Artigo Destaque dos editores

A análise sistemática da sucessão do cônjuge e do companheiro na perspectiva civil-constitucional

Exibindo página 4 de 7
Leia nesta página:

6 DA SUCESSÃO DO COMPANHEIRO

6.1.LEIS Nº 8971/94 E 9278/96

Antes da regulamentação legal da união estável não era atribuído direito de herança aos companheiros, até então chamados de concubinos. Segundo lição de Oliveira (apud Silva, 2009, p.18):

Na ordem de vocação hereditária, conforme o art. 1603 do Código Civil de 1916 aparecia apenas o cônjuge sobrevivente, para haver a herança depois dos descendentes e dos ascendentes. Na falta do cônjuge, sucediam os colaterais, sem lugar, portanto, para o chamamento de companheiro supérstite.

Conforme entendimento consolidado na Súmula 380 do STF, a jurisprudência atribuía aos concubinos apenas o direito de partilha dos bens adquiridos por esforço comum, em sociedade de fato orientada pelo direito obrigacional. O direito de herança não era assegurado ao companheiro, que recebia apenas a participação no patrimônio em percentual variável, de acordo com sua efetiva contribuição.

A atribuição de herança aos companheiros só era possível através de disposição testamentária, vedada a outorga por homem casado à sua concubina, nos termos dos arts. 1177 e 1719, inciso III do CC de 1916.

Em virtude do art. 226, §3º, da Carta Política de 1988, regulamentado pelas leis da união estável, a sucessão mortis causa entre companheiros foi, enfim, admitida, de forma análoga ao direito consagrado ao cônjuge sobrevivente pelo Código Civil de 1916, em seus arts. 1603, II e 1611. Segundo Oliveira (apud Silva, 2009, p.18) "com implícita alteração da ordem de vocação hereditária, uma vez que, existindo companheiro com direito à herança, afastava-se o chamamento dos colaterais sucessíveis".

Assim, nos termos do art. 2º, da lei nº 8971/94, o companheiro participava da sucessão do falecido em condições muito semelhantes às do cônjuge:

1. Enquanto não constituísse nova união, o convivente teria direito ao usufruto da quarta parte dos bens do falecido, se houvesse filhos deste ou comuns; ou ao usufruto da metade dos bens, se não houvesse filhos, embora sobrevivessem ascendentes; e

2. Na falta de descendentes e de ascendentes, o convivente teria direito à totalidade da herança.

Tais direitos não foram mencionados na lei nº 9278/96, mas também não foram revogados expressa ou tacitamente. A nova lei da união estável limitou-se, em seu art. 7º, parágrafo único, a atribuir mais um direito sucessório ao companheiro supérstite, enquanto viver ou não constituir nova união ou casamento, qual seja, o direito real de habitação sobre imóvel destinado à residência da família.

No sentido da não revogação do direito real de habitação, está o enunciado nº 117, da I Jornada de Direito Civil promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, em 2002 _ "Art. 1831: o direito real de habitação deve ser estendido, seja por não ter sido revogada a previsão da lei nº 9278/96, seja em razão da interpretação analógica do art. 1831, informado pelo art. 6º, caput, da CF/88".

Segundo Czajkowski (apud Silva, 2009, p.19) para o reconhecimento do direito real de habitação não se exigia a coabitação, uma vez que esta não era elencada entre os deveres dos conviventes previstos no art. 2º, da Lei nº 9278/96.

Outrossim, o convivente supérstite poderia cumular os direitos de usufruto e de habitação, o que não acontecia com os cônjuges, que teriam direito a apenas um dos benefícios, dependendo do regime de bens adotado no casamento. E à semelhança do cônjuge, o companheiro era reconhecido como herdeiro necessário.

Analisando a regulamentação legal da união estável, Oliveira (apud Silva, 2009, p.19) conclui "que houve um grande avanço em favor dos direitos do companheiro, por sua prática equiparação aos direitos do cônjuge no plano sucessório". No entanto, o autor ressalta que não faltaram críticas ao posicionamento do legislador.

Como veremos, estes avanços foram ignorados pelo legislador quando da edição do Código Civil de 2002, que regulamentou a sucessão dos companheiros em seu art. 1790, de forma, no mínimo, atécnica.

Num primeiro momento, o anteprojeto do CC de 2002 não mencionava a união estável, que só veio a ser definida como entidade familiar em 1988 com a promulgação de nossa atual Constituição.

Foi o senador Nélson Carneiro quem apresentou emenda no sentido de garantir direitos sucessórios aos companheiros. Isso talvez possa explicar a má alocação do tema no CC, bem como o tratamento diferenciado em relação aos dispositivos que cuidam do direito sucessório do cônjuge.

O art. 1790 do CC, que prevê a sucessão dos companheiros, foi inserido no capítulo que versa sobre as disposições gerais da sucessão, fora, portanto, do capítulo que disciplina a ordem de vocação hereditária. O legislador poderia ter evitado esta impropriedade, que consubstancia uma discriminação injustificável frente à nova axiologia constitucional, mencionando o companheiro, juntamente com o cônjuge, nos arts. 1829 a1832, 1836 a 1839 do CC.

Tentando amenizar a desigualdade de tratamento que hoje existe entre cônjuge e companheiro, alguns defendem, com eloquência, que tais leis não foram revogadas na íntegra. Na parte em que o CC foi omisso e que elas tratavam, bem como na parte em que ele retirou direitos, por serem especiais, elas subsistem. Neste sentido, temos a seguinte ementa:

Apelação cível. Ação declaratória. União estável e petição de herança. Direito sucessório. Conflito aparente de normas. Princípio da especialidade. Recurso provido. 1. Uma das conseqüências do reconhecimento da união estável é a aquisição de direitos pelo companheiro sobrevivente sobre a herança deixada pelo outro. 2. Reconhecida a união estável, existe o direito sucessório. 3. O art. 2º, § 2º, da Lei de Introdução ao Código Civil, dispõe que a lei nova que estabeleça normas gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior. 4. Em decorrência do princípio da especialidade mencionado, a Lei nº 8.971, de 1994, que contém normas especiais sobre o direito dos companheiros à sucessão, prevalece sobre o Código Civil, que é lei geral, ainda que posterior. 5. A companheira sobrevivente, na falta de descendentes e ascendentes, ainda que não tenha contribuído para a aquisição onerosa de bens durante a união estável, tem direito à totalidade da herança. 6. Apelação cível conhecida e provida para reformar em parte a sentença e reconhecer o direito da apelante à totalidade da herança do ex-companheiro. (TJMG, Ac. Proc. 1.0209.04.040904-4/001(1). Rel. Ministro Caetano Levi Lopes, j. 22/09/2009, DJ 07/10/2009)

6.2.CC DE 2002: UMA ANÁLISE COMPARATIVA COM O CÔNJUGE

Conforme Pereira (2009, p. 137):

Chama a atenção do intérprete, desde logo, a inadequada inserção do artigo 1790 do CC em Capítulo dedicado às "Disposições Gerais", do Título I (Da Sucessão em Geral), e não, como teria sido próprio, naquele pertinente à ordem de vocação hereditária, no Título II ("Da Sucessão Legítima"), em prejuízo à sistematização das regras sobre o assunto. Acrescente-se que o companheiro não poderia ter deixado de configurar, a rigor, na lista dos herdeiros legítimos (art. 1829 do CC), conforme sublinhado em monografia específica (Guilherme Calmon Nogueira da Gama, O Companheirismo, cit., pág. 463). Nota-se, portanto, que o dispositivo em comento é um corpo estranho no sistema do novo código civil, pouco à vontade na companhia de outras normas originalmente concebidas para um sistema que simplesmente desconhecia a figura do companheiro, no campo sucessório.

Ainda, o CC 2002:

Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes:

I - se concorrer com filhos comuns terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho;

II - se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles;

III - se concorrer com outros parentes sucessíveis terá direito a um terço da herança;

IV - não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança.

Toda a matéria pertinente à vocação hereditária do companheiro encontra-se regulada no artigo ora em estudo. Segundo o seu caput, a vocação do companheiro encontra-se limitada aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável. Os demais bens adquiridos pelo falecido antes de constituída a união estável, ou durante ela, a título gratuito, não serão objeto de sucessão pelo companheiro. Isso representa um retrocesso se comparado a lei 8971/94 e também um retrocesso social: basta considerar a situação dos companheiros que não chegaram a formar patrimônio comum e que, por conseguinte, estariam reciprocamente excluídos da sucessão, à luz do art. 1790 do CC. A lei acabaria frustrando o objetivo de amparar o companheiro sobrevivente, que não somente não faria jus à meação, como ainda não seria chamado a suceder o de cujus.

Exatamente para se evitar semelhante resultado é que se deve interpretar a expressão herança, constante dos incisos III e IV, em seu sentido próprio, mais abrangente do que "bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável" (caput). Na realidade, sobre este ponto há no mínimo três posições sobre a palavra herança.

A primeira delas considera o rigor da boa técnica, submetendo todos os incisos do artigo 1790 do CC ao seu caput, nesta hipótese a palavra herança se limitaria aos bens comuns (conforme determina o caput), gerando a possibilidade de o companheiro sobrevivente ser lançado à própria sorte na hipótese já comentada de ausência de meação e de herança.

A segunda prevê também um tratamento único para todos os incisos, tratamento ilegal, porém constitucional, qual seja: conferir a herança ao companheiro sobrevivente em todas as hipóteses previstas do artigo 1790 do CC, ou seja, o companheiro seria meeiro quanto aos bens onerosos adquiridos na constância da união estável e herdeiro quanto aos demais _ tratamento semelhante ao que é dado ao cônjuge na comunhão patrimonial de bens. Dessa forma o companheiro seria herdeiro independentemente de existirem bens adquiridos onerosamente na constância da união estável (bens comuns). Pelas regras atuais, no entanto, se não existirem os bens comuns, o companheiro não será herdeiro nem meeiro.

Por fim, a terceira, queconta com muitos adeptos na doutrina,prevê que a limitação do caput se aplica apenas aos incisos I e II, mas não às demais hipóteses, onde a palavra herança deve ser tomada em seu sentido próprio.

Após essa prévia, passemos à análise dos dispositivos concernentes à vocação hereditária do companheiro.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Descendentes e companheiro (art. 1790, I e II)

O companheiro de que fala o novo Código Civil, na hipótese de concorrer com os descendentes do de cujus, somente terá direito sucessório sobre os bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável (art. 1790, caput, CC): os demais bens adquiridos pelo falecido antes de constituída a união estável, ou durante ela, a título gratuito, serão objeto de sucessão apenas pelos descendentes. Reside aí a primeira desigualdade entre a sucessão do companheiro se comparada a do cônjuge, pois na sucessão deste quando concorre com os descendentes (a depender do regime de bens), na parte em que não for meeiro, será herdeiro, independentemente de os bens terem sido adquiridos na constância do casamento ou não e independentemente de terem sido adquiridos a título gratuito ou oneroso. Na sucessão do companheiro, ao revés, não existe essa possibilidade ampla de ser herdeiro, pois o âmbito de incidência de seu direito sucessório é apenas quanto aos bens adquiridos na constância da união estável e a título oneroso. Os que foram adquiridos antes de constituída a união estável, ou após ela, a título gratuito, não serão objeto de herança para o companheiro. Na realidade, o companheiro nunca será herdeiro (sentido próprio e amplo da palavra), pois ainda que tenha adotado, por pacto de união estável, o regime da separação total, os bens adquiridos onerosamente durante a união estável, são aqueles que presumidamente o companheiro contribuiu para a aquisição, juntamente com o de cujus. E se este regime tivesse sido adotado na hipótese de casamento, além dos bens adquiridos onerosamente, teria direito também, a título sucessório, aos bens particulares.

Na parte em que concorram descendentes e o companheiro, os bens (adquiridos onerosamente na vigência da união estável) serão partilhados da seguinte maneira:

A) Se houver filhos comuns, faz-se a partilha por cabeça, tocando a estes e ao companheiro idênticas frações (art. 1790, I do CC);

Faz-se necessária uma observação quanto ao emprego da expressão "filhos comuns" no inciso I. Na realidade, o legislador só pôde ter querido dizer "descendentes comuns", tanto pela contraposição estabelecida com o inciso seguinte (no qual é usada a expressão "descendentes não comuns"), como pelo fato de que, se assim não for, os descendentes comuns mais remotos (netos, bisnetos, etc.) acabariam por enquadrar-se entre aqueles "outros parentes sucessíveis" de que fala o inciso III do mesmo artigo, produzindo resultados absurdos. Basta imaginar que o cônjuge, se concorrer com muitos netos (quatro ou mais), terá direito a ¼ da herança (artigo 1832 do CC), enquanto o companheiro, na mesma situação, receberia a fração (maior) de 1/3 (art. 1790, III) _ a lei teria, em iguais circunstâncias, conferido mais direitos ao companheiro que ao cônjuge. Ademais, esses descendentes mais remotos seriam relegados à 2ª ordem de vocação hereditária juntamente com o companheiro, pois na 1ª estariam os filhos do de cujus (comuns ou não) concorrendo com o companheiro. Nessa mesma situação, em se tratando de cônjuge, os descendentes mais remotos (através do direito de representação) concorreriam com os filhos do de cujus e também com o cônjuge, ou seja, todos ficariam na 1ª ordem de vocação hereditária.

Nota-se, portanto, que entender "filhos comuns" como sinônimo de "descendentes comuns" é um imperativo constitucional baseado no tratamento isonômico entre as várias formas de constituição de família _ isso se coaduna com o objetivo deste trabalho que é justamente combater as interpretações e eventuais tratamentos desiguais dados em situações iguais.

A segunda desigualdade entre a sucessão do companheiro se comparada à do cônjuge, é que aquele não terá direito a quota mínima de ¼ dos bens se concorrer com mais de três filhos comuns.

B) Se o companheiro concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um dos descendentes chamados por cabeça (art. 1790, II do CC).

Aqui também se faz necessária uma observação. "... metade do que couber a cada um daqueles" _ assim diz literalmente o CC, referindo-se aos descendentes com a palavra "daqueles". A redação é defeituosa, pois nem todos os descendentes chamados terão, forçosamente, direito a frações idênticas. Isso porque é possível que ao lado do companheiro, concorram, por exemplo, filhos e netos do autor da herança, quando os últimos sejam convocados por direito de representação e, conseqüentemente, dividam a quota do filho pré-morto (arts. 1835 e 1855 do CC). A "metade", a que se refere o texto legal, deve ser, pois, calculada sobre a fração que couber aos descendentes chamados por direito próprio: havendo a simultânea vocação de filhos e netos do de cujus, que não sejam descendentes também do companheiro, a parte deste deverá corresponder à metade do que tocar singularmente a cada filho e às estirpes dos filhos pré-mortos.

A terceira desigualdade é que na hipótese desses filhos serem só do autor da herança, terá direito apenas à metade do que couber a cada um deles, enquanto o cônjuge quando concorre com descendentes que são exclusivos do de cujus, terá direito, no pior dos posicionamentos resultantes da controvérsia da segunda parte do art. 1832, a quota igual a que caberia a cada um dos herdeiros ( tópico 5.1.3.1. Partilha ).

Questão que o CC deixa de fornecer explícita solução é a situação de o companheiro ser chamado a suceder concomitantemente com descendentes comuns e não comuns. Esta situação também se repete na sucessão do cônjuge, na mencionada controvérsia da segunda parte do art. 1832 do CC.

Com base num tratamento isonômico, teríamos duas soluções:

1ª) Adota-se o tratamento do inciso I (divisão em quotas iguais entre o companheiro e os descendentes chamados por direito próprio) ou;

2ª) Adota-se o tratamento do inciso II (ao companheiro metade da quota atribuída aos descendentes chamados por direito próprio).

Jamais poderíamos cogitar de solução com base na união dos critérios dos incisos I e II, uma vez que geraria tratamento desigual entre os filhos, contrariando o preceito constitucional disposto no art. 227§6º da CF. Para satisfazer os dois critérios simultaneamente, o companheiro teria de receber quota idêntica a dos filhos comuns e, ao mesmo tempo, esta quota teria de corresponder à metade daquela atribuída aos não comuns. As frações dos filhos comuns e não comuns seriam desiguais, gerando um tratamento, portanto, inconstitucional.

Dentre as duas soluções possíveis, inclino-me por adotar a posição mais favorável ao companheiro, pelos mesmos motivos expostos quando surgiu a mesma controvérsia em relação ao cônjuge (art. 1832 do CC). Se o legislador quis resguardar o cônjuge com a reserva da quota mínima de ¼, por ter contribuído para a construção do patrimônio do de cujus, igualmente deve querer resguardar o companheiro. E resguardar o companheiro, neste caso, seria a partilha por cabeça, em igualdade de condições, para todos aqueles chamados por direito próprio _ tratamento do inciso I. Seria a posição que mais atenua a diferença de tratamento entre cônjuge e companheiro, uma vez que o CC reservou apenas ao cônjuge a quota mínima na hipótese de descendência comum e, até na de descendência não comum, conforme posição adotada neste trabalho, embora não pacificada na doutrina. Seria também uma forma de não agravar a desigualdade gerada ao companheiro, que tem participação na herança do de cujus incidente apenas sobre os bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável (art. 1790, caput), e não sobre toda a herança.

Ascendentes e companheiro (art. 1790, III)

A concorrência do companheiro com os ascendentes está disciplinada no art. 1790, III do CC. Na realidade, a literalidade do inciso fala em concorrência com outros parentes sucessíveis. Mas já está pacificada na doutrina que a vocação desses outros parentes obedece a ordem do art. 1829, em que os ascendentes precedem os colaterais. A concorrência com outros parentes sucessíveis se dá da seguinte forma:

A) Sendo concomitantemente chamados ascendentes e o companheiro, ao último caberá 1/3 da herança, repartindo-se os 2/3 remanescentes entre os ascendentes, segundo as regras que lhe são próprias (partilha por linhas; exclusão dos parentes mais remotos pelos de grau mais próximo, sem distinção de linha; ausência de direito de representação);

B) Não havendo ascendentes, são chamados a suceder os colaterais em concorrência com o companheiro, cabendo ao último 1/3 da herança, repartindo-se os 2/3 remanescentes por cabeça ou por estirpe entre os colaterais do de cujus, podendo haver o direito de representação na hipótese do art. 1840 do CC.

A quarta desigualdade entre a sucessão do companheiro se comparada à do cônjuge se dá quando concorrem com os ascendentes do de cujus. A regra é a mesma para companheiro ou cônjuge que concorrem com ambos os pais do de cujus, ou seja, recebem 1/3 da herança. Mas se houver um único ascendente (independente do grau) ou se houver mais de um ascendente no mesmo grau, sendo este grau superior ao primeiro, metade da herança caberá ao cônjuge. Em relação ao companheiro, o legislador não previu tratamento igual para as mesmas hipóteses, pelo contrário, foi silente ao estabelecer uma regra única, qual seja, concorrendo com outros parentes sucessíveis, terá direito a 1/3 da herança. Este tratamento não isonômico subsiste independentemente da interpretação que se dê à palavra herança (totalidade dos bens do de cujus ou apenas os bens comuns) no inciso III do artigo 1790.

Colaterais e companheiro (art. 1790, III)

A quinta desigualdade entre a sucessão do companheiro se comparada à do cônjuge ocorre em relação ao tratamento conferido aos colaterais do de cujus. Enquanto o cônjuge recebe a integralidade da herança diante a ausência de descendentes e ascendentes sucessíveis, ou seja, configura sozinho na terceira ordem de vocação hereditária, o companheiro ainda terá que concorrer com os colaterais (integrantes da categoria outros parentes sucessíveis), para, somente na ausência deles, herdar sozinho (art. 1790, IV do CC). Isso sem entrar no mérito do absurdo de os colaterais receberem uma quota maior que a do companheiro, sendo que, provavelmente, não contribuíram para a aquisição patrimonial do de cujus na mesma proporção que o companheiro contribuiu.

Ao autorizar a participação dos colaterais em concorrência com o companheiro, atribuindo-lhes a maior parte do patrimônio deixado pelo falecido, o legislador infraconstitucional privilegiou de forma equivocada laços sanguíneos remotos (sendo que muitas vezes tais parentes mal se conhecem, raramente se encontram), em detrimento dos laços de afeto (em relação àquele que manteve comunidade de vida com o falecido), hoje tão valorizados pelo Direito, e, por conseguinte, promoveu uma injustificável discriminação entre cônjuges e companheiros.

Inúmeros autores, além de apontarem as injustiças do atual regime sucessório do companheiro, afirmam mais uma inconstitucionalidade do artigo 1790, que seria o inciso ora em análise, seja pela excessiva valorização do parentesco biológico, seja pela violação a princípios constitucionais.

Abordando o aqui defendido quanto à excessiva valorização do vínculo sanguíneo, a Juíza Maria Luiza Póvoa Cruz (apud, Silva, 2009, p. 34) leciona:

Limitar o direito sucessório dos companheiros aos bens adquiridos a ‘título oneroso’ na vigência da união estável e estabelecer um sistema de fixação das quotas hereditárias em supremacia aos vínculos sanguíneos (colaterais até o 4º grau) é inconstitucional e representa retrocesso, abandonando os direitos que as Leis 8971/94 e 9278/96 haviam concedido aos companheiros.

Companheiro como herdeiro único (art. 1790, IV)

Se, porém, não houver parentes sucessíveis, o companheiro terá direito à totalidade da herança. Conforme defendido alhures, não parece razoável considerarmos a palavra herança utilizada neste inciso como sinônima de bens comuns, tendo os bens particulares do de cujus como vacantes, destinando-os ao ente estatal. De duas possíveis interpretações de um dispositivo acerca da sucessão legítima, há de se dar preferência àquela que maior proteção confira à família (em especial, aos familiares mais próximos, como é o caso).

6.3.CONSTATAÇÕES ACERCA DA ANÁLISE COMPARATIVA DAS SUCESSÕES DO CÔNJUGE E DO COMPANHEIRO

O CC de 2002 modificousensivelmente as regras sucessórias do companheiro para pior, comparativamente às leis 8971/94 e 9278/96.

O art.1790 do CC estabeleceu as regras próprias para o direito à herança do companheiro, distinguindo das regras aplicáveis ao cônjuge.

Suas regras são tão graves que admitindo a formação de uma união estável entre uma mulher e um homem, o qual já possuía um vasto patrimônio adquirido antes da convivência e veio a falecer após quinze anos de relacionamento, não adquirindo bens durante o mesmo, não deixará à companheira sobrevivente nada, uma vez que ela não fará jus à meação (nada fora adquirido) e tampouco à herança (que depende de bens adquiridos a título oneroso).

Ademais o companheiro se encontra em uma posição inferior até mesmo em relação aos colaterais de 4º grau do falecido, já que somente terá direito ao recebimento integral da herança se eles não existirem. Uma situação quase impossível. Exemplificando: se imaginarmos um homem que vem a morrer deixando um sítio que possuía antes de iniciar a união estável e onde residia e retirava o sustento com a sua companheira, com quem dividiu a vida durante mais de trinta anos, não tendo deixado qualquer outro bem, nem deixado descendentes ou ascendentes, tem-se, segundo o CC (art. 1790), que os seus colaterais (imagine-se seus primos) ficarão com o sítio, enquanto que a companheira não fará jus a nada! Esse absurdo precisa ser repelido.

No mesmo sentido a lição de Veloso (apud, Silva, 2009, p. 33)

Na sociedade contemporânea, já estão muito esgarçadas, quando não extintas, as relações de afetividade entre parentes colaterais de 4º grau (primos, tios-avós, sobrinhos-neto). Em muitos casos, sobretudo nas grandes cidades, tais parentes mal se conhecem, raramente se encontram. E o novo Código Civil brasileiro... resolve que o companheiro sobrevivente, que formou uma família, manteve uma comunidade de vida com o falecido, só vai herdar, sozinho, se não existirem descendentes, ascendentes nem colaterais até o 4º grau do de cujus. Temos de convir: isto é demais! Para tornar a situação mais grave e intolerável, conforme a severa restrição do caput do art. 1790..., o que o companheiro sobrevivente vai herdar sozinho não é todo o patrimônio deixado pelo de cujus, mas, apenas, o que foi adquirido na constância da união estável.

Ao contrário do cônjuge, que recebe o status de herdeiro necessário, a regulamentação da sucessão para o companheiro sobrevivente deixa brechas para que possa ser afastado da sucessão por testamento, sem necessidade de qualquer justificação, assim como ocorre com os colaterais.

Por tudo isso resta declarar a inconstitucionalidade do art. 1790 do CC, valorizando a relação afetiva, conforme a proteção da família consagrada no art. 226 da CF, e defendendo os princípios da igualdade (sucessória entre cônjuge e companheiro) e da proibição do retrocesso social, concretizando assim o princípio da justiça, acimentado no art. 3º, I da CF.

Enquanto não declarada a inconstitucionalidade, exige-se do jurista uma interpretação conforme a Constituição, cobrando dos tribunais uma pronta atuação, corrigindo o grave equívoco cometido pelo legislador de 2002. Em sede jurisprudencial já é possível encontrar precedentes relevantes, acolhendo a prevalência da norma constitucional:

Sucessão – União estável – Inconstitucionalidade do art. 1790 do CC diante do tratamento dado à sucessão entre companheiros no novo Código Civil. Na medida em que a nova lei substantiva rebaixou o status hereditário do companheiro sobrevivente em relação ao cônjuge supérstite, violou os princípios fundamentais da igualdade e da dignidade. (TJ/RS, Ac.unân. 8ª Câm Cív., Ag Instr. 70009524612, rel. Des. Rui Portanova, j.18.11.04).

Assuntos relacionados
Sobre a autora
Karen Hellen Esteves de Avelar

Bacharel em Direito pela UFJF, Delegada de Polícia e pós-graduada em Direito Público Material pela Universidade Gama Filho/RJ.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AVELAR, Karen Hellen Esteves. A análise sistemática da sucessão do cônjuge e do companheiro na perspectiva civil-constitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2941, 21 jul. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19594. Acesso em: 17 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos