Artigo Destaque dos editores

Relativismo ou universalismo das leis sobre direitos humanos

01/10/2001 às 00:00
Leia nesta página:

Uma das mais antigas e acirradas controvérsias no campo dos direitos humanos está relacionada à questão sobre o caráter universal ou relativo destes direitos. Noutras palavras, se os direitos humanos internacionalmente reconhecidos, devem merecer tratamento igualitário em todas as nações, ou se eles estão sujeitos a variações de classificações hierárquicas de acordo com as diferentes bases culturais sobre as quais se desenvolveu uma sociedade.

No alicerce da retórica sobre direitos humanos, existe a premissa de que a natureza humana é universal e comum a todos os indivíduos. E realmente de outra maneira não poderia ser pois, se assim não fosse, seria ilógico preconizar a existência de uma declaração universal de direitos.

Neste contexto, pode-se afirmar que a doutrina universalista haure seus fundamentos das concepções advindas da teoria do direito natural. Segundo esta doutrina, estas leis naturais estabeleceriam certos direitos inerentes a todos os seres humanos e representariam, via de conseqüência, uma lei superior, que seria considerada o parâmetro supremo a ser observado na elaboração das normas nacionais e internacionais referentes à dogmática humanística.

Para os universalistas, existiria um conjunto de direitos mínimos herdados por todos os povos. Estas prerrogativas mínimas iriam além das divergências culturais, e deveriam funcionar como verdadeiro norte magnético na confecção das leis sobre direitos humanos. Estas regras elementares forneceriam diretrizes a serem perseguidas para a proteção dos integrantes de uma sociedade. O resultado de se terem regras básicas estabelecidas para à defesa da dignidade do ser humano, por intermédio de um organismo internacional representativo de todas as nações, ou pelo menos de sua quase totalidade, como por exemplo, a Organização das Nações Unidas, seria não só a sua larga aceitação, mas também sua vasta aplicabilidade entre os diversos povos.

Desta forma, a aceitação dos direitos humanos como inerentes a todos os indivíduos, não importando suas nacionalidades, nos termos dos contornos que lhe forem traçados pelos organismos internacionais, aparece como um dos pressupostos indispensáveis à sua real implementação. Isto em razão de que, sendo-se conivente com eventuais graduações destes direitos, como o querem os paladinos do relativismo cultural, ter-se-ia uma constante ameaça à efetiva proteção que se pretende ofertar aos indivíduos, inobstante suas procedências.

Isto não implica, é curial que se ressalte, que não se deva aceitar algum tipo de influência regional na aplicação destas normas. Em verdade, apenas a essência, o valor em última instância assegurado, deveria ser promovido e custodiado similarmente entre todos os povos. A título de ilustração, cite-se o exemplo do direito a um julgamento justo, no qual todas as garantias decorrentes do devido processo legal fossem asseguradas. Neste caso, estas prerrogativas poderiam ser preservadas tanto pelo julgamento de um júri popular, no qual leigos são chamados a participar, como naquele em que o encarregado de proferir o veredicto fosse um agente oficial, legitimamente investido pelo estado para dirimir as questões que lhe chegassem ao conhecimento. O que se colima, tanto num caso como noutro, é a rigorosa observância do direito, que propicie a escorreita aplicação da lei.

Os partidários do relativismo cultural, por sua vez, insistem que as normas concernentes aos direitos humanos devem ser consideradas, e aplicadas, de acordo com os diferentes contextos culturais formadores das sociedades. Os adeptos desta corrente tentam impor a concepção de que, existe uma imensa variedade cultural entre as inúmeras sociedades que se encontram espalhadas pelo Globo e, por conseguinte, todas as espécies de costumes locais precisariam ser reputados válidos. Não seria correto eleger um reduzido número de modelos culturais, que seriam tidos como padrões universais e, fulcrados neles, passar a avaliar e a estigmatizar todas os outros que com eles não se coadunassem.

A dignidade humana continuaria sendo um relevante princípio a ser preservado mas, ao contrário dos universalistas, muitas vezes rotulados como defensores das ideologias ocidentais, e que procuram oferecer guarida a esta dignidade por intermédio de uma mentalidade voltada para os direitos individuais, a doutrina relativista tem-se utilizado mais de uma abordagem coletiva de proteção a esta mesma dignidade, através de interações com a própria sociedade, que policia as ações dos indivíduos. Este é o motivo porque severos controles comportamentais pela comunidade são permitidos.

Em verdade, isto equivaleria a dizer que, a própria estrutura social possui seus mecanismos internos para amparar seus cidadãos, não obstante o fato de que estes instrumentos possam não corresponder àqueles empregados no ocidente. E, assim sendo, as diretrizes protetivas delineadas pelas normas internacionais sobre direitos humanos seriam não somente desnecessárias, mas também inapropriadas para prevenir e reprimir eventuais violências perpetradas contra os seres humanos. Representaria mesmo uma medida contraproducente posto que, ao se tentar impor valores externos sobre culturas locais, deflagrar-se-ia um inevitável sentimento de rejeição a tais ideais, o que dificultaria ainda mais o seu processo de universalização.

Os relativistas, ademais, preconizando a inadequação das normas sobre direitos humanos tal como postas atualmente, argumentam que elas estão localizadas no lado universalista da disputa. Neste ponto, em verdade, assiste-lhes razão porque, realmente, os textos básicos de legislações humanísticas, como a Declaração Universal sobre Direitos Humanos, assim como as duas Convenções sobre direitos políticos e sociais, apenas descrevem estes direitos em termos genéricos. Cite-se, por exemplo, as expressões "todos" tem o direito à liberdade, "todas as pessoas" são iguais perante a lei, "ninguém" pode ser submetido à tortura, e assim por diante. Apesar de ser possível encontrar manifestações de relativismo cultural em alguns repositórios normativos regionais, como é a hipótese da Carta Africana sobre Direitos Humanos e das Pessoas.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Um grande obstáculo a ser superado, talvez o maior, para se conseguir uma mais ampla aceitação dos direitos humanos internacionalmente reconhecidos, é o que se refere a acertiva de que, esta dialética humanística é uma concepção originariamente nascida no ocidente e, conseguintemente, não espelharia a realidade dos países orientais.

Não há dúvida, é cediço, de que esta visão tutelar do ser humano tem como berço o mundo ocidental. A fonte única e primária das idéias de liberdade individual, democracia, direitos humanos bem como outras prerrogativas do gênero é, irretorquivelmente, o ocidente ou, mais precisamente, a Europa. Isto não permite se inferir, contudo, que as demais nações não devem adotá-las e reforçá-las apenas por este motivo. Este tipo de rivalidade e preconceito, infelizmente, tem sido muitas vezes o grande fator inibidor da adoção de um sistema cosmopolita de proteção ao ser humano que auferisse ressonância universal. O que demanda, conseqüentemente, sua incontinente eliminação, em prol da própria humanidade, que ruma para o terceiro milênio sequiosa da consolidação de um mundo mais justo, apoiado na harmonia entre os povos.

Outro relevante argumento proposto objetivando refutar estes padrões ocidentais, assenta-se na própria história da formulação de grande parte dos instrumentos concernentes aos direitos humanos. Muitos países da África e da Ásia, à guisa de exemplo, não participaram da redação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, pois eram colônias à época e, desta forma, não eram considerados membros das Nações Unidas.

Ao tempo em que eles passaram a tomar parte na discussão e codificação dos textos subseqüentes, eles o fizeram com esteio num já sedimentado arcabouço de normas, e de acordo com concepções filosóficas encampadas nas suas ausências. Pode-se mencionar, ilustrativamente, a preconcebida infra-estrutura ora vigente, que favorece os direitos individuais relacionados à liberdades civis e políticas, e menospreza os alcunhados direitos sociais, como o direito ao desenvolvimento e o de acesso aos bens de consumo gerados pelo sistema produtivo da economia de mercado.

À evidência, o pensamento humanístico na seara do direito, em razão do seu próprio nascedouro, não é uma ideologia universal, com repercussão equivalente entre todas as etnias. Não significando, entretanto, que ela não deva ser mundialmente chancelada. Outrossim, parece inequívoco, proclamar pura e simplesmente a universalidade dos direitos humanos seria algo como que introduzir, sub-repeticiamente, um Cavalo de Tróia em outras civilizações e, então, obrigá-las adotar certo modo de pensar, sentir e viver, como se o reconhecimento destes valores fosse a solução final para todos os males. Ou seja, o que seria universalismo para muitos dos países do ocidente, poderia se apresentar como imperialismo para os demais que não integrassem este bloco, notadamente os pertencentes à cultura oriental do hemisfério leste.

Ademais, os próprios defensores do universalismo são, muitas das vezes, contraditórios na abordagem que fazem da questão em relação a determinados temas ou países, o que torna ainda mais tortuoso o lento caminho a ser trilhado no processo de conscientização internacional. É a conhecida e reprovável aproximação dos dois pesos e duas medidas (double standard), que se verifica, verbi gratia, com a proposição de não proliferação de armas de destruição em massa impingida à países como Irã e Iraque, mas não para Israel; ou o que se assistiu na invasão contra os proprietários de poços de petróleo no Kuwait, repelida com uma ingente operação militar, ao passo que os sem-petróleo da Bósnia eram deixados à própria sorte ante a limpeza étnica que grassava em seu território; ou ainda a inexplicável repreensão à China pelos seus baixos indicadores de defesa dos direitos humanos, que não encontra similar tratamento quando a envolvida é a Arábia Saudita.

Entretanto, inobstante todas as precariedades elencadas, num mundo globalizado como o de hoje, no qual existem modernos meios de comunicação e transporte, as interações entre civilizações tornaram-se uma constante, o que redundará numa permuta de valores culturais cada vez mais acentuada, e até certo grau, desejável. O que acarretará, é o que se espera, uma maior predisposição à tolerância por parte dos diferentes povos no que toca o ideal de proteção à dignidade humana em todas as suas facetas. Para que, enfim, possa ser estabelecido, definitivamente, um código comum de normas, que galgue aceitação em todas as nações, que viria a proporcionar uma proteção mais eficaz dos direitos inerentes à pessoa humana, independentemente de sua linhagem racial.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Sérgio de Oliveira Netto

Procurador Federal. Mestre em Direito Internacional (Master of Law), com concentração na área de Direitos Humanos, pela American University – Washington College of Law. Especialista em Direito Civil e Processo Civil. Professor do Curso de Direito da Universidade da Região de Joinville - UNIVILLE (SC).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA NETTO, Sérgio. Relativismo ou universalismo das leis sobre direitos humanos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 51, 1 out. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2041. Acesso em: 19 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos