brasil, preferimos evidentemente a segunda opção.
De qualquer sorte, o argumento da homogeneidade merece reflexão. Entende-se por homogeneidade, ou proporcionalidade, o seguinte:
[…] a medida cautelar a ser adotada deve ser proporcional a eventual resultado favorável ao pedido do autor, não sendo admissível que a restrição à liberdade, durante o curso do processo, seja mais severa que a sanção que será aplicada caso o pedido seja julgado procedente. A homogeneidade da medida é exatamente a proporcionalidade que deve existir entre o que está sendo dado e o que será concedido. (RANGEL: 559-560)
Por se tratar de uma medida restritiva de direito fundamental (liberdade), a prisão preventiva passaria necessariamente pelo crivo das máximas da proporcionalidade, compreendidas usualmente como a adequação (ou idoneidade) da medida em face dos escopos visados, a necessidade da medida, somente justificável nos casos de sua extrema imprescindibilidade, e a proporcionalidade em sentido estrito, a reclamar cotejo entre os meios eleitos e os fins a serem alcançados pela própria persecução penal (por todos, cf. CRUZ: 2006, p. 94-104).
Essa relação de precedência condicionada (ALEXY, 1993, p. 112-115), isto é, a perquirição a respeito das condições que permitiriam a precedência de um princípio de envergadura constitucional (concretização do jus puniendi estatal) em face do outro (liberdade) reclama que tal prática se dê, igualmente, de modo contextualizado. É dizer, ainda que haja essa precedência, o núcleo essencial do direito precedido há de ser mantido, na espécie, pela observância do caráter de provisoriedade da prisão, pela duração razoável do processo e pela mantença estrita do quadro de relevância e urgência que ensejou a medida restritiva. Esse juízo de ponderação, cabe destacar, não se dá apenas em relação aos postulados em jogo, mas também em relação aos resultados a serem obtidos: cumpre examinar o grau de satisfação e efetivação do mandamento de otimização que a decisão procurou atender. Quanto mais alto for o grau de afetação e afronta ao princípio limitado pelo meio utilizado, maior deverá ser a satisfação do princípio que se procurou efetivar. E mais: o aparente conflito entre princípios é resolvido pelo sopesamento dos interesses em choque, de modo a definir qual deles, embora os respectivos valores abstratos estejam no mesmo nível, apresentaria um peso maior conforme as circunstâncias do caso concreto.
Daí a inviabilidade de fixar essa homogeneidade abstratamente. Não há interpretação constitucional que permita lastrear uma compreensão interpretativa que esbarra no sentido literal da lei. É dizer: não há exegese possível que contrarie frontalmente não apenas a efetividade das garantias constitucionais – dentre elas, a efetividade da persecução penal e a própria inafastabilidade da jurisdição –, mas também o sentido e o alcance da medida extrema da prisão em casos de patente reiteração delitiva (ainda que os crimes sejam de menor monta em relação à apenação prevista).
O Direito processual penal brasileiro encontra-se numa crise epistemológica há muito alardeada pela doutrina (LOPES JÚNIOR: 2007, passim). Como caminho necessário, insuperável, para a realização do Direito penal, o processo penal não pode ser lido ao largo da compreensão do próprio Direito penal que veicula. Fala-se numa exclusividade em matéria penal dos tribunais, uma vez que a autolimitação do poder punitivo do Estado-administração somente é realizada pela ação judiciária dos juízes e tribunais. (TUCCI: 2002, p. 25), mas isso não permite a intelecção de que o Direito processual penal possa ser lido de modo isolado em relação aos postulados que igualmente informam o Direito penal.
Se as missões do Direito penal somente se justificam – e se compatibilizam com a ideia de Estado democrático de Direito – na justa e exata medida em que se permita entrever a tarefa de exclusiva proteção de bens jurídicos e o escopo de observar as funções de prevenção de novos delitos e punição do mal causado pelo crime (conforme critérios de suficiência e necessidade, por óbvio), não há como visualizar a realização instrumental desse mesmo Direito penal (isto é, o processo penal) absolutamente isolado dessas preocupações.
Se o Direito penal veicula preocupação de prevenção de novos delitos – e aqui não se olvidam as críticas em relação à dificuldade de demonstração do cumprimento dessa expectativa –, essa ideia de prevenção passa por uma compreensão geral e específica. A prevenção geral, como sabido, refere-se a um patamar geral, num sentido positivo, quando se refere à sua aptidão de fazer com que a incidência do Direito penal inspire as pessoas a cultivarem a norma de valor veiculada pelo tipo de injusto; ao passo que se refere a um patamar geral num sentido negativo quando, por meio da incidência de sua resposta, intimida e tenta evitar que os demais pratiquem injustos. Numa dimensão de prevenção específica, igualmente se verifica sentido positivo e negativo na medida: fala-se em prevenção específica positiva quando se tem em conta a tarefa de ressocialização do indivíduo que incorre em fato delitivo; diz-se de prevenção específica negativa quando se toma em conta o efeito neutralizador que a incidência da pena teria sobre o agente (ao menos enquanto se encontrasse sob custódia estatal, não mais incorreria em outras infrações). Sobre as missões do Direito penal, confira-se nosso Legitimidade da intervenção penal, 2006, p. 107 et seq.
Esse juízo de cautelaridade, portanto, que é próprio da prisão preventiva deve guardar sentido aproximado com as razões que justificam o Direito material veiculado pela persecução penal. Parece ser essa igualmente a compreensão do Supremo Tribunal Federal a respeito do tema, quando se tem em conta diversos julgados versando sobre o angustiante tema da prisão preventiva, especialmente no que se refere à circunstância autorizadora da garantia da ordem pública.
O caráter de cautelaridade da prisão preventiva para garantia da ordem pública só guarda sentido se visualizado a partir do Direito penal veiculado pelo processo. Há autores que buscam uma compreensão que assegure compatibilidade da prisão preventiva para garantia da ordem pública com a Constituição. É o caso do anteriormente criticado Guilherme de Souza Nucci, para quem a garantia da ordem pública deve ser visualizada por meio de um trinômio integrado pelos seguintes elementos: gravidade da infração, repercussão social do fato imputado e periculosidade do agente (2008b, p. 547).
Não há dúvidas de que a prisão preventiva só pode conviver sistematicamente com outros princípios constitucionais, como o da presunção de inocência, quando lastreada em motivos cautelares concretamente verificados. É dizer: não se pode admitir que a prisão preventiva seja utilizada como pena antecipada relativamente à condenação pleiteada pela parte acusadora. Em outras palavras: a excepcional medida preventiva só pode ser admitida nos casos em que se apresente efetivamente a exigência de salvaguarda daqueles interesses que se substantivam nas finalidades buscadas pelo próprio processo penal, livres, vale dizer, de intentos punitivos.
A garantia da ordem pública evidencia, muitas vezes, patente preocupação de prevenção especial em relação ao imputado. Não é por outra razão que já se apontou que a prisão preventiva, em casos assim, equivaleria a verdadeira "medida judicial de polícia" assumida pelo Estado (RAMOS: 1998, p. 138). De modo mais expresso, Antônio Magalhães Gomes Filho afasta a cautelaridade da prisão preventiva para garantia da ordem pública, para afirmá-la como medida de defesa social. Convém registrar sua lição literal:
De fato, em matéria de prisão processual, à idéia de ordem pública relacionam-se todas aquelas finalidades de encarceramento provisório que não se ajustam às exigências de caráter cautelar propriamente ditas, mas constituem formas de privação da liberdade pessoal adotadas como medidas de defesa social; fala-se, então, em exemplaridade, no sentido de imediata reação ao delito, que teria como efeito satisfazer o sentimento de justiça da sociedade abalada pelo crime; ou, ainda, em prevenção especial, assim entendida a necessidade de se evitar novos crimes, pois uma primeira infração pode revelar que o acusado é acentuadamente propenso a práticas delituosas etc. (2003, p. 141)
Daí, Magalhães Gomes Filho extrai que, nos casos de prisão preventiva decretada para o resguardo da ordem pública, "a prisão não é adotada no interesse do próprio processo, mas constitui uma disfarçada antecipação da punição" (loc. cit.). De qualquer sorte, mesmo essa advertência não deve ser lida isoladamente. É que o mesmo autor, pouco antes, menciona o conflito que fixa, de um lado, a compreensão de um sistema garantista ideal, no qual nenhuma restrição à liberdade pessoal deveria incidir sobre o indivíduo ainda não definitivamente condenado e, de outro lado, a fixação de casos concretos em que a restrição à liberdade pessoal do acusado preventivamente revela-se medida de rigor. Uma vez mais, a citação textual faz-se necessária:
O aparente impasse entre essas duas colocações extremas não pode conduzir, entretanto, de uma parte, à resignada aceitação da legitimidade de qualquer forma de prisão anterior à condenação ou, de outra, à quixotesca pretensão de postular-se a completa abolição de qualquer forma de restrição da liberdade ante judicium, mesmo porque, não só entre nós mas em todos os ordenamentos, também a prisão processual encontra fundamento constitucional (art. 5.º, inc. LVI, CF). (2003, p. 139)
Em verdade, quer parecer que a ideia de cautelaridade da prisão preventiva ou reclama a superação da exigência de cautelaridade como requisito de compatibilização com a ordem constitucional ou demanda do intérprete a compreensão de que essa cautelaridade – que aqui funciona, repita-se, como fundamento e não mero requisito à decretação da restrição à liberdade – há de ser verificada à luz dos móveis próprios do Direito material veiculado pelo processo e, a toda evidência, da própria ideia de inafastabilidade da jurisdição nos casos de lesão ou ameaça de lesão a direitos (artigo 5.º, inciso XXXV, da Constituição da República).
Antônio Scarance Fernandes destaca que a prisão por garantia da ordem pública justificar-se-ia naqueles casos em que o acusado vem reiterando a ofensa à ordem constituída. A prisão, então, seria uma forma de assegurar o resultado útil do processo e, além de outros objetivos, "impedir o acusado de continuar a praticar delitos" (2007, p. 329).
Ainda que sujeita a críticas doutrinárias, a posição de que a prevenção especial, como substância à decretação da prisão preventiva como garantia da ordem pública, de sorte a que o acusado não tenha possibilidade, pendente o processo, de continuar a delinquir, é admitida na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal como consentânea com a Carta Política. Diga-se que também sólida doutrina estrangeira admite a conformidade dessa modalidade de prisão, desde que justificada concretamente, com postulados como o da presunção de inocência e outros (ILLUMINATTI: 1999).
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem emprestado sentido peculiar à medida excepcional como garantia da ordem pública. Em linhas gerais, o Tribunal tem indicado, sem pretensão de esgotabilidade de todas as hipóteses normativas em que o decreto de prisão preventiva seja possível, as seguintes circunstâncias principais:
i) a necessidade de resguardar a integridade física ou psíquica do paciente [rectius: imputado] ou de terceiros;
(ii) o objetivo de impedir a reiteração das práticas criminosas, desde que lastreado em elementos concretos expostos fundamentadamente no decreto de custódia cautelar; e
(iii) para assegurar a credibilidade das instituições públicas, em especial do Poder Judiciário, no sentido da adoção tempestiva de medidas adequadas, eficazes e fundamentadas quanto à visibilidade e transparência da implementação de políticas públicas de persecução criminal.
É o que se extrai literalmente dos votos proferidos no acórdão oriundo do HC89.238/SP, que por sua vez faz referência aos HC 88.537/BA e HC 89.090/GO (Ementário 2289-3/439), todos de relatoria do Ministro Gilmar Mendes.
Assim fixadas ao menos essas três circunstâncias autorizadoras da prisão preventiva, para garantia da ordem pública, como coaduná-las com a disposição veiculada no inciso IV do artigo 313 do Código de Processo Penal?