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O pensamento de Aristóteles e as reflexões jusfilosóficas atuais

01/10/2001 às 00:00
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Inicialmente, é importante reafirmar a importância da obra de Aristóteles (384-322 a.C.) e sua imensa influência sobre a cultura ocidental nesses dois mil e quatrocentos anos. O grande pensador grego foi, durante toda a Idade Média, considerado o mais importante filósofo, e sua doutrina tida como verdade inatacável. Foi com base na obra aristotélica que Santo Tomás de Aquino buscou, em seus escritos, harmonizar razão e fé. Na Era Moderna, que reabilitou o matematicismo pitagórico-platônico, o pensamento aristotélico permaneceu, mesmo muitas vezes rejeitado, servindo como contraponto.

Atualmente, o pensamento aristotélico passa por um período de renascimento e revalorização. O marco inicial dessa tendência data da primeira metade do século XX, com a publicação de obras com novas interpretações sobre o estagirita, sobretudo as de Werner Jaeger e William D. Ross.

Na segunda metade do século, as obras e os autores neo-aristotélicos, como Alasdair MacIntyre, proliferaram no campo da Filosofia. No âmbito do Direito, Aristóteles é, entretanto, praticamente ignorado. Os juristas atuais parecem muito pouco preocupados com a obra aristotélica. Mesmo muitos filósofos do direito parecem não se dar conta da real dimensão e do significado de Aristóteles para o Direito, preferindo o estudo de autores contemporâneos.

A obra aristotélica, contudo, é de extrema importância tanto para a Filosofia quanto para as reflexões jurídicas contemporâneas. Vou me ocupar aqui de duas obras aristotélicas, a "Ética a Nicômaco" e os "Tópicos", embora outras, como, por exemplo, a "Política", ou a "Retórica", também sejam fundamentais para uma correta compreensão da importância do pensamento aristotélico para os juristas de hoje.

Na Ética a Nicômaco, Aristóteles expõe uma teoria do ethos e da justiça da Atenas do século IV a.C., discutindo conceitos como "o bem", "a virtude", "a justiça", "a lei", "a amizade" e "a felicidade". Nos Tópicos, apresenta um método de argumentação (o dialético) que parte de opiniões geralmente aceitas, por todas as pessoas, ou pela maioria, ou pelos mais eminentes (os filósofos).

A primeira obra é incluída entre as obras éticas do estagirita, ao lado da Ética a Eudemo e da Grande Moral (Magna Moralia). A segunda, entre as lógicas, constantes do Órganon aristotélico, composto de mais cinco obras, além dos Tópicos: as Categorias, o Da Interpretação, os Analíticos (Primeiro e Segundo) e os Argumentos Sofísticos.

Aristóteles, diferentemente de seu mestre Platão (de índole essencialmente idealista), foi ideologicamente mais conservador, dando maior ênfase às condições reais do homem e de suas instituições, discordando, inclusive, da teoria das formas ou idéias de Platão, por considerá-la desnecessária para os fins da ciência.

O mundo é concebido por Aristóteles de forma finalista, onde cada coisa tem uma atividade determinada por seu fim. O bem é a plenitude da essência, aquilo a que todas as coisas tendem. O bem, portanto, é a finalidade de uma coisa (ou de uma ciência, ou arte). Assim, a finalidade da medicina é a saúde, e a da estratégia é a vitória. Dentre todos os bens, contudo, há um que é supremo, que deve ser buscado como fim último da pólis. Esse bem é a felicidade, entendida não como um estado, mas como um processo, uma atividade através da qual o ser humano desenvolve da melhor maneira possível suas aptidões.

Os meios para se atingir a felicidade são as virtudes (formas de excelência), discutidas por Aristóteles na Ética a Nicômaco. As virtudes são disposições de caráter cuja finalidade é a realização da perfeição do homem, enquanto ser racional. A virtude consiste em um meio-termo entre dois extremos, entre dois atos viciosos, um caracterizado pelo excesso e outro pela falta, pela carência.

Aristóteles divide as virtudes em dianoéticas (ou intelectuais), às quais se chega pelo ensinamento, e éticas (ou morais), às quais se chega pelo exercício, pelo hábito. As virtudes éticas, enquanto virtudes do saber prático, não se destinam ao conhecer, como as dianoéticas, mas à ação. Para sua aquisição o conhecimento tem pouca ou nenhuma importância.

Das virtudes dianoéticas, a de maior importância é a phrónesis (prudência), capacidade de deliberar sobre o que é bom ou mal, correto ou incorreto. Das virtudes éticas, a mais importante é a justiça.

Aristóteles distingue a justiça em duas importantes classes: a universal e a particular. A justiça universal é o cumprimento da lei (lei, na Antiguidade, designava mais o modo de ser da pólis do que propriamente uma prescrição). O homem justo, portanto, é aquele que, como Sócrates, no diálogo platônico Críton, cumpre a lei. Neste caso, abrange as demais virtudes, pois o que a lei manda é cumprir todas as virtudes éticas particulares. A justiça particular é o hábito que realiza a igualdade, a atribuição a cada um do que lhe é devido. Neste caso, a justiça se coloca ao lado das demais virtudes, pois respeitar a igualdade implica, quando necessário, agir com coragem, ou com temperança etc.

A justiça particular divide-se em duas: a justiça distributiva e a justiça corretiva. A justiça distributiva é a mais importante, pois responsável pela manutenção da ordem e da harmonia da pólis. Consiste em atribuir a cada um o que lhe é devido, tendo em vista sua excelência, seu valor (areté) para a comunidade. Baseia-se numa igualdade geométrica, na qual quem valha 8 receba 4, e quem valha 2 receba 1. Já a justiça corretiva, ou retificadora, não se baseia numa igualdade geométrica, mas numa igualdade aritmética. A justiça corretiva não trata das relações dos indivíduos com a comunidade, mas das relações dos indivíduos entre si (interpessoais), como, por exemplo, as de troca de bens.

A obra "Tópicos", na revalorização do pensamento aristotélico, inicialmente foi considerada uma obra de juventude, tentativa frustrada de se estabelecer um tratado de lógica, o que só teria sido conseguido por Aristóteles posteriormente, com os Analíticos. W. D. Ross, inclusive, em sua obra "Aristóteles", de 1923, a considerava como um modo de pensamento do passado, que não merecia maiores apreciações. O próprio Aristóteles, contudo, concedia às provas dialéticas (expostas nos Tópicos) um papel específico, impossível de ser cumprido por meio das provas analíticas.

Nos Analíticos, Aristóteles estabelece as bases do que posteriormente denominou-se lógica formal, expondo os raciocínios analíticos, que têm por base o silogismo dedutivo. O silogismo de Aristóteles pode ser definido assim: é um trio de termos, no qual o último, que é a conclusão, contém uma verdade à qual se chega obrigatoriamente, através dos outros dois. A lógica formal aristotélica, essencialmente demonstrativa, embora tendo sofrido diversas críticas, atravessou os séculos praticamente sem ser alterada e predominou sobremaneira sobre sua lógica dialética.

No início da segunda metade do século XX, entretanto, ocorreu uma redescoberta das diversas formas de racionalidade de Aristóteles pelos filósofos. O primeiro foi Chaim Perelman que, insatisfeito com o formalismo lógico, foi buscar nos Tópicos e na Retórica de Aristóteles a lógica do discurso não formalizável (ético, político e jurídico), formulando sua "teoria da argumentação", mais conhecida por "nova retórica", uma retomada da retórica e principalmente da dialética aristotélica. Os Tópicos, portanto, foram revalorizados, sendo considerados não mais como um modo de pensar do passado, mas como um modo de pensar diferente do contido nos Analíticos.

Da mesma época é a obra de Theodor Viehweg, "Tópica e Jurisprudência", em que o autor, com base nos "Tópicos" de Aristóteles, expõe um estilo de pensar por problemas, partindo deles e em função deles. Esse estilo deve ser utilizado pela Ciência do Direito na decidibilidade dos conflitos, pois a tarefa de decisão só pode ser efetuada após a análise de todas as peculiaridades do problema, do caso concreto.

Merece referência também a recente obra do brasileiro Olavo de Carvalho, "Aristóteles em nova perspectiva", de 1996, em que expõe interessante teoria (a teoria dos quatro discursos) sobre as relações entre lógica formal e lógica dialética. Ainda sobre essa relação, Carvalho cita o filósofo Eric Weil, que apresenta um excelente argumento: se para Aristóteles a lógica analítico-formal é tão importante na construção do conhecimento, por que ele nunca se utiliza dela em seus tratados, preferindo sempre argumentar dialeticamente?

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Os raciocínios dialéticos expostos nos Tópicos não se referem às demonstrações científicas (apodíticas), mas às deliberações e às controvérsias. Diferentemente dos raciocínios apodíticos (analíticos), que partem de premissas verdadeiras e primeiras, esses raciocínios partem de opiniões geralmente aceitas e, por isso, são apenas prováveis. Funcionam como meio de persuasão e de convencimento por um discurso cuja função é levar a uma decisão.

A estrutura da argumentação dialética, que motiva uma decisão, é diferente do silogismo, pelo qual se passa das premissas à conclusão necessariamente. A passagem dos argumentos dialéticos à decisão, ao contrário, não é obrigatória, pois uma decisão envolve sempre a possibilidade de decidir de outro modo (ou mesmo de não decidir).

Daí a importância da dialética de Aristóteles para o Direito atual. Os raciocínios jurídicos são raciocínios dialéticos, e não analíticos. A lógica jurídica não é uma lógica de demonstração formal, mas uma lógica argumentativa, que não utiliza provas analíticas, mas dialéticas, que visam o convencimento do juiz no caso concreto.

O Direito não pode partir de premissas consideradas verdadeiras, pois, assim, só haveria uma decisão possível e obrigatória. Quando as premissas são contestadas, através da dialética, não se impõe uma decisão como obrigatória, mas como a mais provável, a melhor possível naquele caso concreto.

Disso resulta a relação entre justiça e dialética, que Aristóteles legou aos juristas atuais. A justiça é o fim último do Direito. Para alcança-la, os raciocínios jurídicos não devem ser analíticos, decorrentes de um sistema jurídico estabelecido em bases formais. Como os casos concretos não se repetem, não podem ser tratados de modo universal. As normas de uma sociedade não devem ser axiomas, mas "lugares comuns", princípios comumente aceitos.

O Direito, concebido como ordenação racional dedutiva, conforme teorizaram os filósofos e juristas da Escola do Direito Natural Racional não conseguirá realizar a justiça de forma adequada. Essa concepção da estrutura jurídica como uma conexão dedutiva é de uma época em que se considerava a interpretação jurídica como algo secundário. A interpretação, nos termos em que hoje é entendida, como problema fundamental para a decisão, não se coaduna com o rigor de um sistema dedutivo.

Dentro dessa concepção, o Direito não deve ser entendido como um sistema formal já pronto, pois comporta opiniões e raciocínios os mais diversos. O Direito constrói-se através da argumentação que promove sua interpretação e aplicação. Nesses termos, não deve o juiz decidir através de um silogismo, com base em um sistema dedutivo, mas sim criar um sistema próprio para cada problema, para cada caso concreto, que possibilite que todos nele envolvidos tenham oportunidades iguais de emitirem suas opiniões e seus valores. Só assim uma decisão poderá ser considerada justa. Apenas, portanto, através dos raciocínios dialéticos, que recorrerão a argumentos de todas as espécies, é que a justiça pode ser alcançada, enquanto cumprimento da lei e realização da igualdade.


Bibliografia

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Sobre o autor
Bruno Amaro Lacerda

acadêmico de direito pela PUC/MG, mestrando em Filosofia do Direito pela UFMG

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LACERDA, Bruno Amaro. O pensamento de Aristóteles e as reflexões jusfilosóficas atuais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 51, 1 out. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2046. Acesso em: 5 nov. 2024.

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