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Quem decide o futuro das favelas?

Assimetrias e participação popular na implementação do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) no Complexo do Alemão/RJ

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Resumo:


  • O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) foi lançado em 2007 pelo Governo Federal brasileiro para promover investimentos em infraestrutura e cidadania, especialmente em regiões pobres do país.

  • Apesar de iniciativas para ampliar a participação popular em programas governamentais, persistem desafios como a mercantilização das relações entre Estado e sociedade e a exclusão de movimentos sociais de decisões significativas.

  • A dinâmica de relação entre movimentos sociais locais e agentes do PAC no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, revela uma interação que muitas vezes exclui a participação efetiva da comunidade em decisões importantes, mantendo práticas clientelistas e buscando ganhos eleitorais.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Resumo: No ano de 2007, o Governo Federal lançou o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) em todo Brasil. Segundo o governo, o objetivo do programa é promover investimento em infra-estrutura e cidadania nas regiões mais pobres do País. No município do Rio de Janeiro, desde abril de 2008, entre outros territórios escolhidos, o PAC está no Complexo do Alemão, local de estudo deste trabalho. Assim, considerando alguns pressupostos da sociologia e da filosofia política, o objetivo mais amplo desta pesquisa é compreender como se desenvolve a dinâmica de relação entre os movimentos sociais locais e os agentes implementadores que atuam na execução do PAC em tal comunidade. Para tanto, é utilizada uma metodologia que articula análises quantitativas e qualitativas. Até o presente momento, os resultados alcançados mostram que há um processo de mercantilização das relações entre estado e sociedade. Assim, no cotidiano das práticas empreendidas no PAC na comunidade do Alemão, os movimentos sociais ora não participam de decisões significativas do programa, ora estabelecem uma relação com o governo nos moldes de uma interação patron-cliente na busca por ganhos eleitorais.


Introdução

Nas últimas duas décadas, principalmente nos anos de 1990 – período de grande radicalismo dos ideais liberais em países de capitalismo tardio -, com a organização e o fortalecimento dos movimentos sociais, alguns espaços de interlocução entre sociedade e Estado foram criados para que demandas de grupos subalternizados ganhassem visibilidade, legitimidade e efetividade na ação política estatal. Desde então, para além do exercício da democracia representativa, tornou-se fundamental ampliar os canais de participação, deliberação e controle da sociedade junto ao Estado1.

Nesse movimento, o Programa de Aceleração do Crescimento – PAC - o governo federal, em parceria com os governos estaduais e municipais, propôs um modelo de desenvolvimento econômico e social de regiões periféricas que pudesse conjugar tanto investimentos em infra-estrutura e geração de emprego e renda, como ações que estimulassem o fortalecimento das organizações da sociedade civil e dos próprios moradores locais. A proposta do Estado nesse programa é viabilizar tanto o desenvolvimento material de regiões pobres do País, quanto proporcionar aos próprios sujeitos impactados pelas obras possibilidades de participação na formulação e na implementação, bem como na gestão dessas políticas públicas. Uma transformação que contemple os conhecimentos e as potencialidades locais.

Contudo, mesmo com as iniciativas de ampliação dos canais institucionais de interlocução que buscam o fortalecimento da participação popular em programas governamentais, por meio de uma gestão compartilhada, numa sociedade estruturalmente fundada sob relações assimétricas e de privilégios, tal esfera pública ainda se apresenta incapaz de incorporar sujeitos historicamente subalternizados e discriminados. Além da herança patrimonialista e personalista que a sociedade brasileira cultivou ao longo de sua trajetória republicana2, o próprio alicerce ideológico que fundamenta o modelo de democracia no País, contribui para a permanente não-inclusão de grande parcela da sociedade em espaços de deliberação e tomada de decisão política.

Nesse sentido, esse trabalho visa apresentar alguns dados sobre a participação popular e as propostas de gestão compartilhada no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) no Complexo do Alemão, município do Rio de Janeiro. O objetivo é utilizar tais informações para reflexão sobre as dificuldades de se estabelecer mecanismos e processos que possibilitem a construção de espaços de participação e deliberação verdadeiramente democráticos. Uma esfera pública que tenha como princípio o reconhecimento mútuo entre os sujeitos, valorizando a equidade de possibilidades de inclusão e escuta, conseqüentemente, de uma ação comunicativa norteada pelo princípio da solidariedade.

Assim, compartilharei com o leitor, os impedimentos que dificultam a efetivação da proposta de gestão compartilhada, e que mantêm no desenrolar do jogo político "cada um no seu lugar": ora no olhar dos gestores públicos e representantes da iniciativa privada sobre os sujeitos afetados pelas intervenções do PAC – moradores das comunidades -, bem como na postura e no tratamento dos problemas destes, ora pela personificação do Estado nos "agentes de acesso" - que buscam potencializar ganhos eleitorais, bem como aumentar seu capital político e social através de relações clientelistas e mercantilizadas (relação patron-cliente).

Ao final, além de reafirmar a necessidade de fortalecimento dos canais institucionais de participação, pautado em associações comunitárias "horizontais" e em "redes de solidariedade" não hierarquizadas, chamo atenção para a importância dos atores com maior capital econômico, político, social e cultural – no caso, os gestores do poder público e da iniciativa privada, reconhecerem nos próprios moradores, possibilidades para participação efetiva dos processos decisórios. Antes de ampliar os espaços de participação, incluir (se é que já não estão incluídos), é preciso considerá-los, ouvir o que morador das comunidades tem para dizer. Considerar relevantes suas proposições, angústias e demandas para que os mesmos também se reconheçam como sujeitos de sua própria história, o que poderá proporcionar ao longo da implantação do programa, maior grau da organização, participação e comprometimento da população. Onde a cidadania não será vista como dádiva, mas como valor conquistado.


Complexo do Alemão: a promessa precarizada

Antes de analisarmos o desenvolvimento da gestão compartilhada do PAC, faz-se necessária uma breve apresentação da região de intervenção do Estado. Abrangendo os bairros da Penha, Olaria, Ramos, Bonsucesso e Inhaúma, o Complexo do Alemão, situado na Zona Norte do Rio de Janeiro, é formado por um conjunto de 12 (doze) favelas3: Morro da Baiana, Morro do Alemão (núcleo do complexo), Alvorada, Matinha, Morro dos Mineiros, Nova Brasília, Pedra do Sapo, Palmeiras, Fazendinha, Grota, Vila Cruzeiro e Morro do Adeus. A região hoje é considerada uma das mais populosas do município.

A proposta para região, segundo o governo e os coordenadores do programa, leva em consideração a própria formação histórica do Complexo. Até os anos 40, as terras do "alemão"4 formavam uma grande fazenda, com cerca de três quilômetros quadrados. A partir desse período, algumas indústrias começaram a se instalar na região, como a Cortume Carioca, na Penha - que nos anos 50 chegou a ser a maior indústria de curtição e fabricação de produtos de couro das Américas e a segunda do mundo, empregando cerca de 3.000 pessoas. Aos poucos, a área foi sendo desmembrada e vendida em lotes, tendo como compradores os próprios trabalhadores das indústrias que se instalaram por ali. Contribuindo para o grande fluxo migratório na região, a abertura da Avenida Brasil, em 1946, levou mais indústrias para região, fazendo com que até os anos de 1980, esses bairros se apresentassem como o principal pólo industrial da cidade.

Contudo, com o fechamento das fábricas, crises econômicas, acentuado processo de precarização do mundo trabalho, bem como o aumento dos índices de violência, muitas das famílias que viam nesse movimento sua "salvação", passaram a viver em situação de extrema pobreza ou miséria absoluta. Estima-se que o fechamento das indústrias da região tenha dado fim a cerca de 20.000 postos de trabalho.

Hoje, de acordo com a Relatoria Nacional para o Direito Humano à Educação, em pesquisa realizada no Complexo do Alemão, em decorrência da falta de pesquisas sobre a área, há muitos dados contraditórios por parte de diferentes fontes governamentais sobre sua população e situação socioeconômica. Segundo dados do IBGE, o Complexo possui IDH de 0,709 e está em último lugar no ranking do IDH das 32 Regiões Administrativas (R.A.) do município do Rio de Janeiro. Enquanto a média da renda per capita na R.A. Lagoa é de R$ 2228,78, na R.A. do Complexo do Alemão é de apenas R$ 177,31 (tabela 1). A mesma relação está para a média de anos de estudo (tabela 2). Enquanto a R.A. Lagoa possui uma média de 10,14 anos, na R.A. Complexo a média é de 4,21 anos, a segunda pior do município.

De acordo com Relatório do Plano de Desenvolvimento Sustentável, produzido pela empresa de consultoria Agencia 21, contratada pelo Consórcio Rio Melhor – responsável pelo trabalho social do PAC – a média da renda per capita no Complexo é de R$ 257,00, 3 vezes menor que a média do município (R$ 858,00). Outro dado que explicita a precariedade da região mostra que 29% dos habitantes do Complexo vivem com renda inferior a ½ salário mínimo, ou seja, abaixo da linha da pobreza.

Tabela 1 – Dados básicos: IBGE - microdados dos Censos Demográficos 1991 e 2000.

Ordem segundo o IDH

Região Administrativa

Esperança de vida ao nascer (em anos)

Taxa de alfabetização de adultos (%)

Taxa bruta de frequência escolar (%)

Renda per capita (em R$ de 2000)

Índice de longevidade (IDH-L)

Índice de educação (IDH-E)

Índice de renda (IDH-R)

Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDH)

1

Copacabana

77,76

98,51

107,97

1631,44

0,879

0,99

1

0,956

2

Lagoa

76,83

98,32

103,74

2228,78

0,864

0,989

1

0,951

3

Botafogo

76,52

98,57

113,07

1498,2

0,859

0,99

0,993

0,947

4

Tijuca

74,73

97,99

107,1

1184,43

0,829

0,987

0,954

0,923

5

Barra da Tijuca

72,69

96,62

94,91

1694,12

0,795

0,961

1

0,918

...

28

Guaratiba

67,12

90,74

74,37

234,37

0,702

0,853

0,684

0,746

29

Rocinha

67,91

87,9

69,5

219,95

0,715

0,818

0,673

0,735

30

Jacarezinho

66,3

92,2

75,68

177,98

0,688

0,867

0,638

0,731

31

Maré

66,03

89,46

68,76

187,25

0,684

0,826

0,646

0,719

32

Complexo do Alemão

64,38

89,07

72,04

177,31

0,656

0,834

0,637

0,709

Tabela 2 – Média de anos de estudo - CPS-FGV a partir dos microdados do Censo Demográfico 2000-IBGE.

Regiões Administrativas - Cinco mais

Média

Regiões Administrativas - Cinco menos

Média

Lagoa

10,14

Guaratiba

4,76

Copacabana

10,09

Jacarezinho

4,72

Botafogo

10,01

Maré

4,28

Tijuca

9,3

Complexo do Alemão

4,21

Vila Isabel

8,97

Rocinha

4,12

Dessa forma, considerando a grande precariedade que os moradores do Complexo estão submetidos em seus cotidianos, como garantir a participação em grau de paridade entre atores numa esfera pública marcada pela assimetria dos mesmos? Se entendermos que a esfera pública se constitui como o espaço para realização efetiva das deliberações consensuais (HABERMAS, 2007), ou ainda, o local de mediação necessária entre a sociedade civil e o Estado, como assegurar que a participação entre os distintos atores políticos que formulam, executam e fiscalizam o PAC aconteça de forma equânime? Conseguiriam sujeitos historicamente subalternizados ter "voz", ou melhor serem ouvidos, numa sociedade fundada sob resquícios de um passado de dominação escravista, oligárquico, autoritário e, agora, sobretudo meritocrático?

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PAC nas favelas: quem decide o futuro das comunidades?

Como proposta de mudança e transformação de áreas como a do Complexo do Alemão, desde o início de 2007, o Governo Federal tem implantado o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) em todo Brasil. No Complexo, essa intervenção vem acontecendo, em parceria com o Governo do Estado, desde 2008. Aliado às ações que buscam a reestruturação física das favelas (construção de conjuntos habitacionais, transporte público, saneamento básico, escolas, postos de saúde, centros poliesportivos etc.), o governo federal – por meio do Ministério das Cidades - propôs como metodologia de trabalho, ações que priorizam o "lado social" das intervenções urbanísticas através do Trabalho Técnico Social (TTS).

Nas comunidades do Complexo, todo o TTS está sob responsabilidade da Agência 21, empresa terceirizada pelo Consórcio Rio Melhor, grupo de empreiteiras responsáveis pela execução das obras. Essa empresa apresenta-se como o "braço social e humanizado" do PAC tendo como princípio orientador três eixos básicos de atuação para intervenção técnico-social: apoio à mobilização e organização comunitária/condominial, capacitação profissional/geração de trabalho e renda, e educação sanitária/ambiental/patrimonial. Cabe ressaltar que todo o trabalho está fundamentado pelo Caderno de Orientação Técnico Social (COTS), elaborado pela Caixa Econômica Federal, entidade que disponibiliza os recursos para execução do PAC, e está sob acompanhamento e fiscalização de técnicos da equipe do trabalho social da Secretaria Estadual de Assistência Social e Direitos Humanos.

Dessa forma, o Trabalho Técnico Social visa potencializar a capacidade de mobilização dos moradores, "capacitá-los" para a vida em condomínios, bem como estabelecer diálogos permanentes com organizações que já atuam nas 9 comunidades contempladas pelo PAC do estado. O objetivo maior desse trabalho social, segundo seus formuladores, é criar condições para que os moradores atuem de forma emancipada, junto com as ONGs, o governo e a iniciativa privada, numa gestão compartilhada que busque atender as demandas locais, sempre levando em consideração as potencialidades – como de trabalho e renda - já existentes na comunidade.

A proposta de gestão compartilhada se apresenta como uma alternativa fundamental para que sujeitos historicamente subalternizados tenham a possibilidade de atuar sobre suas próprias necessidades. Contudo, alguns problemas são centrais para efetivação da proposta: 1) o baixo nível de participação popular; 2) o grau de relevância que espaços como fóruns populares, conselhos gestores ou grupos de trabalho comunitários possuem diante das representações governamentais; 3) a forma como os moradores são vistos pelos gestores públicos e atores da iniciativa privada; 4) o processo de mercantilização das relações entre lideranças comunitárias, governo e moradores.

Segundo Bourdieu(1989), no caso do primeiro problema, esse fato pode ser explicado pela forma como alguns grupos e/ou sujeitos são reconhecidos diante de seus pares. Sujeitos que possuem maior poder e legitimidade para determinar quais crenças devem ser compartilhadas, quais modelos devem ser reproduzidos, como também quais propostas políticas devem ser acatadas pela maioria, contribuem para a descrença de sujeitos com menores possibilidades de atuação. As decisões ficam restritas a atores que atuam nas instâncias mais altas de representação, tanto do Estado, quanto da iniciativa privada. Assim, a suposta falta de participação da população nas decisões não necessariamente significa desinteresse, mas uma apatia do público subalternizado, uma vez que tal público compreende que somente alguns sujeitos e/ou grupos possuem a palavra final e o poder de decisão.

Dessa forma, entrando no segundo problema, ainda com base na teoria bourdiesiana, a própria legitimação dos espaços criados para a construção de consensos fica comprometida. Entendendo o próprio conceito de esfera pública como espaço que possibilita a construção de redes de categorias, pensamentos e significados intersubjetivos, o meio de se criar mecanismos de auto-reconhecimento, levando em consideração a realidade vivida pelos agentes, tendo nela o "espaço insubstituível de constituição democrática da opinião e da vontade coletivas, a mediação necessária entre a sociedade civil, de um lado, e o Estado e o sistema político, de outro" (Avritzer, 2004:708), tendo em vista as assimetrias das relações que marcam e determinam quem possui a palavra final, qualquer idéia de esfera pública plural, democrática e participativa apresenta-se, de saída, comprometida.

As hierarquias e as relações de poder determinam onde e quais as propostas serão formuladas e executadas. São os sujeitos políticos de instâncias superiores de representação – tanto do Estado quanto da iniciativa privada, e até mesmo da própria sociedade civil organizada –, em salas fechadas, com acesso restrito, que colocarão suas prioridades, formas de atuação, atribuições e urgências no processo. Dessa forma, as decisões mais importantes não passam pelos conselhos ou fóruns de debate. Foram pré-determinadas e chegam muitas vezes para ser referendadas.

Para entrarmos no terceiro problema, tentando complementar as duas primeiras questões, pergunto: por que somente alguns sujeitos participam e decidem de fato como as políticas deverão ser empreendidas? Por que aqueles que serão atingidos pelas políticas, não são vistos pelos gestores públicos como sujeitos capazes de contribuir, e até mesmo (re)construir e (re)significar suas próprias realidades?

De acordo com Jessé Souza (2003), vigora em nossa sociedade certa perversidade social provocada pelos efeitos "da ideologia espontânea" fundamentada pela modernidade capitalista, sobre tudo em razão de tornarem opacos os critérios da hierarquia valorativa – consequentemente de reconhecimento – de quem é ou não capaz de exercer sua cidadania. Para Souza, há um pano de fundo moral nas sociedades modernas que mantém "cada um no seu lugar". Consequentemente, constroem-se entendimentos carregados de conteúdo valorativo depreciativo, aprofundando preconceitos e discriminações sociais.

Para Souza, a fonte dessa interpretação negativa de grande parte da população – em especial sujeitos moradores de periferias ou favelas – fazendo com que desempenhem papéis secundários e passivos com relação a formulação e implementação das políticas públicas -, está no próprio entendimento sobre o que é o sujeito moderno. Segundo Taylor (1989), esse sujeito moderno se constitui pautado numa "topografia moral", resultado do "processo de expansão do racionalismo ocidental do centro para periferia". Para que esse sujeito seja visto (e reconhecido) como apto a tomar decisões, opinar e deliberar, precisa estar imbuído de um conjunto de atributos que constituem o que poderia se definir como self moderno.

Tal self moderno está pautado em exigências comportamentais e visões sobre o papel do ser humano no mundo. Constitui-se a partir de alguns pressupostos como: o princípio da interioridadevalorização da nossa capacidade de racionalizar a busca pelo conhecimento; a hierarquia valorativa - os que existem (os viventes) e os inteligentes. Os últimos se sentem capazes de julgar os primeiros; a visão cartesiana do sujeito moderno– ação metódica e disciplinadora. Instrumentalização da vida e da vontade; e o poder de suspender e dirigir desejos e sentimentos – treinamento do self pontual5 (Autocontrole, auto-responsabilidade, raciocínio prospectivo).

Contudo, o que torna evidente a desigualdade de oportunidades de participação é justamente quando se "desmascara",o que Souza chama de"ideologia espontânea e da igualdade de oportunidades", pedra angular do processo de dominação simbólica entre os sujeitos. Essa ideologia, segundo o autor, estabelece-se de forma opaca, invisível, fazendo com que naturalizemos as desigualdades de oportunidade, pois tal "ideologia espontânea" está fundamentada sob dois pilares: valores meritocráticos e o juízo sobre o gosto e a "boa estética". Com relação ao primeiro, a esfera meritocrática estaria no âmbito dos pressupostos fundamentais para constituição plena de uma cidadania jurídica e social, ligada à noção de Reinhardt Kreckel (apud. Souza, 2003) sobre a "ideologia do desempenho". Para este autor esta "ideologia" se baseia na "tríade meritocrática" formada pelos seguintes quesitos: qualificação, posição e salário. Somente a partir do atendimento destes requisitos o indivíduo se torna um "cidadão completo", do contrário, se constitui como "subcidadão".

Consequentemente, partindo do pressuposto que aqueles que possuem melhor qualificação, posicionamento e renda, terão mais possibilidades de colocar quais crenças e gostos devem ser valorizados e compartilhados pela maioria (Bourdieu, 1989), a forma como os sujeitos se apresentarão nos espaços de debates e discussões – em sua forma estética e comunicativa - também influenciará a maneira como esses sujeitos serão lidos, interpretados e reconhecidos perante o grupo, principalmente, pelos que detêm maior capital político, econômico e social.

Desse modo, considerando as relações assimétricas de poder que marcam, historicamente, os processos de constituição das esferas públicas contemporâneas, é necessária a problematização da própria dinâmica de participação que se constitui no PAC do Complexo do Alemão. É importante chamar a atenção para o grau de reconhecimento que cada sujeito ou grupo tem nos espaços disponíveis para o livre agir político (Arendt, 2003). As relações entre os sujeitos na arena implicam na definição de quem serão os atores ouvidos e quais os temas que, efetivamente, serão tratados como públicos (Fraser, 2007). O tipo da ação ou política empreendida acaba por ser o resultado da legitimidade que determinado grupo e/ou sujeito tem diante dos outros atores envolvidos no processo.

Um caso que demonstra bem a questão debatida é a visão dos moradores do Complexo sobre a implantação do teleférico nas comunidades. Grande parte dos moradores das comunidades que possuirão as estações, que conversei em trabalho de campo, demonstrou descontentamento com a obra, considerando-a pouca útil para reais necessidades de transporte público. Muitos alegaram que não foram consultados em momento algum sobre a implantação do serviço, e ainda tiveram que sair das suas casas por conta das obras6. Nesse sentido, é interessante pensar que toda a política de habitação empreendida na região – levando em consideração o grande déficit habitacional que o município possui7 -, foi conseqüência exclusiva dos avanços das obras do teleférico8. Todas as pessoas que tiveram que desocupar suas casas, sendo obrigadas a optarem por uma forma de compensação material, saíram ou porque tiveram suas casas impactadas, ou porque estavam na impedindo o avanço das retroescavadeiras.

Dessa forma, fica evidente que somente alguns atores terão o privilégio de decidir que rumo o processo de desenvolvimento tomará nas comunidades do Complexo do Alemão. A proposta de gestão compartilhada ganhará maior efetividade somente em questões "menores", naquelas que servem para o exercício do convívio coletivo. Até o presente momento, dos eixos apresentados para o desenvolvimento do Trabalho Técnico Social, somente as mobilizações e organização comunitária/condominial merecem destaque. Moradores que passaram a ocupar as unidades habitacionais construídas pelo governo – são duas: Itaóca 1174 e 1833 – em um primeiro momento participam de oficinas de integração, para que "entendam" como deve se viver em conjuntos habitacionais. Em um outro momento, já morando nos apartamentos, após a formação de comissões gestoras condominiais, moradores que ocupam cargos de síndicos realizam reuniões periódicas, junto com técnicos do trabalho social da empresa terceirizada, expondo seus problemas e dificuldades. Contudo, reclamam permanentemente da ausência de retorno das instâncias governamentais e do Consórcio sobre os problemas apresentados.

Para os eixos capacitação profissional/geração de trabalho e renda, e educação sanitária/ambiental/patrimonial, foram realizados 9 encontros chamados "Fóruns populares" em que estiveram presentes representantes da sociedade civil (ONGs, microempresários locais e lideranças comunitárias), representantes do governo estadual e técnicos da Agência 21. Desse encontro saiu o "Relatório do Plano de Desenvolvimento Sustentável", que teria como função relacionar todas as proposições colocadas, debatidas e encaminhadas no fórum pelos participantes. Contudo, o resultado final se limitou a uma apresentação do histórico do Complexo do Alemão e um conjunto de intenções para as comunidades. Nenhuma proposta efetiva foi apresentada.

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Sobre o autor
Bruno Coutinho de Souza Oliveira

Cientista Social (especialização em sociologia política); mestrando em Políticas Sociais - Escola de Serviço Social - Universidade Federal Fluminense

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Bruno Coutinho Souza. Quem decide o futuro das favelas?: Assimetrias e participação popular na implementação do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) no Complexo do Alemão/RJ. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2844, 15 abr. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18922. Acesso em: 23 dez. 2024.

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