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A dialética entre Direito e Moral.

A relação entre as esferas axiológica e normativa nas perspectivas jusnaturalista, juspositivista e pluralista

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21/06/2011 às 12:41
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5. A Tese da Vinculação entre Direito e Moral na Pós-Modernidade: o Pluralismo Ético

LYRA FILHO, nosso representante dos juristas pós-modernos, desconstrói a distinção entre Direito e Moral que foi a base sobre a qual o Positivismo Jurídico erigiu a tese da separação. Com isso, na pós-modernidade, ganhou força a tese da vinculação entre o campo axiológico e o normativo elaborada pelo Pluralismo Ético.

5.1. A Concepção de Direito no Pensamento de Roberto Lyra Filho

Conforme esse autor, o Direito encaixar-se-ia, perfeitamente, na formulação de ideologia proposta por MARX. Isso, porque, assim como a escola, a Igreja, os partidos políticos, o Direito também seria um aparelho ideológico do Estado, os quais colocariam em nossa cabeça certa "visão de mundo", certas explicações a respeito de tudo, como se fossem verdades inquestionáveis.

O Direito, portanto, na concepção de LYRA FILHO, o qual se filia à percepção marxista, é mais um meio de dominação, haja vista que a norma jurídica seria mais um dos incomensuráveis instrumentos usados pelas classes dominantes para subordinar as classes dominadas, ou seja, o Direito contribuiria para a manutenção dum determinado grupo social no poder.

Concomitantemente, o Direito agiria, outrossim, como modo de alienação, posto que as pessoas aceitariam situações tão revoltantes, impostas pelas normas jurídicas, como naturais, porque teriam sido condicionadas, ou seja, porque a população creria na lisura do processo legislativo que levou à institucionalização das leis.

No entanto, a despeito de haverem sido constituídas num legal processo legislativo, o Direito, enquanto norma jurídica, não perderia seu caráter de dominação de uns (a grande massa subalterna) por parte de outros (as classes ou grupos dominantes). Afinal, "através da ideologia [do Direito], os homens procuram ‘legitimar’ condições de exploração, dominação e injustiça" [70].

Os positivistas tendem a reduzir o Direito às normas ou, ainda mais restritamente, às normas legais, neste caso rejeitando as tentativas de ver o fenômeno jurídico num produto pré-legislativo, nos mores e costumes da classe e grupos dominantes (positivismo historicista ou sociologista), seja, objetivamente, como "cultura" e "Volksgeist" – espírito do povo – monopolizados por aquela classe e grupos; seja, subjetivamente (positivismo psicologista), no "direito livre" do intérprete; no "direito judicial" (judge-made law) dos aplicadores contenciosos oficiais; ou na "fenomenologia jurídica", dos aplicadores de "essências" (que permanecem limitados pelas diretrizes de um só enfoque, o da classe e grupos dominantes). [71]

5.2. O Destroço da Distinção Formal entre Direito e Moral

LYRA FILHO, que, além de professor emérito da Universidade de Brasília, foi fundador da Nova Escola Jurídica Brasileira, pode ser classificado como um jurista pós-moderno, haja vista que ele, a despeito de ainda se fundamentar no entendimento marxista de ideologia, acerca-se, nitidamente, da doutrina pós-hodierna do Pluralismo Ético.

Compreende-se o Pluralismo como coletânea de "teorias que rejeitam ou superam o positivismo, mas não se pretendem jusnaturalistas" [72]. Podemos, pois, seguramente, asseverar que aquele jurista encontra-se nessa corrente ideológica, porque LYRA FILHO, ao desconstruir a distinção entre Direito e Moral, propõe "idéias que se colocam para além do positivismo" [73].

De tal guisa, LYRA FILHO, dentro da perspectiva pluralista, abre caminhos mais encorajadores do que o Positivismo oferece. Isso, porque aquele professor, ao desconstruir a distinção formal entre Direito e Moral elaborada por KANT com base em THOMASIUS, fundamenta a tese da vinculação entre o campo axiológico e o mundo normativo.

Segundo LYRA FILHO, a ideologia jurídica hodierna do Juspositivismo afirma que "as normas jurídicas se distinguem das outras normas sociais - normas técnicas (maneira correta de realizar uma tarefa) ou morais (maneira honesta de proceder) – porque seriam elas, as jurídicas: heterônomas, bilaterais atributivas e coercíveis, mediante sansões organizadas" [74].

Então, tendo como ponto de partida e referência a doutrina positivista, LYRA FILHO afirma que essa distinção formal, a qual foi desenvolvida pelos juristas positivistas KELSEN e REALE, demonstra-se inexata, porque uma análise profunda da realidade social vem mostrar o contrário do que foi explicitado pelo Positivismo Jurídico.

LYRA FILHO discorda cabalmente da tese do juspositivista que afirma, com embasamento em KANT, que o Direito é heterônomo e a Moral, autônoma. Para aquele professor, tanto o Direito quanto a Moral podem apresentar-se com autonomia ou heteronomia, não obstante a norma moral tenda a ser mais autônoma e a jurídica mais heterônoma.

Esse dissenso em relação à hipótese da distinção ocorre, porque LYRA FILHO, influenciado pela concepção de ideologia em MARX, afirma que a consciência, tida como plano interno por KANT, é, em verdade, uma construção com gênese em elementos externos. A consciência, destarte, seria fruto da ideologia dos dominantes que manipulariam as vontades. LYRA FILHO afiança:

MARX dizia que a consciência (Bewusstsein) é conscientização (Bewusstsein) e, com isto, aponta para o fato de que, no campo interior, do que se chama consciência, atuam elementos externos, afetando a nossa vontade; e a conscientização, ao invés de consistir em "liberdade" interior, exige que lutemos, mentalmente inclusive, contra aquilo que o mundo exterior (classe ou grupo social, educação, forma de vida) pôs dentro de nós, modelando as nossas opiniões e atitudes e criando uma ideologia. [75]

Assim sendo, a Moral, apesar de ser, predominantemente, autônoma, outrossim, pode ser heterônoma. Curiosamente, uma relação contrária estabelece-se no Direito, haja vista que esse, embora seja, preponderantemente, heterônomo, também pode achar-se autônomo, quando nos posicionamos, criticamente, diante da norma jurídica. Sintetiza LYRA FILHO:

È um erro falar em Direito e Moral, como se no primeiro aparecessem normas heterônomas (impostas, de fora, por vontade alheia) e na segunda houvesse uma autonomia em que as normas e seu domínio fossem de processo interno exclusivamente. A norma jurídica é heterônoma, tanto quanto a moral, na medida em que não somos nós quem as cria; mas também são ambas relativamente "autônomas", na medida em que nos posicionamos criticamente, conscientizados, despertos, diante do que qualquer uma delas nos impõe. [76]

Acerca da tese do Positivismo Jurídico que assevera que o Direito seria, pelo menos formalmente, diverso da Moral, posto que o primeiro seria bilateral atributivo e a segunda seria, tão somente, bilateral, LYRA FILHO descompassa. Segundo o jurista fundador da Nova Escola Jurídica Brasileira, ambas as esferas axiológica e normativa seriam bilaterais atributivas.

O Direito tem, evidentemente, a bilateralidade atributiva como característica, haja vista que as normas jurídicas prevêem não só as relações bilaterais que surgem na sociedade como também a possibilidade de exigir-se a cobrança do acordo estabelecido na relação constituída. Não obstante o Direito apresente-o com maior evidência, a Moral [77] também é bilateral atributiva.

O ato moral apresenta não somente o caráter da bilateralidade, mas também a qualidade da atributividade, haja vista que "o ato moral é cobrado pela sociedade, que o estabelece e o mau pagador sofre não desprezível sansão, que cresce, desde a forma de ser ‘malvisto’ pela ‘gente boa’, até o isolamento, que impede o ‘mau caráter’ de transitar nas doçuras mundanas" [78].

Por fim, sobre a pressuposição da distinção por parte do Positivismo de que o Direito é coercível e a Moral não o é, LYRA FILHO dissente. Discrepando daquela ideologia jurídica moderna, aquele professor assevera que "há normas jurídicas sem sanção organizada, como há norma moral que dispõe de tal sanção" [79].

Segundo os juristas do Positivismo, o Direito é coercível, isto é, possui sanções organizadas. Esse seria, então, o principal ponto de distinção entre Direito e Moral, para os positivistas. Assim sendo, os defensores daquela doutrina divergem de LYRA FILHO, haja vista que, para esse, tanto o Direito quanto a Moral seriam coercíveis e com possíveis sanções organizadas.

Assim sendo, nota-se que o Direito seria coercível, estabeleceria sanções, mas essas poderiam ser organizadas ou não. Já a Moral seria, outrossim, coercível e, assim como o Direito, instituiria sanções difusas ou organizadas, essas últimas seriam os "costumes, dotados de ritual muito preciso de aplicação, para as infrações à honesta conduta" [80]. [81]

Desse modo, conclui-se que, aparentemente, não existe um critério de distinção entre o campo axiológico e o mundo normativo, pelo menos formalmente. Não haveria, de tal guisa, a distinção absoluta entre a norma jurídica e a norma moral proposta pela ideologia jurídica hodierna do Positivismo Jurídico.

Segundo LYRA FILHO, a distinção entre Direito e Moral não se encontraria na intensa distinção formal orquestrada pelo Juspositivismo, mas, sim, na tênue distinção de natureza indicada pela nova visão, a pós-moderna. O Direito é diverso da Moral, não obstante as normas jurídicas e as morais sejam bastante similares. Afinal, desta maneira, abrevia aquele professor:

Esta [a diferença, a distinção] há de ser buscada na própria dialética social, para não dissolver-se em nebulosas metafísicas, nem achatar-se em qualquer bloco de normas estatais (que nem de longe são garantia de que ali, nas leis, está o Direito legítimo). [82]

De tal modo, percebe-se que LYRA FILHO, ao propor a destruição da distinção formal entre Direito e Moral, posiciona-se de maneira contrária ao Jusnaturalismo, haja vista que nega as bases metafísicas, e contraria o Juspositivismo, posto que a lei não seria expressão una do Direito. Assim, nota-se que LYRA FILHO defende a tese pluralista da vinculação: é pós-moderno.


7. Conclusão

A dialética relação entre Direito e Moral é, realmente, um tema recorrente na Filosofia do Direito. No entanto, essa questão, não obstante alcance seu apogeu no elemento jurídico, invade o meio social e, devido a isso, passa a ser abordado nos mais diversos campos do conhecimento humano, seja esse científico ou transcendental.

Um paradigma que bem pode ser explicitado como discussão da relação entre a esfera axiológica e a normativa num meio transcendente encontra-se na Bíblia Cristã. É nesse livro sagrado da cristandade que a supracitada querela é versada, mais estritamente, no livro de Gálatas. A saber:

Sabemos que ninguém é justificado por observar a Lei de Moisés, mas por crer em Jesus Cristo, nós também abraçamos a fé em Jesus Cristo. Assim fomos justificados pela fé em Cristo e não pela prática da Lei, porque pela prática da Lei ninguém será justificado. Aliás, foi em virtude da Lei que eu morri para a Lei, a fim de viver para Deus. Com Cristo, eu fui pregado na cruz. Eu vivo, mas não eu, é Cristo que vive em mim. Esta minha vida presente, na carne, eu a vivo na fé, crendo no Filho de Deus, que me amou e por mim se entregou. Eu não desprezo a graça de Deus. Ora, se a justiça vem pela Lei, então, Cristo morreu inutilmente. [83]

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Destarte, percebe-se que a problemática da relação dialética entre as normas jurídicas e as sociais é uma temática que vem sendo altercada em muitas localidades e em muitos tempos. Com a citação do livro sagrado, nota-se, outrossim, que aquela temática é ventilada tanto pelo campo científico, que poderia ser representado pelas ciências jurídicas, quanto por outros campos.

Dentre esses outros campos não científicos, encontrar-se-ia o mundo do transcendental, dentre os quais, encontra-se o intelecto religioso. Esse, enquanto parte da sociedade humana, defendia que o fiel, ao achar-se na dicotômica dúvida (obedecer à lei ou respeitar a vontade divina), deveria seguir Deus, haja vista que, somente assim, o crente lograria a salvação.

É bem verdade que, ao longo do desenvolvimento do presente trabalho, não versamos acerca de como as religiões vêem a relação entre Direito e Moral, mais restritamente, no caso, a religião Cristã. No entanto, cumpre notar que, a despeito de ser supostamente fundamentado numa base racional, o Jusnaturalismo apresenta-se como semelhante à visão transcendental religiosa.

Cronologicamente, o mais antigo, o Jusnaturalismo, enquanto ideologia jurídica hodierna, expõe-se como similar àquela visão transcendental religiosa, porque busca fundamentações metafísica e transcendental para o Direito e porque ambos, religião e Jusnaturalismo, defendem que a norma jurídica deveria estar vinculada a algo, para, de tal modo, obter legitimidade.

Tal Jusnaturalismo, ao propor uma "base racional" para o Direito, explicita-se como uma tentativa - quiçá a primeira - de superar uma visão praticamente teocrática do Direito. Contudo, a despeito de contrapor-se à religião, aquela já arrolada doutrina mostra-se com bastantes semelhanças com as perspectivas teocráticas.

Assim sendo, nota-se que o Jusnaturalismo, ao acastelar a tese da vinculação entre Direito e Moral, mostra-se sem êxito em seu propósito, haja vista que, ao recorrer ao Direito Natural como fonte da vinculação necessária entre a norma jurídica e a norma moral, a citada doutrina retrocedeu às fundamentações metafísica e transcendental, outrossim, usadas pela religião.

A superação dessa metafísica veio com a criação do Estado Moderno, o qual concentrou a produção jurídica em suas mãos, ou melhor, nas mãos da, então, recém nascida figura do legislador. Com isso, foi possível abalizar o que antes estava indistinguível, o Direito e a Moral, os quais se mostravam unos no Direito Natural.

Assim, devido a esse supracitado processo histórico-social, foi possível a elaboração por KANT, o qual se fundamentou em THOMASIUS, da hipótese que assevera que o campo axiológico e o mundo normativo seriam distintos. Isso, essencialmente, porque a Moral seria relativa ao plano interior e o Direito, ao plano exterior.

Ulteriormente, KELSEN, que pode ser categorizado como adepto da doutrina do Positivismo, revisa a distinção em KANT e, então, adere ao Relativismo Ético, o qual, assim como o Juspositivismo, protege a tese da separação entre Direito e Moral, haja vista que, segundo aquelas correntes ideológicas, uma Moral absoluta não existe, há apenas valores morais relativos.

A posteriori, depois do período moderno da Revolução Francesa que, com o Iluminismo, marcaram a emersão do Jusnaturalismo e do Juspositivismo, entramos na era pós-moderna do Direito. Tal período é assinalado pela desconstrução da distinção entre norma jurídica e norma moral, pelo menos a formal, e pelo Pluralismo Ético.

Essa desconstrução da hipótese kantiana da distinção encontra apoio, conforme fora vislumbrado no desenvolvimento do presente trabalho, nos mecanismos de controle social em BERGER, nas sanções em BEATTIE e em GOFFMAN na estigmatização, isto é, no descompasso entre as identidades real e virtual.

O Pluralismo Ético pós-moderno, influenciado pela supracitada desconstrução, vem afiançar, ao proteger a tese da vinculação entre Direito e Moral, a "legitimidade dos diferentes sistemas de cultura e moral que não atentem contra os princípios humanos mais gerais" [84]. Assim, o Pluralismo Ético pressupõe a viabilidade de um juízo ético racional.

Destarte, conclui-se que o Pluralismo Ético supera o Jusnaturalismo, haja vista que esse procura, como visto, fundamentações metafísicas, e, outrossim, aquela doutrina pós-moderna supera o Juspositivismo, posto que esse nega a necessidade duma legitimação para o Direito, o mundo jurídico seria a lei, tão somente, o legal, para um positivista legalista.

No entanto, não obstante nossa conclusão mostre-se adequada à inquirição que motivou a feitura do presente trabalho, persistem alguns questionamentos sem uma resposta consistente. Afinal, como universalizar um conteúdo moral mínimo, se o mundo não abrangido pela cultura ocidental não experimentou fatos como a construção do individualismo [85] e do contratualismo [86]?

Assim sendo, faz-se mister uma solução para a questão: como fundamentar e como justificar os Direitos Humanos, sendo esse um traço histórico-social característico da construção do Ocidente cultural?

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Sobre o autor
Nilson Dias de Assis Neto

Acadêmico do Curso de Graduação em Direito da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB), aluno bolsista do VII Curso de Formação em Teoria Geral do Direito Público (TGDP) do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e estagiário remunerado do Gabinete da Ministra Fátima Nancy Andrighi do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ASSIS NETO, Nilson Dias. A dialética entre Direito e Moral.: A relação entre as esferas axiológica e normativa nas perspectivas jusnaturalista, juspositivista e pluralista. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2911, 21 jun. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19376. Acesso em: 19 mai. 2024.

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