8 O CUSTEIO DA MÁQUINA
No que tange à manutenção financeira, advém, eminentemente, da contribuição dos Estados-membros. Frequentemente as cotizações são desiguais, considerada a capacidade contributiva de cada membro. Na Organização das Nações Unidas, por exemplo, estabeleceu-se o teto para a cota individual em 22% da receita total, objetivando-se evitar excessiva influência de um único membro, nomeadamente os Estados Unidos.
9 E AS IDIOSSINCRASIAS?
As organizações internacionais podem incorporar uma diversidade de características e, por isso mesmo, devem ser classificadas conforme as especificidades. Nessa esteira, fala-se nas organizações de alcance universal e domínio político, abertas à participação de Estados e vocacionadas, prioritariamente, à preservação da paz e da segurança (sendo o caso da ONU), como nas organizações de alcance universal e domínio específico, voltadas para uma atuação temática especializada. [06]
Existem as organizações de envergadura regional e domínio político, caracterizadas pela exclusiva participação de membros de uma limitada região, sendo a situação da Organização dos Estados Americanos – OEA (1951), da Liga dos Estados Árabes – LEA (1945) e da Organização da Unidade Africana – OUA (1963), e de alcance regional e domínio específico, das quais fazem parte as organizações regionais de cooperação e integração econômica, a exemplo da União Européia (1992).
Uma outra classificação fala na presença de organizações intergovernamentais, supranacionais e não governamentais. Nas intergovernamentais os Estados são os atores basilares, vez que seus representantes ocupam os órgãos deliberativos e ditam a política da instituição. Nesta espécie, preserva-se, ao máximo, a soberania interna. Em regra, suas decisões são tomadas por unanimidade ou maioria qualificada. As organizações supranacionais são as advindas do processo de aprofundamento das integrações regionais e pressupõem que os Estados constituintes aceitem se submeter às decisões das entidades supranacionais. Suas decisões são frequentemente tomadas por maioria e as deliberações dos órgãos legislativos e judiciais são diretamente impostas aos Estados membros. Celso Mello (1996, p. 114) sumaria as características das supranacionais da seguinte forma: "Os Estados abdicam, em favor delas, de suas competências (soberania), em sentido mais amplo do que nas organizações internacionais de modelo clássico".
As organizações internacionais não governamentais (ONG) são rebentos de vontades particulares, subsistentes à presença ou ausência de órgãos públicos. Segundo Valeiro de Oliveira Mazzuoli (2005, p. 126-127), não seriam sujeitos de direito internacional. Estruturas como a Cruz Vermelha e a Anistia Internacional estariam submetidas a normas jurídicas internas e não poderiam celebrar tratados.
A depender do autor, as organizações podem ser dispostas ou chamadas ainda de gerais ou especiais, parauniversais, regionais ou quase regionais, de cooperação ou integração, organizações que não admitem a entrada de mais nenhum membro e as abertas a novos ingressos, organizações que se pretendem permanentes e as destinadas a uma vigência limitada (vinculadas a determinadas circunstâncias) et coetera.
10 ENTRAVES À EFETIVIDADE
Ainda que não restem dúvidas da responsabilidade decorrente do não cumprimento dos deveres como membro, consistente na aplicação de sanções, sejam representadas pela suspensão de determinados direitos ou exclusão da organização, [07] as regras promanadas das organizações são largamente afrontadas e frequentemente utilizadas egoisticamente.
O direito das organizações é, factualmente, construído pelos e destinado aos Estados soberanos. Isso implica reconhecer que, entre iguais, resta dificultada a tarefa de aplicar as regras, maiormente quando impositivas de sanções: é que não se costuma assumir erros e compensar danos. Giorgio Del Vecchio (1979, p. 503-504) traça considerações pertinentes:
A dificuldade de conciliar a característica do Estado que consiste em fazer depender dele próprio todas as manifestações da sua vontade, com as características de uma sociedade de Estados com poderes vinculados em frente dos seus componentes, constitui o maior problema do Direito Internacional. E não é exagerado falar aqui numa crise do conceito de soberania como surgido precisamente em virtude do problema abordado, no que respeita às bases do sistema jurídico em geral.
O desiderato das organizações internacionais encontra-se tão dificultado que alguns estudiosos convencionaram chamar o seu direito de um soft law, ou seja, não cogente, não exigível, simplesmente propugnante. Lidando-se com as vicissitudes, registrem-se as palavras de Celso Mello (1996, p. 100-101):
[...] As organizações internacionais não dispõem de um poder efetivo, à semelhança de que têm os Estados para incorporar as suas decisões. Os Estados ainda possuem uma grande esfera de liberdade para cumprir ou não as decisões de acordo com as suas conveniências políticas [...].
As organizações deixam inteira liberdade aos seus membros para a execução de suas decisões, isto significa que elas não dispõem de meios efetivos para impô-las. Os meios que possuem são, na maioria das vezes, de relativo valor político, vez que se resumem, quase sempre, em censuras. Ou ainda, podem chegar à expulsão do Estado membro, que é uma medida que se evita aplicar, porque ela elimina o Estado do controle da organização e ele passa a ter juridicamente maior liberdade de ação. Nas organizações econômicas o meio de se obrigar o Estado autor da violação a cessar com ela é a ‘não participação’, isto é, ele deixa de se beneficiar dos programas desenvolvidos pelas organizações. Por outro lado, para estas organizações é mais importante que cesse a violação do que a aplicação de uma sanção.
Todavia, sem assombro, deve-se reconhecer a pujança das organizações internacionais. Como dito por Celso Mello (p. 600-601), elas são superestruturas da sociedade internacional, ao tempo que são o produto das relações internacionais, constroem essas mesmas relações, seja influindo nas decisões estatais, engendrando meios de controle de conflitos, favorecendo a comunicação entre Estados, constituindo mecanismos de tomada de decisão, confluindo para a segurança dos Estados, para a proteção dos direitos humanos, legitimando ações e situações, internacionalizando questões e podendo limitar o poder dos grandes. [08]
A importância das organizações é tão destacada que inspira autores como Alberto do Amaral Júnior (2008, p. 169) a dissertar que elas "moldam uma espécie de constitucionalismo mundial, composto por regras e princípios que balizam o comportamento dos Estados". Dinh, Daillier e Pellet (2003, p. 71) realçam que, apesar de recuos temporários, há uma tendência de fortalecimento das organizações, patente que "as crises e as tensões da sociedade internacional, ao demonstrarem as insuficiências da cooperação interestatal, obrigam a reforçar a rede das organizações e a confiar-lhes a solução de problemas cada vez mais agudos".
As organizações internacionais, surgidas para conciliar os interesses dos atores globais, evitando as guerras ou, em outras e melhores palavras, disseminando a paz, e, por conseguinte, promovendo desenvolvimento, o mais alargado, nas expressões de Hans Küng e Amartya Sen, exigem, em verdade, como pressuposto para a efetivação de desígnios, um voluntário e digno comprometimento dos seus compositores que, embora distante, prevalecente o individualismo insano, deve ser incansável e maiormente buscado.
REFERÊNCIAS
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Notas
-
A propósito, veja-se: "Numa
conferência realizada há dois anos em Genebra, notava com razão o Sr.
Hammarskjöld que todos os esforços até hoje desenvolvidos para a
organização do mundo giram em torno de dois pólos opostos: a comunhão dos
interesses e o conflito dos interesses. O trabalho da civilização tende, por
um lado, a confederar os interesses comuns; é a obra das uniões internacionais
– correios e telégrafos, caminhos de ferro, marcas de fábrica, etc. –; por
outro lado, tomo como objetivo a solução pacífica das lides entre
Estados" (PESSOA, 1960, p. 4).
- Guido Fernando Silva Soares usa o termo "intergovernamentais" para realçar a existência das não governamentais – ONG.
- Quanto à capacidade de celebrar tratados, perdura o dissenso. A Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados entre Estados e Organizações Internacionais e entre Organizações Internacionais (1986) reconhece a possibilidade e atribui ao direito interno de cada organização a competência para estabelecer as condições de seu exercício. O Brasil, nos termos de parecer da Consultoria Jurídica do Ministério das Relações Exteriores, lavrado por A. A. Cançado Trindade em 1986, compartilha do entendimento expresso na Convenção.
- Celso Mello (2002, p. 589) enumera uma série de poderes das organizações, citem-se: concluir tratados; enviar e receber representantes diplomáticos; organizar o seu funcionamento interno; ter privilégios e imunidades; promover e participar de conferências; apresentar reclamações; ser depositário de tratados; participar de arbitragem; operar navios e aeronaves com sua bandeira.
- Leia-se: "A Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados entre Estados e Organizações Internacionais e entre Organizações Internacionais de 1986 é um instrumento jurídico de grande atualidade e utilidade prática no cotidiano da prática do diplomata. Ainda que a Convenção não esteja em vigência, é fundamental o conhecimento doutrinário e teórico do instrumento em função da grande interação entre chancelarias – representantes dos Estados – e organizações internacionais.
- A exclusão de um Estado costuma ser a sanção mais expressiva imposta a um transgressor dos princípios fundamentais da organização. Quanto a outras, leia-se: "Sanções, menos radicais, estão igualmente previstas, segundo uma gama ascendente destinada a fazer pressão sobre o Estado em causa e a retardar o momento em que, pela expulsão, ele possa escapar a qualquer possibilidade de sanção efectiva. Estas sanções poderão ser a suspensão de direitos e privilégios inerentes à qualidade de membro, a suspensão do direito de voto em certos órgãos".
- Para Luis Ivani de Amorim Araújo (2003, p. 255), a presença das organizações internacionais é a prova mais eloqüente da própria existência do direito internacional.
[...] Apesar das dificuldades para a entrada em vigência do instrumento, a construção da Convenção fundamentada em muitos princípios costumeiros de direito internacional faz com que ela se torne presente em muitos tratados entre Estados e organismos internacionais mesmo que não haja expressa menção. A presença de fato retoma a sua importância e atualidade no âmbito das relações internacionais" (BERNARDES; CHADID; CARNEIRO, 2003, p. 198-199).
Interessante a observação de Francisco Rezek (2008, p. 265): "Nesta categoria inscrevem-se as chamadas ‘agências especializadas’ da ONU, que na realidade são organizações internacionais distintas, dotada cada uma delas de personalidade jurídica própria em direito das gentes. Sua gravitação em torno das Nações Unidas resulta de uma circunstância de fato: os Estados-membros são praticamente os mesmos, e não há inconveniente em que, reunidos no foro principal, que é a ONU, ali estabeleçam diretrizes de ação para as organizações especializadas".