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O dano extrapatrimonial contratual no âmbito das relações de consumo

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5. O Dano Extrapatrimonial

As relações havidas entre as pessoas em sociedade se desenvolvem em um ambiente que poderíamos denominar de regulado, o que significa dizer que tais relações são reguladas ou norteadas por normas ou regras de caráter obrigatório, as quais denominamos de jurídicas ou legais.

Aos direitos outorgados pelo ordenamento jurídico à determinada pessoa que se encontra em certa situação fática correspondem correlatos deveres (v. g. em regra, ao direito de contratar escolhendo o tipo e o parceiro contratuais corresponde o dever de cumprir o conteúdo do que vier a ser contratado). Enfim, inúmeros exemplos poderiam ser dados.

Nesse contexto, portanto, o descumprimento de um dever jurídico provoca um abalo na ordem jurídica, pouco importando se desse fato decorrem perdas materiais ou morais em face de determinado sujeito.

Portanto, pode-se dizer que o descumprimento de um dever jurídico significa a lesão a um direito, direito esse outorgado pelo ordenamento jurídico a uma pessoa ou grupo de pessoas, os quais poderemos denominar de titulares.

Nesses casos, a ocorrência de qualquer fato ilícito provoca uma lesão ou violação a um interesse juridicamente protegido, o qual poderemos denominar de bem jurídico imaterial, haja vista não possuir existência concreta.

E, para nós, é justamente esse o conceito de dano extrapatrimonial: a lesão ou violação a um interesse juridicamente protegido, independentemente de qualquer repercussão na esfera íntima do lesado.

Para a ocorrência do dano extrapatrimonial basta a violação de um direito ou lesão de um interesse juridicamente protegido.

Com efeito, ousamos propor um novo enfoque do que seja dano: a lesão a um interesse juridicamente protegido. O dano extrapatrimonial passa a ter somente um caráter normativo. A lei tutela interesses que quando violados ou frustrados representam uma das mais graves infrações à ordem jurídica.

Eis o que doutrina o ilustre professor paranaense João Casillo: "Na legislação brasileira, ao contrário de outras, apesar de encontrarem-se inúmeras referências ao dano em diversos textos legais, nenhum deles o conceitua, aliás seguindo orientação predominante de que as definições devem ficar para a doutrina.

Entretanto, no Código Civil brasileiro há pelo menos dois textos que permitem deduzir qual o âmbito abrangido pelo vocábulo.

Outros dispositivos poderiam ser citados, mas os arts. 159 de 178, § 10, IX, principalmente por estarem localizados na Parte Geral do Código, já são suficientes para demonstrar que, no texto legal, cabe, sem qualquer dificuldade ou embaraço, o conceito amplo e moderno de dano.

Assim, leia-se, primeiramente, o art. 159 do CC brasileiro: "Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano (grifo nosso).

O Código indica como dano reparável, isto é, indenizável, aquele decorrente de prejuízo causado ou direito violado. Pretendesse o legislador vincular a noção de dano apenas às hipóteses onde houvesse prejuízo no sentido de diminuição patrimonial, não teria incluído a expressão violar direito. Bastaria dizer que aquele que causasse prejuízo ficaria obrigado a repará-lo.

Fosse ainda intenção do legislador dizer que dano indenizável seria somente aquele através do qual a violação do direito acarretasse prejuízo, outra seria a redação, substituindo-se a conjunção alternativa ou pelo conectivo com, como, por exemplo, violar direito com prejuízo ou ainda, violar direito causando prejuízo.

Ao invés, o texto é muito claro. o direito à indenização nasce quando seja causado o prejuízo ou simplesmente violado o direito. É verdade que outros códigos são mais diretos em sua redação, ao se referirem ao dano moral, mas pecam pela falta de tecnicidade, ao empregar esta expressão, que é espécie do gênero dano não patrimonial.

Basta a violação, a ofensa ao direito, para que a proteção jurídica referente à reparação imediatamente nasça, independentemente de outra cogitação. Bem demonstrado o alcance do art. 159 do CC, o 1º TACivSP, em acórdão que foi Relator o Juiz Ferraz Nogueira, na 2ª Câm. Esp., ao apreciar o pedido de indenização por dano extrapatrimonial formulado pelos pais em virtude de morte do filho, fixou que "não é a morte que legitima o interesse, mas sim o sofrimento real e injusto, em consonância com os arts. 159 do CC e 3º do CPC, dispositivos estes, que afastam qualquer limite ao dever de indenizar o dano inescusável"."(87)

Como conseqüência da nova categoria de danos que defendemos - os extrapatrimoniais -, todas as vezes que ocorrer a violação de um direito ou interesse juridicamente protegido ficará o lesante obrigado a indenizar o lesado. Está indenização possuirá apenas caráter punitivo, e terá como primordial função inibir ou coibir a prática ou a ocorrência de quaisquer ilícitos futuros.

Tal premissa, segundo entendemos, encontra suporte no inciso XXXV, do artigo 5º, da Constituição Federal, verbis: "XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;" (Grifamos)

O dispositivo em tela possui nítido caráter preventivo, dado estabelecer que a intervenção judicial se dará nos casos em que ocorrer lesão ou ameaça a direito.

Logo, conclui-se que o sistema constitucional pátrio não outorga proteção às vítimas apenas nos casos em que ocorrer dano. Ao revés, o inciso XXXV, do artigo 5º, da Constituição Federal procura justamente inibir a sua ocorrência.

Portanto, não exige a Constituição Federal que somente haverá indenização em caso de dano, bastando para tanto, segundo entendemos, a simples lesão ou ameaça.

Em que pese o entendimento da doutrina civilista tradicional que vincula a idéia de indenização à ocorrência de dano, o que por vezes até impedia a correta definição do denominado dano moral, ousamos dela discordar, com supedâneo no texto constitucional.

Com efeito, nenhum dos insignes mestres do direito civil jamais analisou o tema da responsabilidade civil sob o viés constitucional, mas apenas sob o ângulo da legislação infraconstitucional, o que entendemos ser incorreto.

Entendemos, pois, que os doutrinadores que ainda estão a defender somente existir a obrigação de indenizar quando ocorrer dano (material ou moral) encontram-se, na atualidade, equivocados.

Um simples exemplo demonstrará a utilidade da teoria do dano extrapatrimonial como fator de inibição e punição de condutas anti-jurídicas: um determinado consumidor recebe em casa a cobrança de um produto ou serviço que não solicitou. Como nada tem a ver com aquilo, não se importa com a cobrança por entender que houve um equívoco. Passadas algumas semanas, é surpreendido com o recebimento de uma Aviso de Protesto, referente à indevida cobrança: deverá pagar a quantia nele descrita em tantas horas sob pena de vir a ser protestado. A ocorrência de tal situação é bastante comum.

Em face da doutrina tradicional que vincula a idéia de indenização à ocorrência de dano, se o consumidor que foi indevidamente cobrado conseguir obter a sustação judicial do protesto indicado no exemplo, comprovando depois que o mesmo era indevido, apenas conseguirá desconstituir o título ou obter a declaração de inexigibilidade da cobrança. Nenhuma punição sofrerá o fornecedor que enviou ao consumidor cobrança que sabia ou deveria saber ser indevida.

Ora, tal situação se apresenta completamente injusta, pois transfere à vítima o ônus de impugnar a cobrança indevida, sem que o fornecedor sofra qualquer punição.

Todavia, adotando-se a doutrina do dano extrapatrimonial para a solução do exemplo dado, todas as vezes que o fornecedor enviar ao consumidor cobrança indevida deverá indenizá-lo em razão da simples prática de um fato ilícito, no caso a violação ao princípio da boa-fé objetivamente considerada.

Destarte, ante o exemplo indicado, violado o princípio da boa-fé surge ao ofensor a obrigação de indenizar o lesado, indenização essa que possuirá apenas caráter punitivo, intimidatório, inibitório, pois buscará evitar que casos análogos ocorram.

O eixo da responsabilidade civil se transfere do dano para a conduta ofensiva ou lesiva, o que, segundo entendemos, transformar-se-á numa das mais importantes formas de controle social: ocorrida um conduta ofensiva ou lesiva a ordem jurídica surgirá ao ofensor a obrigação de indenizar a vítima de tal postura, possuindo tal indenização contornos punitivos.

5.1. Distinção com o Dano Moral

Segundo a doutrina do insigne mestre Wilson Mello da Silva, "Danos morais, pois, seriam, exemplificadamente, os decorrentes das ofensas à honra, ao decoro, à paz interior de cada qual, às crenças íntimas, aos sentimentos afetivos de qualquer espécie, à liberdade, à vida, à integridade corporal."(88)

De início já se pode perceber a nítida diferença entre os denominados danos morais e os extrapatrimoniais: os primeiros repercutem nos chamados direitos da personalidade, ou na esfera íntima das pessoas: sentimentos, dor, angústia, aflição, medo etc.. Ao segundo, porém, apenas importa a ocorrência de um ato ou fato violador ou lesivo a um direito ou interesse juridicamente protegido, mesmo inexistindo qualquer reflexo nos direitos da personalidade ou na esfera íntima da vítima.

Enquanto a indenização por dano moral possui, segundo entendemos, caráter compensatório, o qual visará mitigar ou compensar a dor sofrida em conseqüência de determinado fato ilícito, a indenização relativa aos danos extrapatrimoniais, ao revés, possuirá apenas caráter punitivo, intimidatório ou inibitório da prática de futuras agressões.

A adoção de tais distinções permitirá ao magistrado calibrar melhor a indenização no caso concreto, permitindo sejam visualizados os aspectos punitivos e compensatórios das verbas indenizatórias, evitando-se, assim, que sejam fixadas pífias indenizações que não atingem os seus reais objetivos: punir o ofensor e compensar a dor ou transtorno sofrido.

Por vezes, no caso concreto, ambas as indenizações poderão concorrer. Nesses caso, a indenização por dano moral será um plus em relação a fixada com fulcro na doutrina do dano extrapatrimonial. Se além da violação ou lesão da ordem jurídica também ocorrer o ataque a um dos direitos da personalidade ou a esfera íntima do indivíduo, o que será observado pelo magistrado no caso concreto, ambas as indenizações poderão coexistir.

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Em casos que tais, como ambas as indenizações possuem natureza jurídica diversa, uma punitiva, outra compensatória, nenhum risco de ocorrência de bis in idem existirá.

Por fim, podemos indicar a título exemplificativo que a adoção da doutrina do dano extrapatrimonial colocará um ponto final à discussão até hoje travada em doutrina, muito embora a mesma esteja praticamente superada, se as pessoas jurídicas podem ou não sofrer dano moral. Entendido o dano extrapatrimonial como a lesão que repercute apenas na esfera jurídica do lesado, nenhuma dificuldade haverá em aceitar-se as pessoas jurídicas como vítimas de danos extrapatrimoniais.

5.2. A Desnecessidade da Comprovação de Prejuízo

Em decorrência da sua própria natureza, a existência de dano extrapatrimonial independe de prova, pois o mesmo decorre da simples prática de um ato violador de direito ou de interesse juridicamente protegido.

Nesse aspecto, ambas as espécies de danos (moral e extrapatrimonial) possuem caracteres semelhantes: independem da prova da ocorrência de efetivo prejuízo.

Destarte, como bem ensina o saudoso jurista Carlos Alberto Bittar, o dano existe no próprio fato violador de direito: "Na concepção moderna da teoria da reparação de danos morais prevalece, de início, a orientação de que a responsabilização do agente se opera por força do simples fato da violação. Com isso, verificado o evento danoso, surge, ipso facto, a necessidade de reparação, uma vez presentes os pressupostos de direito. Dessa ponderação, emergem duas conseqüências práticas de extraordinária repercussão em favor do lesado: uma, é a dispensa da análise da subjetividade do agente; outra, a desnecessidade de prova de prejuízo em concreto.

Nesse sentido, ocorrido o fato gerador e identificadas as situações dos envolvidos, segue-se a constatação do alcance do dano produzido, caracterizando-se o de cunho moral pela simples violação da esfera jurídica, afetiva ou moral, do lesado. Ora, essa verificação é suscetível de fazer-se diante da própria realidade fática, pois, como respeita à essencialidade humana, constitui fenômeno perceptível por qualquer homem normal: por exemplo, a dor pela morte de um filho sofrida pela mãe; a desonra de que é vitimada pessoa honesta; a angústia de quem vê privada de seu nome a divulgação de obra estética que criou, e assim por diante."(89)

Em outro tópico de sua obra, acrescenta o respeitado jurista: "Satisfaz-se, pois, a ordem jurídica com a simples causação, não cabendo perquirir-se da intenção do agente, análise, aliás, nem sempre necessária no próprio sistema de determinação de responsabilidade. De fato, como já assinalamos, há situações em que se prescinde dessa investigação, ou seja, aquelas em que se reconhece a objetividade da conduta lesiva como elemento bastante. Desse modo, nos casos em que se exige essa perquirição (responsabilização por atos ilícitos no regime codificado), tem-se que abrange apenas o fato produtor do dano e não o reflexo correspondente. Não se cura, portanto, de verificar se estava, ou não, na cogitação do agente a realização do reflexo lesivo produzido. Assim, uma vez constatada a esfera do lesado, surge a obrigação de reparar o dano para o agente, como, por exemplo, na não divulgação do nome do titular de obra intelectual estética (música, poesia, romance ou outra) em uso público, na divulgação de fato desonroso, não correspondente à realidade, contra pessoa notória, a assim por diante.

O dano existe no próprio fato violador, impondo a necessidade de resposta, que na reparação se efetiva. Surge ex facto, ao atingir a esfera do lesado, provocando-lhe as reações negativas já apontadas. Nesse sentido é que se fala em dano in re ipsa.

Ora, trata-se de presunção absoluta, ou iures et de iure, como a qualifica a doutrina. Dispensa, portanto, prova em concreto. Com efeito, corolário da orientação traçada é o entendimento de que não há que se cogitar de prova de dano moral. Não cabe ao lesado, pois, fazer a demonstração de que sofreu, realmente, o dano moral alegado."(90)

O mesmo ocorre no Direito Argentino, segundo o escólio do jurista Ramon Daniel Pizarro: ""Para probar el daño moral en su existencia y entidad no es necesario aportar prueba directa, sino que el juez deberá apreciar las circunstancias del hecho y las cualidades morales de la víctima para estabelecer objetiva y presuntivamente el agravio moral en la órbita reservada de la intimidad del sujeto pasivo. No creemos que el agravio moral debe ser objeto de prueba directa, pues ello resulta absolutamente imposible por la índole del mismo que reside en lo más íntimo de la personalidad, aunque se manifiesta a veces por signos exteriores que pueden no ser su auténtica expresión.""

"A partir de la acreditación del evento lesivo y del carácter de legitimado activo del actor, puede operar la prueba de indicios o la prueba presuncional, e inferirse la existencia del daño moral."(91)

Conclui-se, portanto, que a existência de dano extrapatrimonial encontra-se vinculada apenas à ocorrência de ato ou fato anti-jurídico.

5.3. O Dano Extrapatrimonial por Violação ao Princípio da Boa-Fé, em Decorrência da Imposição de Cláusulas Abusivas

Não raro, encontramos nos contratos de massa de consumo um sem-número de cláusulas contratuais iníquas, que colocam o consumidor em desvantagem exagerada e que são contrárias a boa-fé. Tais cláusulas, como já dissemos, são denominadas pelo Código de Defesa do Consumidor de abusivas.

Com efeito, os próprios fornecedores inserem ditas cláusulas nos instrumentos contratuais pois objetivam garantir e fazer prevalecer a sua posição técnica e economicamente mais vantajosa no mercado.

De outro lado, pode também ocorrer que a inserção de cláusulas abusivas não ocorra em virtude da má-fé do fornecedor, mas, sim, da sua ignorância ou desconhecimento dos limites impostos pelo ordenamento jurídico à contratação. Muitas vezes os fornecedores podem não ter tido acesso à assessoria jurídica adequada, o que explica em parte a existência de cláusulas abusivas em alguns instrumentos contratuais.

Todavia, em face do Código de Defesa do Cosnumidor tal ignorância ou ausência de competência do advogado do fornecedor pouco importa: adota a legislação em comento a teoria do risco do negócio, a qual transfere aos fornecedores todos os riscos da exploração da atividade econômica no mercado.

Diante disso, e tendo em vista as premissas defendidas neste trabalho, basta a ocorrência de dano extrapatrimonial no âmbito dos contratos de consumo a simples inserção de cláusulas abusivas nos instrumentos contratuais, haja vista que a existência de ditas cláusulas viola o princípio da boa-fé objetiva.

Na base do conjunto de princípios e em razão da influência do aspecto moral, encontra-se o princípio da boa-fé, segundo o qual as partes devem pautar a sua atuação em consonância com a lealdade e com a confiança recíprocas que a vida de relações impõe. Cumpre a cada qual respeitar a posição do outro contratante e operar com fidelidade e com probidade, a fim de que alcance os objetivos pretendidos com o contrato, agindo consoante padrões éticos normais à contratação pretendida.(92)

Presente tanto na formação, na conclusão e na execução, o princípio impregna de moralidade a atividade negocial, na defesa de valores básicos da convivência humana e de direitos ínsitos na personalidade. Com isso, o comportamento da parte deve, em todos os diferentes momentos do relacionamento, desde a aproximação à consecução de todas as obrigações, estar imbuído de espírito de lealdade, respeitando cada um o outro contratante e procurando, com a sua ação, corresponder às expectativas e aos interesses do outro contratante. Fidelidade à palavra, lealdade no tratamento e cumprimento adequado das obrigações, consoante padrões normais à contratação a que se vincula, são, pois, noções componentes do princípio em questão, que encontra, ademais, consagração legislativa em vários pontos das codificações, inclusive a nossa, que em diferentes situações protege especialmente a parte que, em sua ação, o obedece (como, dentre outros, nos casos de aquisição de boa-fé, atuação, por outrem, de boa-fé; posse de boa-fé).(93)

É, em verdade, princípio cardeal do sistema jurídico romano-cristão, cuja base ética é realçada na doutrina, exatamente em razão de concepções ideológicas relacionadas à própria natureza humana, donde se extrai, no fundo, o direito aplicável a cada civilização, em consonância, substancialmente, com a alma da coletividade e, formalmente, à regra da maioria para a sagração.(94)

Em decorrência desse princípio, são reconhecidos deveres correlatos ou laterais em todas as espécies contratuais, que se incorporam às relações negociais, exigindo aos contratantes comportamentos adequados, principalmente em vínculos que se estendem no tempo.(95)

A primeira função do princípio da boa-fé objetiva na nova concepção do contrato, diz respeito aos chamadosdeveres anexos ou secundários.

A segunda função, ou seja, a boa-fé objetiva atuando como limitadora do exercício abusivo dos direitos subjetivos, é de extrema valia no âmbito da teoria contratual moderna, uma vez que, com o desaparecimento cada dia maior da liberdade de contratar para a parte débil da relação contratual, a parte economicamente mais forte exerce abusivamente o seu direito subjetivo de contratar.

A boa-fé objetiva exerce importantíssima função, como bem escreveu a professora Cláudia Lima Marques(96): "Efetivamente, o princípio da boa-fé objetiva na formação e na execução das obrigações possui uma dupla função na nova teoria contratual: 1) como fonte de novos deveres anexos, e 2) como causa limitadora do exercício, antes lícito, hoje abusivo, dos direitos subjetivos."

Segundo o gênio alemão de Karl Larenz(97): "El principio de la "buena fe" significa que cada uno debe guardar "fidelidad" a la palabra dada y no defraudar la confianza o abusar de ella, ya que ésta forma la base indispensable de todas las relaciones humanas; suppone el conducirse como cabía esperar de cuantos con pensamiento honrado intervienen en el tráfico como contratantes o participado en él en virtud de otros vínculos jurídicos. Se trata, por lo tanto, de un módulo "necesitado de concreción" que únicamente nos indica la dirección en que hemos de buscar la contestación a la cuestión de cuál sea la conducta exigible en determinadas circunstancias. No nos da una regra apta para ser simplemente "aplicada" a cada caso particular y para leer en ella la solución del caso cuando concurran determinados presupuestos. Sino que en cada supuesto se exige un juicio valorativo del cual deriva lo que el momento y el lugar exijan. Pero este juicio no se obtiene a través del criterio subjetivo del que hace la apreciación en caso de litígio, por conseguinte, del juez, sino que se tomará como módulo el pensamiento de un intérprete justo y equitativo, es decir, que la sentencia ha de ajustarse a las exigencias generalmente vigentes de la justicia, al criterio reflejado en la conciencia jurídica del pueblo o en el sector social al que correspondan los participantes (p. ej., comerciantes, artesanos, agricultores), en tanto ello no sea contrario a las exigencias y al contenido objetivo de los valores descritos en las palabras "fidelidad" y "crédito" (es decir, confianza). A este juicio cooperan los usos y concepciones ya existentes en el tráfico – habiendo de investigarse a su vez si coinciden con aquellas supremas exigencias – y de otra parte el ejemplo y modelo que la jurisprudencia ofrece en la valoración de casos análogos o equiparables."

Nesse contexto, é certo, pois, que a boa-fé objetiva visa limitar o abuso, atuando como limitadora do exercício abusivo dos direitos subjetivos(98), (99), porque ela significa "uma atuação ‘refletida’, uma atuação refletindo, pensando no outro, no parceiro contratual, respeitando-o, respeitando seus interesses legítimos, suas expectativas razoáveis, seus direitos, agindo com lealdade, sem abuso, sem obstrução, sem causar lesão ou desvantagem excessiva, cooperando para atingir o bom fim das obrigações: o cumprimento do objetivo contratual e a realização dos interesses das partes."(100)

Ao inserir o fornecedor nos contratos de consumo quaisquer cláusulas abusivas, estejam elas previamente enumeradas no Código de Defesa do Consumidor ou venham a ser desconstituídas judicialmente, terá de indenizar o consumidor por dano extrapatrimonial, em virtude da postura adotada em desconformidade à boa-fé objetiva.

A indenização por dano extrapatrimonial, em virtude do seu caráter punitivo e inibitório da ocorrência de fatos ilícitos, segundo entendemos, será o meio mais eficiente de se evitar que os fornecedores continuem a inserir nos contratos de consumo, máxime nos contratos de adesão, um número incomensurável de cláusulas abusivas, as quais sempre acarretam danosas conseqüências aos consumidores: a perda de um bem que entendiam estar segurado, a cobrança de encargos indevidos num contrato de mútuo, as cláusulas de renúncia de direitos, a qual desestimula os mais humildes a discuti-la judicialmente, provocando o perecimento do seu direito, dentre outros inúmeros exemplos que poderiam aqui ter sido enumerados.

Portanto, como visto, entendemos que a adoção da doutrina do dano extrapatrimonial funcionará como uma das melhores formas de controle social, a fim de evitar que os instrumentos contratuais permaneçam repletos de cláusulas abusivas, obrigando os consumidores a ingressar em juízo para discutir a validade de tais cláusulas, o quem em muitas ocasiões se torna praticamente impossível, mormente quando nos deparamos com consumidores mais humildes, que sequer conhecem a Justiça, tampouco têm acesso à advogados para salvaguardar os seus interesses. O dano extrapatrimonial servirá como uma política de inclusão social, pois inibirá que alguns fornecedores permaneçam abusando dos consumidores em geral, especialmente dos mais humildes.

Inserida cláusula abusiva em um contrato de consumo, caberá ao fornecedor a obrigação de indenizar o consumidor por ofensa ao princípio da boa-fé objetiva, tendo em vista as premissas em que se assenta a teoria do dano extrapatrimonial.

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Sobre o autor
Alessandro Schirrmeister Segalla

advogado em São Paulo , especialista em Direito das Relações de Consumo com Extensão em Direito Processual Civil pela PUC-SP, Aluno Especial do Programa de Mestrado em Direito da USP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SEGALLA, Alessandro Schirrmeister. O dano extrapatrimonial contratual no âmbito das relações de consumo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 50, 1 abr. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2008. Acesso em: 23 abr. 2024.

Mais informações

Texto adaptado de trabalho apresentado como exigência parcial para a obtenção do título de Especialista em Direito das Relações de Consumo perante a PUC/SP. Agradecimentos: Professor Luiz Antonio de Souza, da PUC/SP e Exmo. Sr. Min. José Augusto Delgado, do Superior Tribunal de Justiça

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