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Responsabilidade por danos à soberania causado por empresas multinacionais através da internet

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26/01/2012 às 14:01
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CAPÍTULO II – SOBERANIA ESTATAL E A INTERNET

Feita a contextualização do direito internacional, passa-se a levantar os conceitos e argumentos necessários para corroborar as hipóteses levantadas. O presente capítulo apresentará a definição dos conceitos chaves de soberania e Internet, enfatizando a relação existente entre os mesmos. O capítulo é dividido em duas partes, iniciando com a apresentação dos conceitos de Estado, soberania, não intervenção e domínio reservado, para depois relacioná-los com as noções de Internet.

2.1.O Estado e A SOBERANIA

Para Menezes, o Estado teve uma origem espontânea e motivada pelas necessidades humanas. O autor afirma, partindo de uma análise empírico-histórica, de que a partir da família, núcleo social mais básico, surgiram outros grupamentos sociais cada vez mais complexos e com dinâmicas diferentes que acabaram por formar o Estado. [39]

Existem, atualmente, diferentes concepções do termo Estado. Para a maioria dos autores da ciência política significa "todas as sociedade políticas que, com autoridade superior, fixaram as regras de convivência de seus membros". [40]

Para o direito internacional, no entanto, o conceito de Estado se confunde com o de Estado moderno, uma sociedade política com características específicas. Estas características são, conforme lição de Rezek, população, território, governo. [41]

Entende-se por população o conjunto formado por nacionais natos ou naturalizados de um Estado sujeitos à soberania deste, conforme lição de Mazzuoli. [42] É o elemento humano do Estado formado por uma unidade jurídica a qual, segundo Kelsen, é determinada pelo vínculo jurídico entre o nacional e seu Estado: a nacionalidade. [43]

Território, o elemento material do Estado, segundo Husek,

Compreende o solo, o subsolo (domínio terrestre), rios e demais cursos d’água que cortam ou atravessam o território (domínio fluvial ou lacustre), as águas que margeiam as costas do território (águas territoriais) q que se estendem até certa distância (domínio marítimo) e o espaço aéreo correspondente a tais domínios até a altura determinada pelas necessidades de defesa (domínio aéreo). A noção de território não é, assim,geográfica, mas, jurídica. [44]

O elemento político do Estado, um governo autônomo e independente, segundo Mazzuoli, representa uma ordem política regularmente constituída, efetiva e legítima, que exerce de forma definitiva o poder jurisdicional do Estado, sem interferências externas. Segundo o autor, é o governo de um Estado que efetivamente participa das relações internacionais do Estado, conduzindo sua política externa. [45]

Na configuração atual do direito internacional, o Estado mantém-se como principal sujeito de direito, uma vez que, como afirma Rezek, o Estado é uma realidade física e sua personalidade jurídica precede inclusive a das organizações internacionais. [46]

De acordo com Kelsen, pessoa é, num sentido jurídico, quem "é sujeito de deveres jurídicos e direitos jurídicos". [47] Nesse sentido, ser sujeito de direito internacional é ser ente destinatário de normas jurídicas internacionais, normas estas que lhes concedem tanto direitos quanto obrigações. A personalidade internacional, segundo o Husek, corresponde a uma dupla capacidade jurídica: ter suas condutas reguladas pelas normas de direito internacional, e serem capazes de atuar perante a sociedade internacional. [48]

É, o Estado, sujeito de direito internacional por excelência porque, além de ser sujeito de deveres e direito internacionais, participa ativamente na criação das normas internacionais. Como diz Rezek, "Os Estados se organizam horizontalmente, e dispões-se a proceder de acordo com normas jurídicas na exata medida em que estas tenham constituído objeto de seu consentimento. A criação de normas é, assim, obra direta dos seus destinatários". [49]

A característica ou atributo mais marcante do Estado, que o diferencia dos outros atores da sociedade é justamente a Soberania.

2.1.1.Noção de soberania estatal e princípio da não intervenção

O Estado, enquanto sujeito de direito internacional, só é considerado como tal enquanto não se submeter a nenhum poder superior. Como diz Rezek,

Identificamos um Estado quando seu governo (...) não se subordina a qualquer autoridade que lhe seja superior, não reconhece, em última análise, nenhum poder maior de que dependam a definição e o exercício de suas competências, e só se põe de acordo com seus homólogos na construção da ordem internacional, e na fidelidade aos parâmetros dessa ordem, a partir da premissa de que aí vai um esforço horizontal e igualitário de coordenação no interesse coletivo. [50]

Conforme explica Touscoz, com a aquisição de personalidade jurídica de direito internacional, a situação fática do Estado – a independência face qualquer autoridade superior – torna-se uma situação jurídica [51]. Consolida-se a soberania do Estado como expressão jurídica de sua independência.

A jurisprudência internacional apresenta considerações a favor da presente tese. O Caso da Ilha Palmas, julgado por uma corte arbitral, é paradigmático ao demonstrar a relação entre independência e soberania. Neste caso, o árbitro Max Hubert declarou o seguinte:

Soberania nas relações entre estados significa independência. Independência no que diz respeito a uma porção do globo é o direito de lá exercer, com a exclusão de qualquer outro Estado, as funções de um Estado. O desenvolvimento da organização nacional de Estados nos últimos séculos e, como um corolário, o desenvolvimento do direito internacional, estabeleceu este princípio da competência exclusiva de um Estado sobre seu próprio território de tal modo que o faz o ponto de partida na resolução da maioria das questões relacionadas às relações internacionais (…). [52]

Reconhecidos enquanto tais, os Estados adquirem direitos que decorrem de sua simples existência. São direitos fundamentais que "têm como base o direito à existência, consistente no direito primordial que tem o Estado de existir e continuar existindo enquanto ente soberano". [53] Passa o Estado, deste modo, a ser detentor de certos direitos, dentre os quais, os mais essenciais são sem dúvida o direito à igualdade e o direito à liberdade.

O direito à igualdade, positivado na Carta das Nações Unidas de 1945 [54], refere-se a uma manifestação externa da soberania. Para Mazzuoli, "a Carta da ONU considera como juridicamente idênticos todos os entes dotados do atributo da soberania (é dizer, os Estados)". [55]

A Resolução 2625 da XXV Assembleia Geral das Nações Unidas, de outubro de 1970, atenta quanto aos princípios decorrentes deste direito:

Em particular, a igualdade soberana inclui os seguintes elementos: a – Estados são juridicamente iguais; b – cada Estado goza de direitos inerentes à plena soberania; c – cada Estado tem o dever de respeitar a personalidade dos outros Estados; d – a integridade territorial e a independência política são invioláveis; e – cada Estado tem o direito de livremente escolher e desenvolver seus sistemas políticos, sociais, econômicos e culturais; f – cada Estado tem o dever de obedecer integralmente e de boa fé suas obrigações internacionais e conviver em paz com outros Estados. [56]

O caso da Companhia Norueguesa de Navegação de 1922 reflete bem a questão do direito à igualdade. No caso, os Estados Unidos da América tenta se esquivar da responsabilidade de reparação pela quebra, forçada pelo próprio governo dos Estados Unidos e em seu favor, de contratos com súditos do Império Norueguês sob a égide dos Atos de Império, considerando tais atos como uma causa de isenção da responsabilidade. A Corte Permanente de Arbitragem não aceitou que tais atos de império escusassem os Estados Unidos, frente ao Império Norueguês, de reparar os danos sofridos e, na fundamentação de sua decisão, proclamou a seguinte passagem: "O direito e a justiça internacionais são baseados no princípio da igualdade entre os Estados". [57]

Tem-se ainda a Carta da Organização dos Estados Americanos de 1948, que em seu art. 10º discorre:

Os Estados são juridicamente iguais, desfrutam de iguais direitos e de igual capacidade para exercê-los, e têm deveres iguais. Os direitos de cada um não dependem do poder de que dispõem para assegurar o seu exercício, mas sim do simples fato da sua existência como personalidade jurídica internacional.

Como se observa, outra decorrência direta da igualdade dos Estados é que todos estes entes soberanos detêm na ordem internacional os mesmos direitos e deveres. Conforme Mazzuoli, "uma vez ingressado na sociedade internacional, [o Estado] deve aceitar as regras que esta e o direito internacional lhe impõem". [58]

Já o direito à liberdade do Estado, de acordo com lição de Mazzuoli, "manifesta-se pela sua capacidade de autodeterminação nas relações com outros entes soberanos internacionais". [59] Este direito traduz a consciência de que o efetivo exercício da independência dos Estados não se limita ao exercício exclusivo de competências em seu território, mas, antes, necessita regulamento das condutas nas relações interestatais, conforme explica Daillier. [60]

Mazzuoli afirma que o direito à liberdade se confunde com a própria noção de soberania, que é, ao fim, a expressão jurídica da independência do Estado. O autor distingue, deste direito à liberdade, um aspecto interno de um externo. O primeiro corresponde ao poder supremo que tem o Estado de determinar e aplicar, em seu território, suas decisões, enquanto o segundo relaciona-se com a projeção da personalidade jurídica do Estado na comunidade internacional e corresponde ao livre exercício de suas prerrogativas internacionais, o que inclui o direito à igualdade. [61]

A existência de direitos fundamentais do Estado pressupõe a existência de deveres correlatos da sociedade internacional. Como afirma Kelsen, "para ser juridicamente livre no que diz respeito a certa conduta, outro indivíduo, ou outros indivíduos, devem estar obrigados a uma linha de conduta correspondente. (...) O conteúdo de um direito é, em última análise, o cumprimento de um dever de outra pessoa". [62] A soberania, expressão jurídica da independência do Estado, corresponde, portanto, ao dever da comunidade internacional de respeito a esta independência.

O dever de respeitar a liberdade soberana dos Estados é, como afirma Mazzuoli, considerado como mais importante dever jurídico de direito internacional, e seu corolário principal é o princípio da não intervenção. [63]

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O princípio da não intervenção representa a tutela jurídica internacional da independência dos Estados. A Carta das Nações Unidas acolhe o princípio, em seu art. 2º § 7º:

Nenhum dispositivo da presente Carta autorizará as Nações Unidas a intervirem em assuntos que dependam essencialmente da jurisdição de qualquer Estado ou obrigará os Membros a submeterem tais assuntos a uma solução, nos termos da presente Carta; este princípio, porém, não prejudicará a aplicação das medidas coercitivas constantes do Capitulo VII. (grifo adicionado)

Também, a Carta da Organização dos Estados Americanos de 1948 expressamente se refere à intervenção em seu art. 19, proibindo-a sob qualquer forma.

Nenhum Estado ou grupo de Estados tem o direito de intervir, direta ou indiretamente, seja qual for o motivo, nos assuntos internos ou externos de qualquer outro. Este princípio exclui não somente a força armada, mas também qualquer outra forma de interferência ou de tendência atentatória à personalidade do Estado e dos elementos políticos, econômicos e culturais que o constituem.

A jurisprudência internacional é fértil em decisões a favor da liberdade de organização dos Estados [64] e do princípio da não intervenção [65]. O Caso das Atividades Militares e Paramilitares na Nicarágua, julgado em 1986, é emblemático no reconhecimento destes tópicos, conforme a CIJ observa:

(…) a aderência de um Estado a qualquer doutrina em particular não constitui uma violação de costume internacional; considerá-la de outro modo tornaria sem sentido o princípio fundamental da soberania estatal, sob a qual jazem todo o direito internacional e a liberdade de escolha do sistema político, social, econômico e cultural de um Estado. (…) A Corte apontou para o conteúdo costumeiro de certas disposições como o princípio do não uso da força e da não intervenção, tendo em vista as relações entre Estado com diferentes sistemas políticos, sociais, econômicos e culturais com base na coexistência entre as suas diversas ideologias. [66]

Não se admite a intervenção em qualquer matéria que pertença à jurisdição exclusiva do Estado. Tais matérias são o que o direito internacional consagrou com a noção de "domínio reservado".

2.1.2.Noção de Domínio Reservado

O domínio reservado, ou jurisdição doméstica, refere-se a um conjunto de matérias que estão sob autoridade estatal e fora do âmbito de regramento do direito internacional. [67] É, talvez, a maior expressão da soberania do Estado, já que representa uma zona de verdadeira liberdade, sem a interferência nem mesmo do direito internacional.

Porém, é de difícil definição o que pertence ao domínio reservado de um Estado. Segundo Mello, três são os critérios propostos pela doutrina: o primeiro é o critério material, segundo o qual a natureza do próprio assunto definiria se este pertenceria ou não ao domínio reservado. Para os defensores do critério material, o Estado tem liberdade para definir o que pertence ou não ao seu domínio reservado. O segundo critério é o jurídico, um critério negativo, segundo o qual faz parte do domínio reservado tudo o que não for regulado pelo direito internacional. Por fim, o terceiro critério é o político, o qual considera que é de domínio interno não só aquilo que não for regulado pelo direito internacional, mas também, aqueles assuntos que, dada determinadas circunstâncias, adquirem relevância para a ordem internacional. [68]

Desses critérios talvez o mais adotado seja o jurídico. [69] Pelo menos, este foi o entendimento da Corte Permanente de Justiça Internacional no Caso dos Decretos acerca da nacionalidade emitidos na Tunísia e em Marrocos julgado em 1923. Neste caso, a Corte, indagada se a nacionalidade seria uma matéria de domínio reservado, manifestou que "a questão se certa matéria está ou não exclusivamente dentro da jurisdição doméstica de um Estado é, essencialmente, uma questão relativa; depende do desenvolvimento das relações internacionais". [70]

Da delimitação da abrangência do conceito de domínio reservado, questiona-se a existência de uma relação entre o exercício do poder soberano e a Internet.

2.2.A INTERNET

Antes de iniciar um estudo da relação entre a soberania estatal e a Internet, faz necessário o entendimento do conceito, funcionamento e normas jurídicas aplicáveis a esta última.

2.2.1.Conceito e Estrutura da Internet

Mais que uma rede de computadores, a Internet é uma metarrede, uma rede de redes. É segundo Tanenbaum, "um vasto conjunto de redes diferentes que utilizam certos protocolos comuns e fornecem determinados serviços comuns". [71] Este conceito, porém, é abrangente demais para se ter uma noção exata do que é a Internet.

Numa descrição mais detalhada, segundo Kurose e Ross, a Internet é o uma rede mundial de sistemas finais – isto é, computadores, servidores, celulares, televisões e muitos outros equipamentos informáticos – que se interconectam indiretamente através de enlaces de comunicação [72] e comutadores de pacotes [73]. Os sistemas finais acessam a Internet por meio de Provedores de Serviço de Internet de nível três, um conjunto de comutadores de pacotes, geralmente gerenciado por empresas, que oferecem aos sistemas finais acesso ao resto da Internet. Para tanto, os Provedores de Serviço de Internet de nível três, que tem atuação local ou regional, conectam-se entre si por meio de Provedores de Serviços de nível dois, cuja área de atuação é maior e cujo conjunto de comutadores trabalha a altas taxas de transmissão de informação. Por fim, os Provedores de Serviços de nível dois se conectam entre si ou diretamente ou através de Provedores de Serviços de nível um, também conhecidos por backbone de Internet, um conjunto de comutadores capazes de transmitir taxas extremamente altas de informação. [74]

De acordo com Bolaño, os atores que participam na Internet são identificados pelas funções que exercem. [75] Isto se deve ao fato de que, sob o ponto de vista do direito interno, qualquer sujeito de direito pode participar como ator na Internet. Conforme disse Kurose e Ross, "qualquer um de nós pode se tornar um ISP [provedor de serviços] de acesso tão logo tenhamos uma conexão com a Internet. Basta comprar o equipamento necessário (...) para que outros usuários se conectem conosco". [76]

Quanto as suas funções, os atores dividem-se em basicamente duas categorias principais. O usuário final, que pode ser qualquer indivíduo, entidade pública ou privada e os provedores de acesso, função exercida principalmente por empresas privadas, mas algumas vezes por empresas públicas de comunicação e outras instituições públicas. [77]

Todos os equipamentos conectados à Internet utilizam os mesmos protocolos de comunicação [78] – um conjunto de instruções informáticas que possibilitam e gerenciam as conexões necessárias para que haja a transferência de informações entre os computadores. O funcionamento de sistemas que utilizam protocolos, incluindo a Internet, dá-se através do gerenciamento de requisições e respostas. [79]

A Internet, dada a sua concepção original, possuiu uma estrutura hierarquizada multidimensional e descentralizada, conforme aclara Bush. [80] A cada equipamento conectado à Internet é fornecido um endereço, um conjunto numérico único [81], capaz de identificá-lo. Este endereço é necessário para que este equipamento envie e receba dados.

A transmissão de dados, segundo aclaram Kurose e Ross, segue o princípio end to end, segundo o qual, havendo um destino para certos dados, os protocolos de comunicação irão direcioná-los pela melhor rota disponível, e, caso haja alguma obstrução na transmissão, o sistema redireciona-los-á para que atinjam seu destino. Para transmitir uma informação através da Internet, então, é necessário o endereço do equipamento de destino e o endereço do equipamento de origem: todo o percurso entre estes dois pontos é feito de maneira automática e baseada na eficiência e rapidez da transmissão. [82]

2.2.3.Instrumentos Jurídicos de Regulação

Como forma de disciplina da conduta humana, o direito incide também sobre as atividades relacionadas à Internet.

Já que a Internet é uma rede de escala global, o primeiro conjunto de regras a ser aplicado na regulação de condutas a ela relacionadas são as regras gerais de direito internacional. A inexistência de uma norma jurídica que especificamente se dirija a condutas internacionais relacionadas à Internet não justifica a ausência de aplicação das normas internacionais, já que, conforme ensina Kelsen, "é sempre logicamente possível aplicar a ordem jurídica existente no momento da decisão judicial". [83]

No direito internacional, tem-se à mão, inicialmente, aquelas normas internacionais sobre diversas matérias que podem ser aplicadas num caso concreto, independente de o fato ter ocorrido ou não através da Internet. [84] Normas que regulam infrações de direitos autorais, por exemplos, independem do meio utilizado para incidirem sobre o fato. No plano internacional, vem surgindo uma série de tratados que busca unificar o direito material a ser aplicado, como demonstra Vicente, mais notadamente a regulação da propriedade intelectual. [85]

Aplicar-se-á o direito internacional específico sobre a Internet, quando houver. Tal tipo de regulamento é ainda hoje raro. Podemos citar a Diretiva 2009/29 da Corte Europeia, que regula, na União Europeia, certos aspectos relacionados com aos direitos autorais na Internet, segundo explanação de Carla Eugênia Caldas de Barros. [86]

Têm-se, por fim, as leis nacionais, que disciplinam as condutas em relação à Internet nos âmbitos de seus respectivos Estados. Este tipo de legislação é a mais comum a gerir as situações internacionais privadas ocorridas dentro do território de um país, mais carecem de efetividade para regular condutas fora da jurisdição de seu respectivo Estado, como demonstra Vicente. [87]

2.2.4.Legitimidade do controle sobre a Internet e sua efetividade

Se por um lado é certo que as condutas em relação à Internet podem ser reguladas pelo direito, a doutrina internacional parece dividida quanto à questão da efetividade deste controle. Uma parte dos doutrinadores pensa ser impossível controlar a Internet, tendo em vista seu caráter liberal e estrutura descentralizada. [88]

Porém, a maior parte da doutrina assegura que tanto é viável o exercício de alguma forma de controle e que, de fato, já ocorre. A regulação sobre os conteúdos e sobre as atividades na Internet é uma realidade. [89]

Segundo Wu, essa regulação assume duas formas: regulação de acesso a conteúdo e a regulação de condutas. A primeira consiste no controle do acesso do usuário a determinados tipos de informação (exemplo notório são a pornografia e as obras protegidas por direitos autorais) e ocorre ou através do controle dos meios físicos que permitem o acesso à Internet, ou através da criação de um sistema de filtragem através de softwares. Deste modo, um Estado pode exercer um controle sobre as redes em seu território, impedindo o acesso a conteúdos considerados proibidos. [90] O segundo tipo de regulação corresponde ao controle de condutas em relação à Internet, como a criminalização do acesso a informações privadas ou do fornecimento de conteúdo ilegal. [91]

Pode-se listar uma série de restrições reais de Estados sobre informações que circulam na Internet. Leonardi apresenta um panorama geral dos países meso-orientais e orientais que utilizam do controle de acesso a determinados tipos de conteúdos. Entre eles o que mais se destaca é a China: o sistema de controle deste país é um dos mais sofisticados e dinâmicos do mundo, impedindo o acesso de cidadãos comuns a uma grande lista de assuntos considerados sensíveis pelo governo. As diferentes escalas e formas de controle sobre o conteúdo acessado dentro dos países estudados, ocorre desde um controle transparente e com a participação da sociedade, como na Arábia Saudita, até um controle rígido e inflexível, como em Mianmar, onde o acesso é restrito apenas à própria rede interna do país. Concluindo, aponta-se para o fato de que os sistemas de controle do Irã, Arábia Saudita, Tunísia, Mianmar e Iêmen, todos utilizam software norte-americanos em seus sistemas de controle. [92]

De acordo com Deibert, muitos outros países efetivamente implementaram diferentes sistemas de controle sobre suas redes nacionais. Alguns destes sistemas são muito sofisticados, como no caso dos Estados Unidos, França, Alemanha, Rússia e Inglaterra. [93]

Pode-se perceber que o controle sobre informações na Internet é uma atividade importante para muitos Estados atualmente, sendo exercida na medida de suas soberanias.

Afirmações de teóricos do direito internacional [94] garantindo que a Internet está além da regulação Estatal não representam efetivamente a realidade. Tais teóricos, ao conceberem a Internet como uma rede de computadores homogênea e indivisível, desconsideram a disposição espacial dos elementos que a constituem. A Internet é composta por equipamentos eletrônicos espalhados em diversos países, conectados entre si, [95] mas que estão, respectivamente, submetidos a cada uma destas ordens jurídicas.

A Internet, em si, não pode ser regulamentada por um só Estado por justamente se tratar de um conjunto de redes de equipamentos espalhados pelo mundo, mas, ao mesmo tempo, cada rede está diretamente subordinada a um determinado poder Estatal. A possibilidade de regramento acontece porque, dentro de seu território, cada Estado é livre para determinar a organização dos sistemas econômicos, culturais, políticos e sociais. Enquanto não existir um regramento específico no direito internacional, é do Estado a prerrogativa gerenciar a sua própria "rede de informação" e decidir como esta se conectará com as demais redes fora de seu território. Além disso, permanece sob o domínio do Estado determinar como se dará a aquisição de equipamentos eletrônicos, o modo de constituição e regras de funcionamento dos provedores de acesso, a forma e o exercício do controle sobre a informação acessível aos seus cidadãos. Ou seja, cabe ao Estado adequar os elementos de sua "rede nacional de informação" [96] a sua própria realidade social, cultural, política e econômica de acordo com as normas de seu ordenamento jurídico.

Neste sentido temos a declaração de inadmissibilidade de intervenção e interferência nos assuntos internos dos Estados, que, expandindo o princípio da não intervenção, adicionam-lhe novos direitos. Entre outros, está expresso no texto da Declaração o direito do Estado desenvolver, sem qualquer interferência, um sistema de informação, conforme se lê abaixo:

2. O princípio da não intervenção e não interferência nos assuntos internos e externos dos Estados compreende os seguintes direitos e deveres: (...)

(c) O direito dos Estados e povos de ter livre acesso à informação e de desenvolver completamente, sem interferência, seus sistemas de informação e mídia em massa e de usar suas mídias de informação de modo a promover seus interesse e aspirações políticas, sociais, econômicas e culturais, baseados, entre outras coisas, em artigos relevantes da Declaração Universal dos Direitos do Homem e nos princípios da nova ordem internacional da informação; [97]

O direito do Estado de desenvolver, sem qualquer interferência, um sistema de informação próprio vem reforçar a ideia de liberdade de desenvolvimento cultural e social incluída no conceito de soberania. É uma menção expressa de uma matéria que pertence ao "domínio reservado" do Estado. É inequívoco também que desse direito decorre o nascimento de um novo dever da comunidade internacional: a abstenção de práticas que interfiram no desenvolvimento do sistema de informação de um Estado.

2.3.A INTERVENÇão digital

Sendo o livre desenvolvimento e gerenciamento de uma "rede nacional de informação" uma das manifestações da soberania, pode-se afirmar que este direito também é suscetível de sofrer dano através da intervenção de agentes externos. Como o foco do presente trabalho são os danos causados através da Internet, considerar-se-ão apenas as intervenções perpetradas por este meio.

Antes de iniciar um estudo das diferentes formas de intervenção nos assuntos internos de um Estado que ocorrem através da Internet, é necessária a definição dos fundamentos do presente estudo.

As hipóteses aqui apresentadas são implicações lógicas da natureza da rede de computadores enquanto sistema de informação, e observações empíricas, considerando a existência de casos notórios. A tipologia das formas de intervenções que será apresentada não são de forma alguma restritiva, admitindo a existência de outras formas que não as listadas abaixo. O número de hipóteses apresentado corresponde aos dados coletados.

Sendo a rede nacional de informação um dos elementos do sistema de informação e mídia em massa de um país, e estando a estrutura desta rede sob controle do Estado, existem pelo menos dois meios de intervenção, tendo-se como critério sua finalidade.

A intervenção através da Internet é capaz de violar o direto à liberdade de desenvolvimento do sistema de informação de um Estado, caso no qual a própria rede nacional de informação é o alvo da intervenção. Pode-se classificá-la uma intervenção digital pura [98], por não visar nem produzir efeitos fora da esfera da estrutura da rede nacional de informação. É incluída neste conceito qualquer ação que vise alterar substancialmente a disposição dos elementos digitais que compõem uma rede de computadores, isto é, programas, protocolos de conexão e outros elementos.

Entre as ações consideradas prática de intervenção digital pura, tem-se as apresentadas por Streltsov: ataques eletrônicos ou informacionais através de impulsos elétricos visando, temporária ou permanentemente, neutralizar instalações ou sistemas eletrônicos; destruição ou alteração dos algoritmos do sistema de controle da rede nacional de informação; influência, perturbação ou interrupção do fluxo de informações e comunicação através da interferência da distribuição dos sinais digitais. [99] Tais atos desestabilizam a "rede nacional de informação", impedindo que esta funcione corretamente. Sendo assim, a intervenção de qualquer membro da sociedade internacional que dificulte ou impeça isto de ocorrer constitui clara violação da soberania.

De modo semelhante, a intervenção através da Internet é um meio hábil de violar a soberania de forma geral, ou um dos direitos dela decorrentes, com exceção do direto à liberdade de desenvolvimento de um sistema de informação. Nesta hipótese, tanto a Internet, quanto a rede nacional de informação, não são objetivos finais da intervenção, antes, são instrumentos pelos quais a ação interventiva se aperfeiçoa. Por gerar efeitos fora da esfera da rede nacional de informação, pode-se classificar tal intervenção como digital impura.

A intervenção digital impura se realiza de dois modos diferentes: propaganda digital e ataques digitais.

A propaganda, segundo Mello, é um das formas de intervenção subversiva que pode, por exemplo, derrubar um governo que se encontra no poder através de campanhas difamatórias. Segundo o autor, é difícil de ser caracterizada, mas, não obstante, continua sendo considerada uma forma de intervenção. [100] Streltsov afirma que a gravidade da propaganda digital se dá pelo fato dela causar uma série de efeitos psicológicos negativos na população de um Estado, o que, entre outras coisas, pode gerar uma sucessão de conflitos étnicos, culturais e religiosos que desestabilizam a ordem interna de um Estado. [101]

Já os ataques digitais são aqueles que visam produzir um efeito concreto através do uso das tecnologias da informação. Isto é possível hoje mediante a crescente integração entre os diversos sistemas físicos – sistemas de fornecimento de energia, sistema de transportes, sistema financeiro, entre outros – e os sistemas digitais.

Schmitt lista alguns exemplos de atos considerados como ataques digitais: trens desviados e levados a descarrilamento após manipulação dos sistemas eletrônicos que os controlam; comprometimento dos sistemas automáticos de controle de tráfego, causando engarrafamentos maciços, e impedindo efetiva resposta dos veículos médicos, dos bombeiros e da polícia; invasão do sistema de distribuição de água, o que permite o controle sobre a abertura e fechamento de válvulas, impedindo a distribuição de água e, num conjetura extrema, poderia provocar um efeito em cadeia causaria a ruptura de canos. Também estão incluídos no conceito de ataque digital aqueles atos que visem obter, alterar e destruir informações importantes, como, por exemplo, a invasão e destruição do banco de dados do sistema bancário, o que levaria o Estado a uma crise financeira. [102]

Manifestações oficiais, como as da Agência Israelense de Segurança – AIS, também conhecida como Shinbet – demonstram o quão reais são as ameaças produzidas pela intervenção digital. Segundo o jornal O Estado de São Paulo, forças de segurança de Israel, no final dos anos 1990, em um procedimento padrão de verificação das medidas de segurança de um depósito de combustíveis, perceberam que o sistema poderia ser reprogramado para travar ou mesmo causar explosões. [103]

Delineados os conceitos jurídicos e fáticos pertinentes ao presente estudo, já é possível iniciar a dedução de uma solução satisfatória para a problemática introduzida no presente trabalho. 

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Sobre o autor
João Felipe Brandão Jatobá

Advogado em Maceió (AL). Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Alagoas.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

JATOBÁ, João Felipe Brandão. Responsabilidade por danos à soberania causado por empresas multinacionais através da internet. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3130, 26 jan. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20935. Acesso em: 5 mai. 2024.

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