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O direito de morrer dignamente

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11/02/2012 às 17:35
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Mesmo sendo reconhecida a autonomia do paciente, não há que se esquecer a irrenunciabilidade e a indisponibilidade do direito à vida. Por isso, não é possível que uma pessoa solicite que outra a mate ou lhe auxilie a suicidar. Isto, porém, não justifica o prolongamento exagerado de um tratamento, haja vista a irreversibilidade do estado do paciente e o prolongamento de seu sofrimento.

RESUMO

A presente monografia tem por objetivo responder se existe o direito de morrer dignamente, o que corresponde a satisfazer o pedido de uma pessoa que, acometida de doença e em estado considerado pela medicina como irreversível, solicita que o médico finalize sua vida ou lhe auxilie a suicidar-se. Verificado o caráter fundamental dos direitos à vida e à liberdade e sua necessária correlação com a dignidade, analisam-se os avanços da medicina na preservação da vida, a consideração da morte como fase integrante da vida, a relação médico-paciente e as formas que talvez pudessem ser utilizadas para atender à solicitação. De tal forma, são enfocados o papel do Estado na promoção da dignidade humana e a autonomia do paciente para manifestar-se sobre os rumos de seu tratamento, concluindo-se pela possibilidade de atender seu pedido através da ortotanásia, não promovendo a interrupção da sua vida, nem prolongando seu sofrimento.

Palavras-chave: direitos fundamentais à vida e à liberdade, dignidade; autonomia.

SUMÁRIO: 1 – INTRODUÇÃO. 2 – O DIREITO FUNDAMENTAL À VIDA DIGNA.2.1 – A vida. 2.1.1 – Os avanços da medicina na preservação da vida. 2.1.2 – A morte como fase integrante da vida. 2.2 – A dignidade da pessoa humana.2.3 – Noções gerais sobre os direitos fundamentais.2.4 – Vida Digna.3 – O DIREITO À LIBERDADE. A RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE E A AUTONOMIA PRIVADA..3.1 – O direito à liberdade.3.2 – A relação jurídica Médico-Paciente.3.2.1 – A evolução da relação médico-paciente.3.2.2 – A natureza jurídica da relação médico-paciente.3.2.3 – O paciente como cliente. O valor da manifestação da vontade.3.3 – Autonomia Privada.3.3.1 – A expressão autonomia privada.3.3.2 – O PSDA e as advance directives. O testamento vital e o consentimento informado.3.3.3 – Requisitos de validade para o exercício da autonomia privada.3.3.4 – A (in)consciência e a (in)capacidade.4 – EUTANÁSIA, SUICÍDIO ASSISTIDO, DISTANÁSIA E ORTOTANÁSIA.4.1 – Breve introdução.4.2 – Eutanásia.4.2.1 – Suicídio Assistido.4.3 – Distanásia.4.4 – Ortotanásia.5 – PROPOSIÇÕES ACERCA DO DIREITO DE MORRER DIGNAMENTE. 6 – CONCLUSÃO. 7 – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.8 – REFERÊNCIAS ELETRÔNICAS39



 1 – INTRODUÇÃO

A morte pode representar, para muitos, o fim, o último extremo da vida. Há quem acredite que ela seja o momento de término de todas as atividades fisiológicas, deixando-se de lutar na terra e passando-se a um plano inexplicável, que nem toda a ciência humana pode entender.

Porém, atualmente, há pessoas que, em virtude do estado de saúde em que se encontram, acreditam não ter mais vida, a despeito da persistência de sua dinâmica fisiológica – muitas vezes garantida com auxílio de medicamentos e aparelhos – pois estão impedidas de desfrutá-la de uma forma crida digna.

Muitos doentes sofrem pela falta de perspectiva de vida. Alguns jamais poderão se levantar de suas camas, outros dependerão de aparelhos que os ajude a respirar. Muitos dos que passam por esse sofrimento chegam a pedir para morrer, pois não querem sobreviver da única maneira que lhes resta, não querem se tornar um peso na vida de seus familiares, não querem estar limitados. Não sendo possível viver bem e não se resignando a essa forma de vida, essas pessoas esperam que seja atendida sua vontade de morrer dignamente.

Essas considerações refletem um grande e atual questionamento da humanidade relacionado à vida, à liberdade e à dignidade: a pessoa que, acometida de doença, passa por sofrimentos físicos e emocionais e cujo estado, para a medicina, é irreversível ou terminal tem o direito de pedir que lhe ponham termo à sua vida ou para solicitar auxílio ao suicídio? Seria a vida, nesta situação específica, um direito renunciável ou disponível? Poderia o paciente, neste caso, reivindicar o direito de morrer já que a manutenção de seu tratamento médico não pode mais lhe trazer a cura ou melhora? Em suma, existe um direito de morrer dignamente?

A princípio, esta solicitação parece inviável, pois, além de a vida ser um direito fundamental, o ordenamento jurídico incrimina condutas que a ela se opõem. Contudo, não se pode esquecer que o ser humano também tem o direito fundamental à liberdade, que lhe permite expressar sua personalidade. 

Para responder aos questionamentos propostos, faz-se necessário desenvolver importantes considerações sobre os direitos envolvidos.

Inicialmente, será analisado o direito fundamental à vida digna. Para tanto, serão trazidas também as discussões sobre os avanços da medicina na preservação da vida e a importância de se considerar a morte como fase integrante da vida.

Em seguida, serão abordados o direito à liberdade, a relação jurídica médico-paciente, e a autonomia privada do paciente.

Dando seqüência à pesquisa, serão apresentadas as modalidades de disposição da vida solicitadas por aqueles que reivindicam a própria morte.

Finalmente, no último capítulo, serão feitas algumas proposições acerca do direito de morrer dignamente.

Justificam esta pesquisa, em termos ônticos, os avanços da medicina, que, embora tenham trazido consideráveis benefícios, impuseram um paradigma mais voltado para a cura do que para o cuidado com o paciente, quando este talvez devesse ser o foco principal da atividade médica. Além disso, em termos normativos, tem-se o fato de que, apesar de o ordenamento jurídico brasileiro parecer não permitir a satisfação do pedido de morte digna, o tema divide consideráveis opiniões doutrinárias.

Parece ser o momento, pois, de, ao menos, tentar elucidar a dúvida e apresentar contornos de uma possível solução.



2 – O DIREITO FUNDAMENTAL À VIDA DIGNA

2.1 – A vida

A Constituição Federal de 1988, no capítulo que trata dos direitos e deveres individuais e coletivos, consagra no “caput” do artigo 5º, a vida como direito fundamental. Segundo tal dispositivo: “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida (...)”.

Entretanto, a definição desse direito não é, ao contrário do que parece, tarefa das mais fáceis, por ser a vida “algo dinâmico que se transforma incessantemente sem perder sua própria identidade” (SILVA, 2003, p.196).

Vida, segundo José Afonso da Silva (2003, p.196), é um processo vital “que se instaura com a concepção (ou germinação vegetal), transforma-se, progride, mantendo sua identidade, até que muda de qualidade, deixando, então, de ser vida para ser morte”.

Um importante conceito que auxilia no entendimento do que seja a vida é o de saúde, definido pela Organização Mundial da Saúde – OMS – como “o estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença ou enfermidade” (Disponível em http://www.oncopediatria.org.br/portal/artigos/pais/conheca_direitos/oque_saude.jsp. Acesso em: 23/10/2007). Quando esses três aspectos apresentam-se de forma satisfatória para uma pessoa, pode-se considerar que ela tem uma vida saudável. Por isso, para José Afonso da Silva (2003), a vida não contém apenas o caráter biológico, mas será considerada também “na sua acepção biográfica mais compreensiva”. O autor ainda complementa:

a vida humana, que é objeto do direito assegurado no artigo 5º, “caput”, integra-se de elementos materiais (físicos e psíquicos) e imateriais (espirituais). (...). Por isso é que ela constitui a fonte primária de todos os outros bens jurídicos. De nada adiantaria a Constituição assegurar outros direitos fundamentais, como a igualdade, a intimidade, a liberdade, o bem-estar, se não erigisse a vida humana num desses direitos (SILVA, 2003, p.197).

O direito à vida, conforme Alexandre de Moraes (2004, p. 65), “é o mais fundamental de todos os direitos, já que se constitui em pré-requisito à existência do exercício de todos os demais direitos”.

Todavia, não há como falar sobre a vida sem falar sobre a existência digna. Ainda que não se consiga precisar a concepção do termo dignidade, ao menos parece certo não se poder falar que uma vida seja digna se ausente o bem-estar de natureza física, mental e social – aspectos que formam o conceito de saúde. Tendo caráter social, tal condição cabe ao Estado promover, conforme pronunciamento de Cíntia Lucena:

a crescente complexidade da vida social neste século acarretou a reivindicação por direitos também complexos. A garantia da dignidade da pessoa humana exige diferentes mecanismos de atuação para que seja, de fato, resguardada. Para efetivação dessa garantia, cobram-se do Estado tanto ações positivas (atuações) quanto ações negativas (abstenções). O mesmo se dá em relação à saúde (...). Hoje, os Estados são, em sua maioria, forçados por disposição constitucional a proteger a saúde contra todos os perigos, inclusive contra os próprios cidadãos. Daí emerge o seu caráter social (LUCENA, 2004, p. 245).

2.1.1 – Os avanços da medicina na preservação da vida

Aumentar o tempo e a qualidade de vida, tornando-a melhor e mais saudável, é, hoje, o grande objetivo da medicina. Para alcançá-lo, a medicina pode contar com os avanços científicos que têm lhe proporcionado grandes e importantes saltos.

Graças a esses avanços, descobriu-se cura para muitas doenças e tratamentos mais eficazes para outras. Desses avanços surgiram também: poderosos analgésicos que aumentam a possibilidade de controlar a dor; máquinas mais sofisticadas capazes de substituir e controlar órgãos que entram em desfuncionamento e, maior conhecimento biológico, que capacita os profissionais a prognósticos mais precisos (PESSINI, 2002).

Não obstante, todo esse conhecimento e tecnologia não trazem somente benefícios à medicina e às pessoas. Conforme Roxana Cardoso Brasileiro Borges:

o avanço da medicina quanto às tecnologias ao dispor do médico é um acontecimento que tem provocado não apenas benefícios à saúde das pessoas, mas, ao contrário, em alguns momentos, todo esse aparato tecnológico pode acabar afetando a dignidade da pessoa (BORGES, 2001, p. 283).

Léo Pessini (2002) afirma que as ações da saúde são sempre mais marcadas pelo “paradigma da cura”, que se torna prisioneiro do domínio tecnológico da medicina moderna. Suas considerações levam a pensar que se as ações médicas se voltassem para o “paradigma do cuidar”, o declínio e a morte seriam aceitos como parte da condição do ser humano, condição esta que não pode ser curada e que não escapa a nenhum ser humano, qual seja: a sua mortalidade. Assim, a medicina orientada para o alívio do sofrimento estaria “mais preocupada com a pessoa doente do que com a doença da pessoa” (PESSINI, 2002, p. 81).

Este novo paradigma inclui também o conhecimento do que seja dor e do que seja sofrimento, no contexto clínico, a fim de não propiciar ao paciente um tratamento concentrado apenas nos sintomas físicos. É que a dor apresenta outras dimensões além da dimensão física. Ela também pode ser psíquica, social ou espiritual.

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A dor física é a mais óbvia e funciona como um alarme de que algo está errado no funcionamento do corpo. A dor psíquica “freqüentemente surge do enfrentar a inevitabilidade da morte, perdendo o controle sobre o processo de morrer, as esperanças e os sonhos, ou ter de redefinir o mundo” (PESSINI, 2002, p. 87-88). A dor social é a dor do isolamento, experimentada pela dificuldade de comunicação quando o morrer cria o senso de solidão. Além disso, a perda do papel social e familiar é também dura. A dor espiritual, por sua vez, surge da perda de significado, sentido e esperança.

Já o sofrimento pode ser entendido como uma questão pessoal por estar ligado aos valores da pessoa. Para Daniel Callaham,

é a experiência de impotência com o prospecto de dor não aliviada, situação de doença que leva a interpretar a vida vazia de sentido. Portanto, o sofrimento é mais global do que a dor e, essencialmente, é sinônimo de qualidade de vida diminuída (apud PESSINI, 2002, p. 86).

Diante de tudo isso, a medicina deve voltar suas ações para os cuidados com o paciente, visando não somente a cura, mas, sobretudo, seu bem-estar. Os avanços da medicina devem sim se pautar na preservação da vida, mas na preservação de uma vida saudável física, psíquica e socialmente; isto é, uma vida digna. 

2.1.2 – A morte como fase integrante da vida

Mal necessário, castigo, falha médica. Várias são as formas de encarar a morte. O que se sabe é que ela, feliz ou infelizmente, é inevitável. Faz parte da condição humana a mortalidade, em que pese esta condição, às vezes, parecer esquecida. 

A morte deve ser entendida como uma fase integrante da vida. Não é um evento à parte. É o fim do processo de viver. É a última etapa do ciclo da vida. Se o homem é um ser mortal, naturalmente, sua vida termina com a morte.

Esta qualidade natural, porém, não retira o peso e a tristeza que a morte causa, mas leva a pensar que a morte não deve ser encarada como uma falha, mas como um limite que não pode ser vencido, um ponto final à atuação humana, mormente de natureza médica, como questiona, Léo Pessini:

E se a medicina aceitasse a morte como um limite que não pode ser vencido e usasse esse limite como um ponto focal indispensável para pensar a respeito da doença? A realidade da morte como parte integrante da nossa vida biológica seria vista não como uma nota discordante na busca da saúde e bem-estar, mas como um ponto final previsível de sua atuação. Que tal se a medicina científica não fosse uma luta sem fim contra a morte e nos ajudasse a viver a vida mortal e não imortal? Nesta perspectiva a  morte não seria tratada somente como um mal necessário e uma falha científica a ser corrigida em questão de tempo. A aceitação, o trabalhar e a compreensão da morte seriam parte integrante do objetivo principal da medicina de buscar a saúde (PESSINI, 2002, p. 79).

Encarar a morte como parte integrante da vida, como sugeriu Léo Pessini, seria um passo importante para que a medicina se voltasse para os cuidados com o bem-estar do paciente, deixando para traz uma conduta insistentemente voltada para a cura, tornando-a focada na preservação da qualidade de vida do paciente.

2.2 – A dignidade da pessoa humana

A dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil e está prevista no art. 1º, III, da CF/88.

Tendo em vista seu forte conteúdo valorativo, a conceituação do princípio da dignidade da pessoa humana apresenta-se eivada de dificuldades, o que muitas vezes dá margens a conceituações desvinculadas de seu real significado histórico-cultural (MARTINS, 2003).

Segundo José Afonso da Silva (1998, p. 90), dignidade “é atributo intrínseco da essência da pessoa humana, único ser que compreende um valor interno, superior a qualquer preço, que não admite substituição equivalente.” No mesmo sentido, Flademir Jerônimo Belinati Martins (2003, p. 115) reitera ter sido num sentido de “valor intrínseco à pessoa humana que a Constituição Federal utilizou o termo ‘dignidade’, em seu artigo 1º, inciso III, e nos demais dispositivos”.

O referido autor ainda acrescenta que: 

a dignidade deve acompanhar o homem desde seu nascimento até a sua morte, posto que ela é da própria essência da pessoa humana. Assim, parece-nos que a dignidade é um valor imanente à própria condição humana, que identifica o homem como ser único e especial, e que, portanto, permite-lhe exigir ser respeitado como alguém que tem sentido em si mesmo (MARTINS, 2003, p. 115).

A idéia de que o homem pode exigir ser respeitado como alguém que tem fim em si mesmo remonta a Kant (apud SARLET, 2004, p. 33), que sustenta que “o homem, e, duma maneira geral, todo o ser racional, existe como um fim em si mesmo, não simplesmente como meio para o uso arbitrário desta e daquela vontade”.

Neste sentido, José Afonso da Silva apresenta a seguinte definição de pessoa humana,  

todo ser humano, sem distinção, é pessoa, ou seja, um ser espiritual, que é, ao mesmo tempo, fonte e imputação de todos os valores. Consciência e vivência de si próprio, todo ser humano se reproduz no outro como seu correspondente e reflexo de sua espiritualidade, razão por que desconsiderar a si próprio. Por isso é que a pessoa é um centro de imputação jurídica, porque o direito existe em função dela e para propiciar seu desenvolvimento (apud MARTINS, 2003, p. 117). 

Assim, a rigor, com base nas considerações de Flademir Jerônimo Belinati Martins (2003, p. 117), a noção de pessoa deve ser apreendida exatamente a partir da locução ‘pessoa humana’, posto que, ao longo da história da humanidade, recheada de modelos político-jurídicos escravagistas e segregacionistas, nem todos os seres humanos foram qualificados como pessoa, de tal sorte que não é por acaso que o texto constitucional se valeu da locução.

Acrescenta Martins (2003, p. 118) que “pessoa humana é qualquer ser humano que pelo simples existir é tido como pessoa para fins de proteção constitucional”. Assim, de acordo com Renata Barbosa de Almeida (2005, p. 37), “pessoa não é apenas ser humano, mas ser humano considerado na sua individualidade física e espiritual”. 

Embora a doutrina nacional se utilize de vários conceitos para explicar o princípio de dignidade da pessoa humana, pode-se destacar o de Ingo Wolfgang Sarlet: 

a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos (SARLET, 2004, p. 59-60). 

Flademir Jerônimo Belinati Martins também traz uma excelente contribuição ao trabalho ressaltando que,

em síntese, temos que  a dignidade efetivamente constitui qualidade inerente de cada pessoa humana que a faz destinatária do respeito e proteção tanto do Estado, quanto das demais pessoas, impedindo que ela seja alvo não só de quaisquer situações desumanas ou degradantes, como também garantindo-lhe direito ao acesso a condições existenciais mínimas (MARTINS, 2003, p. 120).

Conclui-se, assim, que o princípio da dignidade da pessoa humana atua no sentido de proteger os direitos fundamentais. Do contrário, estariam estes direitos, em geral, e de forma destacada a vida, à mercê da atuação do homem e do próprio Estado, sem o devido respeito que eles impõem. 

2.3 – Noções gerais sobre os direitos fundamentais

Quando se fala em direitos fundamentais do homem, tem-se a idéia de que estes existem para manter a existência e a sobrevivência da pessoa humana. José Afonso da Silva reforça este entendimento realçando que:

no qualificativo fundamentais acha-se a indicação de que se trata de situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive e , às vezes, nem mesmo sobrevive; fundamentais do homem no sentido de que a todos, por igual, devem ser, não apenas formalmente reconhecidos, mas concreta e materialmente efetivados (SILVA, 2003, p. 178. Grifos no original.).

A idéia é de que sem tais direitos, não é possível o desenvolvimento da pessoa humana. Por isso, a expressão direitos fundamentais do homem significa direitos fundamentais da pessoa humana (SILVA, 2003), o que corresponde, por sua vez, à instrumentos de proteção dos aspectos elementares da pessoa, considerada como fim em si mesma.

Quanto à natureza jurídica, os direitos fundamentais são constitucionais e suas normas definidoras têm aplicação imediata, ainda que a Constituição Federal de 1988 faça depender de legislação ulterior a aplicabilidade de algumas normas definidoras dos direitos sociais, enquadrados dentre os fundamentais (SILVA, 2003).

Os direitos fundamentais apresentam como principais características: a historicidade, a inalienabilidade, a imprescritibilidade e a irrenunciabilidade.

Os direitos fundamentais são históricos como qualquer direito. São conjunturais, socialmente contextuais, o que rechaça toda fundamentação baseada no direito natural, na essência do homem ou na natureza das coisas (SILVA, 2003). Também em função desta qualidade, não há falar que os direitos fundamentais sejam absolutos: “quanto ao caráter absoluto que se reconhecia neles, no sentido de imutabilidade, não pode mais ser aceito desde que se entenda que tenha caráter histórico.” (SILVA, 2003, p. 181)

Direitos fundamentais são inalienáveis, ou seja, não se pode transferi-los ou negociá-los, pois não são de conteúdo econômico patrimonial. São também direitos imprescritíveis, não se verificando neles requisitos que importem em sua extinção pelo transcorrer do tempo. Vale dizer, nunca deixam de ser exigíveis. Neste sentido, ressalta-se, por fim, a irrenunciabilidade desses direitos, que equivale a dizer ser admissível o seu não exercício, mas inadmissível sua extinção por abdicação do sujeito (SILVA, 2003).

2.4 – Vida Digna

É inegável a relevância do direito à vida e do princípio da dignidade da pessoa humana no ordenamento jurídico brasileiro. Porém, não há que se falar em hierarquia entre um e outro, uma vez que não são direitos distintos, mas complementares. Serviria a dignidade como elemento caracterizador da vida. Abordando este assunto, Rizzatto Nunes afirma que:

é possível objetar que o direito à vida é mais importante que a garantia da dignidade. Por isso devemos, neste ponto, antes de prosseguir, fazer um comentário relativo à questão da garantia do direito à vida e sua necessária correlação com a dignidade. E o que interessa mesmo é que se possa garantir a vida, mas uma vida digna (NUNES, 2002, p. 52).

Miguel Ekmekdjan resolve esta questão nos seguintes termos: 

Se realizarmos uma enquete sobre a relação hierárquica entre o direito à dignidade e o direito à vida, possivelmente grande parte das respostas apontaria em primeiro lugar o direito à vida e abaixo deste o direito à dignidade. O argumento que aparenta ser decisivo é que sem vida não é possível a dignidade. Esta afirmação pode parecer de grande impacto, contudo, é errônea. Implica uma transposição de lugares. De um ponto de vista biológico, é certo que não é concebível a dignidade em um ser inerte, em uma pedra, ou em um vegetal. Assim como se afirma que sem vida não há dignidade (o que aceitamos somente de um enfoque biológico), nos perguntamos se existe vida sem dignidade. Que vida é esta? Era vida a dos escravos tratados como animais que servem para trabalhar e reproduzir-se? Biologicamente sim, mas eticamente não (apud NUNES, 2002, p. 52).

Rizzatto Nunes (2002, p. 51), ainda neste sentido, reforça que “a dignidade é a primeira garantia das pessoas e a última instância de guarida dos direitos fundamentais”, sendo visível sua violação, quando ocorre.

Assim, não faz sentido tentar estabelecer uma hierarquia entre a vida e a dignidade, tratando-as de forma separada. O correto é fazer da concepção de dignidade um qualificativo a se acrescentar a todos os direitos fundamentais, dentre os quais se inclui e se destaca a vida. Logo, o princípio da dignidade da pessoa humana não é maior nem menor do que a vida, mas, diferente disso, é algo que dá qualidade à esta. Impõe-se que a proteção jurídica se volte para a vida digna.


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Sobre o autor
Aluisio Santos de Oliveira

Advogado, Professor de Direito Civil II (Atos, Fatos e Negócios Jurídicos). Pós-graduado em Direito Privado pela Universidade Gama Filho (2008). Graduado em Direito pela Faculdade de Ciências Humanas de Itabira (Fachi).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Aluisio Santos. O direito de morrer dignamente. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3146, 11 fev. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21065. Acesso em: 19 abr. 2024.

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