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A incidência do art. 186 do Código Civil Brasileiro no abandono afetivo dos pais: é possível?

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VI – PRINCÍPIO DO VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM.

Antes de entrar, necessariamente, no estudo deste princípio é de bom alvitre tecer alguns comentários sobre o princípio da boa-fé objetiva que, outrossim, deve ser aplicado ao direito de família. Veja-se: A boa-fé objetiva impõe um padrão de conduta de modo que um ser humano deve agir com retidão, honestidade e lealdade nos padrões do homem médio.

Os pais que entregam ao relento seus próprios filhos agem com retidão, e como um homem mediano agiria? Não, pois há uma quebra de duas funções inerentes à boa-fé objetiva, são elas:

a - Função Criadora de Deveres Anexos: É o dever que os pais têm de agir com cuidado e com transparência em relação aos filhos.

b – Função Integrativa: Os pais abusam do direito que possuem no que tange à prole, vilipendiando a confiança e, como conseqüência, privando os filhos da sua companhia.

De plano, a boa-fé objetiva é aplicável nas relações contratuais, porém como o Código Civil, reformado em 2002, está preocupado com o ser e o fundamento jurídico da função social é a dignidade da pessoa humana, não vejo óbice à sua aplicação nas relações parentais.

Assim, como conseqüência deve ser utilizado o princípio da proibição do comportamento contraditório, em razão da quebra de confiança, nas relações de família. Explico: O pai ou a mãe geram uma expectativa nos filhos que vão cuidar, educar e conviver com eles, porém, sem respeitar o critério do homem médio, abandonam o infante, acarretando uma mudança de comportamento, diante da contradição.

Dessar’t, a indenização, igualmente, é viável em consonância com o art. 186 do CCB.


VII – CONTROVÉRSIA JURISPRUDENCIAL E A DOUTRINA.

O Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial nº 514.350-SP [14], não aceitou à reparação civil de danos por abandono paternal, suscitando que o judiciário não pode obrigar alguém a amar ou a manter um relacionamento afetivo.

Mister se faz transcrever ementa do Acórdão acima mencionado, in verbis:

" RESPONSABILIDADE CIVIL. ABANDONO MORAL. REPARAÇÃO. DANOS MORAIS. IMPOSSIBILIDADE.

1. A indenização por dano moral pressupõe a prática de ato ilícito, não rendendo ensejo à aplicabilidade da norma do artigo 159, do Código Civil de 1916, o abandono afetivo, incapaz de reparação pecuniária.

2. Recurso Especial conhecido e provido". (4ª Turma, Resp. nº 757.411/MG, Rel. Min. Fernando Gonçalves, unanimidade, DJU de 29.11.2005).

Os Tribunais de Justiça Brasileiros, em especial, o do Rio Grande do Sul estão abalizando que a omissão afetiva no âmbito do direito familiar é, sabidamente, de interpretação restritiva e não se configura pelo simples fato de os pais não terem reconhecido, de pronto, o filho, como também não há dano o mero distanciamento afetivo entre pais e filho, por circunstâncias de fato da vida. É preciso a análise do caso concreto e o preenchimento do determinado no artigo 186 do CCB.

A Professora Maria Celina Bodim de Morais [15], assinala que:

"O que é preciso distinguir é se o pai sabia ou não da existência do filho e se se negou ou não a reconhecê-lo. A responsabilidade, em todos esses casos, é subjetiva, e será preciso demonstrar a negligência do pai. Se este não tinha conhecimento da existência do filho, evidentemente não poderá ser responsabilizado pela falta de convivência; se fazia alguma vaga idéia, mas não se negou a reconhecê-lo, tampouco deverá ser responsabilizado pelo reconhecimento não espontâneo. Outra será a situação quando se prove (e a prova é imprescindível) que tinha conhecimento e se negou ao reconhecimento, quando então caberá a reparação por abandono afetivo." (Grifos Nossos).

O receio de parte da doutrina e jurisprudência acerca das indenizações nas relações parentais de abandono é que o genitor condenado, como represália, jamais tornará a se aproximar do rebento. Será?

O que precisa em situações deste jaez é o magistrado, apoiado por profissionais habilitados, compreender o verdadeiro sentido da ação reparatória e, a priori, buscar a composição entre pai e filho, objetivando auxiliar o resgate ou iniciar a possibilidade de entendimento entre eles.

De mais a mais, em determinados casos, malsinadamente, o restabelecimento do amor e do carinho é, praticamente, impossível, pois já fora desfeito pelo longo tempo transcorrido diante de total ausência de contato e de afeto paterno. De outro lado, o que impera é a própria personalidade e conceitos de vida da figura paterna, daí, a pena indenizatória precisa ser aplicada, em alguns casos, com o escopo de reparar o reversível prejuízo causado ao filho que sofreu pela ausência do pai.

Uma pessoa que nunca foi amada, como pode amar? Alguém que não conhece o poder do abraço, como pode abraçar? Outrem, que não conhece a beleza do sentimento do beijo, como pode beijar? Dessa maneira, o judiciário deve respeitar a liberdade das escolhas, fruto de uma sociedade plural, todavia não poderá compactuar com o abandono irresponsável de pais que se vêem, meramente, como procriadores.

Enfim, a reparação civil resta caracterizada com a conduta ilícita, com culpa, do pai em relação ao filho, o nexo de causalidade e o dano. Esta indenização deve ser a ultima ratio do julgador.

De outra banda, a liberdade parental está subdividida em dois aspectos:

a) Objetivo: são os direitos e deveres dos pais que inobservados, no aspecto material, geram ações de alimentos; e no aspecto extrapatrimonial, a perda do poder familiar (inciso II, art. 1.638, do Código Civil Brasileiro). Entendo que existe o direito indenizatório do filho, desde que haja ofensa aos preceitos constitucionais e infraconstitucionais (proteção, educação, convivência, o princípio da dignidade da pessoa humana, o princípio do ser em desenvolvimento, etc.), atendendo o disposto no artigo 186 da Legislação Substantiva Civil.

b) Subjetivo: a autonomia afetiva dos pais de conceder ou não afeto aos filhos. In casu, não gera nenhuma conseqüência sob pena de ferir o direito à liberdade paterna de escolher os próprios sentimentos.


IX- CONCLUSÃO.

O afeto é impagável, e não pode substituir a grandeza de um abraço e de um beijo entre pai e filho, entretanto, o descumprimento dos deveres paternais, em uma responsabilização subjetiva (art. 186, do CCB), deve ensejar uma ação indenizatória, como forma punitiva e dissuasória.

O sonho de todo filho e do próprio magistrado, em ações de investigação de paternidade é ver, quando de um julgamento procedente, o pai se vendo emocionalmente como pai. Na prática forense, e pela lei natural da vida não é assim que procede, posto que a construção afetiva é baseada no dia-a-dia, na convivência, o que corrobora a tese de que o liame biológico não é suficiente para uma pessoa ser pai na acepção da palavra.

Realmente a matéria é polêmica e instiga o estudo da responsabilidade civil, em especial, no que tange aos danos extrapatrimoniais. Para que uma pessoa tenha vida plena é preciso que haja dignidade, segundo o caput, do Art. 5º, da Constituição Federal, todavia um menor abandonado moralmente pelo pai não possui a oportunidade de ser cuidado, educado e ter a companhia dele, ocasionando a quebra dos princípios da dignidade da pessoa humana, da boa-fé objetiva e do Venire contra factum proprium nas relações familiares.

É justo que um pai omisso tenha como punição, somente, a perda do poder familiar? No meu modo de pensar, não, porquanto seria um prêmio para genitores descompromissados afetivamente com sua prole, eis que estariam "isentos" de qualquer "trabalho educativo e emocional" no crescimento moral da criança. E não venham dizer que a fixação de alimentos seria uma "punição" aos pais omissos, porque não o é, eis que os alimentos estão relacionados à dignidade humana do filho, aos direitos da personalidade e a solidariedade familiar.

É preciso mostrar à sociedade que condutas dessa natureza acarretam não só a ruptura do poder familiar, mas principalmente uma reparação pecuniária para que, ao menos, seja motivo de reflexão por parte de pais irredutíveis em suas condutas, servindo assim de desestímulos a todos aqueles que abdiquem do dever de cuidar dos seus filhos.

Uma coisa é aquele genitor (a) que, por circunstâncias adversas da vida, afasta-se do filho, porém, é pautado de sentimentos de amor e responsabilidade; e outra coisa é a figura paterna e/ou materna que, por intencionalidade, não conseguirão, durante uma vida, demonstrar nenhum sentimento positivo acerca da prole.

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Como se vê, só o caso concreto poderá definir se será ou não cabível uma indenização por abandono afetivo parental, e a pecúnia aqui citada não é pelo fato da ausência de amor e sim por descumprimento dos deveres de pai e mãe.

Não se pode negar, em casos onde há a efetiva comprovação de negativa de amparo afetivo, moral e psicológico a um filho há violação, clarividente, dos direitos da personalidade (honra, dignidade, reputação social...) e, portanto, passível de reparação civil (Art. 5º, inciso X, da Constituição Brasileira).

Na dificultosa problemática, a melhor saída é a triagem dessas ações, quando interpostas judicialmente, antes do despacho positivo, por profissionais da área de saúde vinculados ao Poder Judiciário, visando dirimir, em sua base, a premissa principal do problema, qual seja: a reaproximação entre pais e filhos, sendo a lide o último procedimento.

Por fim, sintetizando o que fora, aqui, instigado, cito os dizeres, com uma pertinência ímpar, do Professor Luiz Edson Fachin [16]: "mais que fotos na parede, quadros de sentido, a família há de ser, possibilidades de convivência".


X - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.

DIAS, Maria Berenice Dias. Manual de Direito das Famílias. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.

FACHIN, Luiz Edson. Elementos críticos do direito de família:Curso de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.

FARIAS, Cristiano Chaves de. ROSENVALD, Nelson. Direito das Famílias. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2008.

JR. Dirley da Cunha. NOVELINO, Marcelo. Constituição Federal. Constituição Federal para Concursos. Volume 1. Salvador: Jus Podivm, 2010.

JR, Marcos Ehrhardt. Direito Civil. LICC e Parte Geral. Volume I. Salvador: Jus Podivm, 2009.

JÚNIOR, Nelson Nery. NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Comentado. 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 14ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

MORAES. Maria Celina Bondin de. Família: do Autoritarismo ao Afeto – Como e a quem indenizar a omissão do afeto? Artigo publicado na Revista Brasileira de Direito de Família, IBDFAM, nº 32, p. 20/39MADALENO, Rolf. Repensando o Direito de Família. Porto Alegre: Livraria do Advogado, Ed. 2007.

SANTOS, Brasil. Indenização por abandono afetivo. Adv: seleções jurídicos: São Paulo, 2005.

STJ. Recurso Especial nº 514.350-SP. Rel. Min. Aldir Passarinho Júnior.

TJ-RS. Apelação Cível nº 70021427695, 8ª Câmara Cível, Rel. Des. Claudir Fidélis Faccenda.

TJ-RS. Apelação Cível nº 70029285277, 7ª Câmara Cível, Rel. José Conrado de Souza Júnior.

TJ-RS. Apelação Cível nº 70022661649, 7ª Câmara Cível, Rel. André Luiz Planella Villarinho.

TJ-RS. Apelação Cível nº 70026680868, 7º Câmara Cível, Rel. Sérgio Fernandes de Vasconcelos.

TJ-RS. Apelação Cível nº 70034280040, 7º Câmara Cível, Rel. José Conrado de Souza Júnior.

VADE MECUM. 12ª ed. São Paulo: Rideel, 2011.


Notas

  1. BRASIL. Constituição Federal. Salvador. Jus Podivm, 2010.
  2. BRASILEIRO. Código Civil. 8ª ed. São Paulo. Revista dos Tribunais, 2011.
  3. VADE MECUM. 12ª ed. São Paulo. Rideel. 2011.
  4. BRASIL SANTOS, Indenização por abandono afetivo. Adv: seleções jurídicos. São Paulo, p. 25-26, 2005.
  5. Idem 01.
  6. Idem 03.
  7. Idem 02.
  8. JR. Marcos Ehrhardt. Direito Civil. Volume I. Salvador. Jus Podvim, 2009, p. 187.
  9. Idem 02.
  10. MADALENO, Rolf. O Dano Moral na Investigação de Paternidade. Revista da Ajuris, nº 71, p. 275.
  11. STJ, Ac 3ªT., REsp.37.051//SP, rel Min. Nilson Naves, j.17.4.01, in Revista Forense, p. 363:240.
  12. DIAS. Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 6ª ed. São Paulo. Revista dos Tribunais, 2010.
  13. 4ª T., REsp. 788.459/BA, rel Min. Fernando Gonçalves, j.8.11.05, DJU 13.3.06, p. 334.
  14. 4ª Turma, Resp. nº 757.411/MG, Rel. Min. Fernando Gonçalves, unanimidade, DJU de 29.11.2005.
  15. MORAES. Maria Celina Bondin de. Família: do Autoritarismo ao Afeto – Como e a quem indenizar a omissão do afeto? Artigo publicado na Revista Brasileira de Direito de Família, IBDFAM, nº 32, p. 20/39.
  16. FACHIN, Luiz Edson, cf, Elementos Críticos de Direito de Família, cit. p. 14.
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Sobre o autor
Antônio Dantas de Oliveira Júnior

Magistrado Estadual. Titular da comarca de 1º Instância de Aurora do Tocantins/TO.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA JÚNIOR, Antônio Dantas. A incidência do art. 186 do Código Civil Brasileiro no abandono afetivo dos pais: é possível?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3018, 6 out. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20148. Acesso em: 3 mai. 2024.

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