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Do aborto de fetos anencéfalos e a decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF 54: a reflexão continua!

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3. DA IMPOSSIBILIDADE DE ATUAÇÃO DO STF COMO LEGISLADOR POSITIVO

3.1. Do Crime de Aborto e Da Inaplicabilidade da Interpretação Conforme à Constituição

O objeto da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n°. 54, proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), perante o Supremo Tribunal Federal, pleiteou o emprego da interpretação conforme à Constituição ao conjunto normativo representado pelos arts. 124, 126, caput, e 128, I e II, do Código Penal, para fins de considerar como contrários à preceitos fundamentais a obstacularização do aborto de fetos anencéfalos. Para melhor compreensão do tema, trascreve-se os citados dispositivos da lei penal:

“Art. 124 - Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque: Pena - detenção, de um a três anos”;

"Art. 126 - Provocar aborto com o consentimento da gestante: Pena - reclusão, de um a quatro anos”;

“Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico: I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante; II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal”.

A rigor, a CNTS, por meio do seu advogado e expoente professor, Dr. Luis Roberto Barroso, pretende dar nova interpretação a velhíssimas normas de caráter penal, propriamente com a criação de nova excludente de ilitude, contra a clareza do sentido emergente de um conjunoto de normas que jamais provocaram, até hoje, dúvida alguma de interpretação. Como caberia ao STF, nesse caso, exercer controle de constitucionalidade utilizando-se da técnida de interpretação conforme à Constituição?

Vale lembrar, nesse ponto, que a técnica de interpretação conforme é utilizada quando de determinado dispositivo se irradiam uma ou mais interpretações e, pelo menos uma delas, se mostra contrária à Constituição Federal. Mas, não é isso que se percebe da leitura dos artigos penais impugnados. Não há margem, sequer, para interpretações outras senão a que se retira da literalidade do texto da lei, qual seja: é crime a prática de aborto, praticada por si ou consentida a outro fazê-lo, (arts. 124 e 126, CP), salvo nas hipóteses de risco de vida para a mãe ou em caso de estupro. (art. 128, I e II, CP).

Ou seja, as únicas duas possibilidades de aborto permitidas no direito pátrio seriam no caso de risco de vida para a mãe e em caso de estupro. Em primeiro plano, o caso em tela, abstratamente, nada tem a ver com estupro. Por outro lado, também não se está falando da hipótese de risco de vida da mãe, pois caso a gravidez do feto anencéfalo resulte em risco de vida para a mãe, nessa hipótese admitir-se-á a interrupção da gestação, não porque o feto é anencéfalo, mas para preservação da vida da mãe. Trata-se mesmo de gestação de feto anencéfalo em que o risco de vida não está configurado, caso contrario nem precisaria haver a discussão, porque recairia na excludente já tipificada por risco de vida. Trata-se, in casu, de interrupção da gravidez por mero sofrimento, desconforto fisico e psíquico da mãe, hipótese cabalmente não prevista pelo texto legal.

Corroborando o exposto, vale ressaltar que a própria Procuradoria-Geral da República, inicialmente representada pelo Dr. Cláudio Fonteles, houve por bem levantar a questão preliminar da inadequação da via processual eleita pela CNTS, considerando a ADPF instrumento processual inapto para o manejo da interpretação conforme à Constituição, não sendo o caso, na espécie, de aplicabilidade dessa técnica de controle de constitucionalidade, uma vez que os dispositivos penais questionados não rendem ensejo a mais de uma interpretação lógica.

No linguajar do ilustre representante do Parquet, os dispositivos do Código Penal versantes sobre as modalidades do crime de aborto: “Bastam-se no que enunciam, e como estritamente enunciam”. Nesse mesmo sentido, destaque-se trecho do voto da Exma. Min. Ellen Gracie, à época ainda ministra da Suprema Corte, quando estava posta questão de ordem referente à admissibilidade da ADPF n°. 54, em sede de liminar:

“O que vem ao crivo do Tribunal nesta ação? Uma norma velha de 65 anos, que ao momento da promulgação da Constituição Federal de 1988, foi recepcionada, como todo o Código Penal. Essa disposição de lei comina com pena privativa de liberdade quem promova o abortamento. Criadas foram duas exceções em que tal prática não será penalizada. O que a ação pretende é fazer inserir, nesse dispositivo, por criação judicial, uma terceira culpa exculpante. Ou seja, que, além do abortamento sentimental (gravidez fruto da violência) e do abortamento terapêutico (risco de vida para a mãe), tembém seja isento de penalidade o abortamento de feto diagnosticado como anencéfalo. É, sem dúvida, atuação legislativa que se pretende do Tribunal."

Não há, pois, rota de colisão do texto penal com a Carta Magna. Isso é inconteste. O objeto da ação, por meio de engenhoso manejo da parte autora, é tentar driblar a via legislativa, correspondendo inegavelmente à tentativa de obter da Suprema Corte manifestação jurisdicional que acrescente ao ordenamento penal nova espécie legislativa. Ou seja, a rigor, pede-se à Corte Maior que atue como legislador positivo. Em questão de ordem da ADPF n°. 54, o então Min. Carlos Velloso, ainda em sede de liminar, invocando a doutrina do Min. Luiz Gallotti, assim expôs:

 "O que se pretende, portanto é que o supremo Tribunal Federal inove no mundo jurídico. E inove mediante interpretação. Vale invocar, novamente, a lição do saudoso Min. Luiz Gallotti: podemos interpretar a lei, de modo a arredar a inconstitucionalidade, mas interpretar interpretando e, não, mudando-lhe o texto".

O pressuposto para a utilização da técnica de interpretação conforme à Constituição é haver uma ou várias interpretações possíveis e contraditórias a respeito de preceitos constitucionais. Não se trata, contudo, de controvérsia puramente acadêmica, no sentido de que qualquer texto normativo é sujeito a varias leituras. Caso contrário, incontáveis dispositivos legais estariam sujeitos, ainda que reflexamente, a afrontar princípios abstratamente considerados, sobretudo o princípio da dignidade da pessoa humana, como invocado pela parte autora. Não se pode inserir-se no campo da pura exegese que nada tem a ver com a interpretação conforme à Constituição. Trata-se de exigir controvérsia concreta para que haja confronto juridicamente relevante, por ser o controle de constitucionalidade medida repressiva de invasão judicial em outra instância de poder.

Uma coisa é interpretação dúbia contrária à Constituição, outra é ter dúvida se o caso concreto subsume-se à espécie normativa. Mas o juízo de subsunção não se confunde com a interpretação abstrata da norma. A hermenêutica jurídica se desenvolve em outro plano. E nesse caso, a norma, abstratamente considerada, não admite mesmo elucubrações diversas, ginástica hermenêutica e construção engenhosa, inábil a ensejar viabilização por técnica de interpretação conforme à Constituição, porquanto a missão dos exegetas encontra limite insuperável na própria univocidade das palavras. Em outros termos, quando a lei é clara não há espaço para interpretações outras. Nesse sentido, o Exmo. Min. Cezar Peluso, em seu voto no julgamento da ADPF n°. 54, ponderou:

 “A ação de limitação intencional de vida intra-uterina, suposto acometida esta de anencefalia, corresponde ao tipo penal do aborto, não havendo, a meu sentir, com o devido respeito, malabarismo hermenêutico ou ginástica de dialética capaz de conduzir-me a conclusão diversa. Do ponto de vista jurídico, para que o aborto possa ser considerado crime, basta a eliminação da vida, abstraída toda especulação quanto à sua viabilidade futura ou extra-uterina. O aborto do feto anencéfalo é conduta vedada de forma frontal pela ordem jurídica. O princípio da legalidade e a cláusula geral da liberdade são limitados pela existência das leis, e, nos casos tipificados como crime, não há espaço de liberdade jurídica”.

3.2. Do Princípio da Separação de Poderes e a Atuação Legislativa do STF

Estabelece Constituição Federal um dos postulados basilares da República Federativa Brasileira. Trata-se do princípio da  separação dos poderes, nos termos do art. 2° da Carta Magna:

"Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário". (grifo nosso)

Por decorrência do já exposto, estamos a perceber, de fato, uma atuação do Supremo Tribunal Federal como verdadeiro legislador positivo, violando o princípio da separação dos poderes, o qual encontra-se intrínsecamente arraigado no Estado Democrático de Direito. A Suprema Corte, em derespeito a tal premissa fundamental, se vê no poder de imiscuir-se para legislar e, assim, vai aonde a lei não permite ir, lendo sentido que da lei não emerge.

O controle de constitucionalidade, a propósito, exige crise entre os poderes, daí porque reveste-se de caráter excepcional, não devendo ser regra pela qual o judiciário pode se valer para alcançar objetivos outros (legislar) que não se relacionem com a estrita salvaguarda da Constituição. A rigor, a ADPF n°. 54, trata-se de tentativa pela autora de artificiosa utilização de novo instituto, com o objetivo que nela não se comporta, qual seja, a criação de excludente de ilicitude não prevista para o caso de aborto de feto anencéfalo, juntando-se às duas hipóteses já sabidamente permissivas. Cuida-se, mesmo, de atuação legislativa do Supremo Tribunal Federal que, fazendo as vezes de legislador positivo, cria nova excludente, sob o pretexto de interpretação conforme à Constituição.

Nesse ponto, esclarecendo o trabalho engenhoso da criação de nova excludente de ilicitude por via de suposto controle de constitucionalidade, vale destacar trecho do voto do Exmo. Min. Cezar Peluso, quando ainda em sede de questão de ordem da ADPF n°. 54, já destacava o possível surgimento anômalo de nova excludente de ilicitude:

“Parece-me que não é tudo, porque no fundo se trata - e nisso não há dúvida alguma - de criar, à margem da interpretação das normas de caráter penal, mais uma excludente de ilicitude. E neste ponto gostaria de fazer a seguinte observação: essa tarefa é própria de outra instância, não desta Corte, que já as tem outras e gravíssimas, porque o foro adequado da questão é do Legislativo, que deve ser o intérprete dos valores culturais da sociedade e decidir quais possam ser as diretrizes determinantes da edição de normas jurídicas. É no Congresso Nacional que se deve debater se a chamada "antecipação do parto", nesse caso, deve ser, ou não, considerada excludente de ilicitude".

Ora, a jurisdição constitucional é normalmente convocada para expungir do ordenamento jurídico normas que estejam em descompasso com a Constituição, não para oferecer acréscimos ao conjunto normativo positivo em usurpação da competência dos demais poderes. O princípio da separação dos poderes é caríssimo ao Estado Democrático de Direto, inclui-se no rol das cláusulas pétreas, nos termos do art. 60, §4º, III, da CF/88, constituindo-se em núcleo intangível posto pelo constituinte originário, cujo desrespeito é irreparável e inadmissível pela Corte Maior. O postulado da independência e harmonia entre os poderes atua como mecanismo de autolimitação ao judiciário, no chamado sistema de freios e contrapesos ("checks and balances system") [4].

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O Supremo Tribunal Federal, assim, em respeito à separação dos poderes, ainda que se cogite tema de relevo social, deve ficar adstrito à pratica de atos de sua competência constitucional, cuja função abrange o papel de legislador negativo, extirpando do ordenamento jurídico as normas incompatíveis com a Constituição, mas a legislação positiva foge da sua alçada. Até mesmo a legislação negativa deve ser exercida com cautela extrema, diante do risco de usurpação de poderes atribuídos constitucionalmente aos integrantes do Congresso Nacional.

Foi ao legislativo, batizado pela representação popular, e não ao judiciário, que a Constituição Federal conferiu a função de materializar o direito positivo regente nas relações sociais. Logo, os integrantes do judiciário carecem de unção legitimatória conferida pelo povo para promover inovações no ordenamento normativo, não podendo se apresentar como se tivessem sido eleitos pelo voto popular. Caso contrário, a usurpação desse poder pela Corte Suprema, em última instância, representaria absorção do próprio poder do povo, resultando em afronta à soberania popular. Nesse sentido, é claro o parágrafo único do art. 1° da Constituição Federal:

"Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição." (grifo nosso)

Daí se extrai que eventual atividade legislativa ativa da Suprema Corte trata-se, ao fim, não somente de usurpação de poder legiferante, mas, até mesmo, de perigosa mitigação da soberania popular, uma vez que os membros da Corte não possuem legitimação emanada do povo. Veja-se, a esse respeito, trecho do voto do Exmo. Min. Ricardo Lewandowski, no julgamento da ADPF n°. 54:

"Destarte, não é lícito ao mais alto órgão judicante do País, a pretexto de empreender interpretação conforme a Constituição, envergar as vestes de legislador positivo, criando normas legais, 'ex novo', mediante decisão pretoriana. Em outros termos, não é dado aos integrantes do Poder Judiciário, que carecem da unção legitimadora do voto popular, promover inovações no ordenamento normativo como se parlamentares eleitos fossem".

Vale ressaltar que o voto do Exmo. Min. Gilmar Mendes na ADPF n°. 54, ponderou que era inimaginável ao legislador de 1940, ano da edição do Código Penal, em razão das próprias limitações tecnológicas existentes, prever o aborto para fetos anencéfalos. E nesse pensar, com o avanço das técnicas de diagnóstico, defende o ministro que se tornou comum e relativamente simples descobrir a anencefalia fetal, de modo que a não inclusão na legislação penal dessa hipótese de excludente de ilicitude pode ser considerada uma mera omissão legislativa, não condizente com o Código Penal e com a própria Constituição.

Data maxima venia, tal entendimento haveria de prosperar se o Código Penal fosse imutável e, após a legislação ordinária de 1940, nunca mais pudesse o legislador ter a chance de incluir novos dispositivos em complemento aos originários. Ora, se era inimaginável ao legislador da época prever o aborto de feto anencéfalo, ao legislador atual não mais assim ocorre. Se o Congresso Nacional o desejasse, poderia ter alterado a legislação para incluir os anencéfalos nos casos em que o aborto não é criminalizado. Mas, se até hoje não o fez, não caberia ao STF usurpar tal competência, justamente por não possuir legitimidade para criar, judicialmente, esta hipótese legal.

Não bastasse todo o exposto, é de se reconhecer que já existem projetos de lei tramitando nas casas legislativas acerca do aborto, o que diminui, ainda mais, a autoridade da Suprema Corte para atuação legislativa, não podendo fundamentar-se em eventual inércia legislativa. Dentre as proposituras legislativas, uma deles, como já vista, trata-se do PL nº 50, de iniciativa do Senador Mozarildo Cavalcanti, também incluindo um inciso no citado dispositivo do Codex Repressivo, com a seguinte redação: “Art. 128. (...) III – se o feto apresenta anencefalia, diagnosticada por dois médicos que não integrem a equipe responsável pela realização do aborto, e o procedimento é precedido de consentimento por escrito da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal. Parágrafo único. Na hipótese do inciso III, o diagnóstico de anencefalia atenderá aos critérios técnicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina”.

Vale ressaltar, aliás, que o texto do supracitado projeto de lei, no que tange aos parâmetros para a regulamentação da espécie, aproxima-se da pertiinente preocupação externada pelo Exmo. Min. Gilmar Mendes, quando em seu voto, como mencionado alhures, indicou a necessidade de se conferir maior segurança jurídica no diagnóstico da anencefalia. A referida proposta legislativa, a propósito, foi expressamente consignada no voto do Exmo. Min. Ricardo Lewandowski, que respaldou a sua decisão de indeferimento da ADPF n.° 54, em decorrência, também, da atuação legislativa já em andamento.

Além daquele, há outro projeto versando sobre a mesma problemática, que se encontra sob crivo do legislativo, referente ao PL nº 4403/2004, de autoria da Deputada Jandira Feghali, o qual busca acrescentar também um terceiro inciso ao art. 128 do Código Penal para: “Art. 128. (...) III – isentar de pena a prática de ‘aborto terapêutico’ em caso de anomalia do feto, incluindo o feto anencéfalo, que implique a impossibilidade de vida extrauterina”.

Inúmeras outras, ainda, foram as iniciativas parlamentares tendentes a alargar as excludentes de ilicitude na prática de aborto, dentre as quais sintetiza-se, de modo não exaustivo: PL 4304/04, Dep. Eduardo Valverde; PL 3744/04, Dep. Coronel Alves; PL 2929/97, Dep. Wigberto Tartuce; PL 956/96, Dep. Marta Suplicy; PL 3280/92, Dep. Luiz Moreira; PL 1174/91, Dep. Eduardo Jorge. E mais recentemente, a proposta de novo Código Penal prevê, de forma ainda mais temerária, a possibibilidade de aborto por "excusa psicológica" da mãe, hipótese em que se poderia haver permissivo legal ao abortamento no caso da gestante alegar, até a décima segunda semana de gestação, que não tem condições psicológicas de continuar com o processo de criação intra-uterino do filho.

A rigor, analisando-se objetivamente a problemática no âmbito do parlamento, observamos uma agenda de projetos de leis em torno da aprovação do aborto no Congresso nos últimos anos, em uma intensidade incongruente com o que tem se observado historicamente desde a sistemática adotada pelo Código Penal de 1940. A aprovação de tais projetos parece estar sendo dificultada pelo significativo aumento, a partir das eleições de 2010, da bancada parlamentar contrária a prática do aborto, a qual, materializada também por representantes legitimamente eleitos, tem resultado em óbice à rápida aprovação daqueles projetos. De fato, frustações como tais podem resultar na tentativa de, por vias oblíquas, emplacar no judiciário o mesmo intento, agora, de modo transverso.

Há que se reconhecer que o presente debate já havia alcançado os representantes eleitos do povo, os quais, até o momento, não tinham chegado ainda a uma solução hábil a positivar e ampliar excludentes outras ao crime de aborto que não as duas expressamente previstas no Código Penal. Ante a polêmica em torno do tema, sobretudo a dificuldade envolvida no regramento de seus distintos aspectos técnicos, jurídicos e científicos, não haveria suscetibilidade de disciplina por via judicial. O Supremo Tribunal Federal, em que pese a nobre função que exerce, é desprovido de legitimação popular para legislar, razão pela qual não se pode admitir que membros não eleitos possam responder pela atividade legiferante, que representa a própria voz culturalmente enraizada de toda a sociedade.

Portanto, se já era reprovável a atuação de legislador positivo do judiciário, atraindo para si e usurpando competência que a Constituição não lhe deu, onerando o consagrado princípio da separação dos poderes ao arrepio dos preceitos fundamentais, muito maior a reprovação desta conduta quando se percebe que o poder legislativo não se encontra omisso, mas no exercício do seu mister, com a necessária discussão de tema tão complexo. Definitivamente, não se pode esperar que a Suprema Corte, a quem cabe dar o exemplo da boa harmonia entre as instâncias de poder, venha atuar de forma contrária. Ao desrespeitar as imposições constitucionais da instância legislativa, a Corte Maior fere de morte não só a separação dos poderes, mas também a soberania popular.

3.3. Da Laicidade Estalal e sua relação com a Atividade Judicial

Por fim, estando patente a desarrazoabilidade da criação de mais uma excludente de ilicitude para o crime de aborto pela via da ADPF n. 54, seja no mérito, em decorrência da indisponibilidade do direito à vida, seja na forma, com a usurpação de poder pelo Supremo Tribunal Federal, é importante tecer, ainda, brevíssimas linhas acerca da laicidade estatal e sua relação com o aborto de fetos anencéfalos. Isto porque, na decisão da Suprema Corte, especialmente no voto do eminente relator, Exmo. Min. Marco Aurélio, encontramos referências à invocação do Estado laico como um dos argumentos aventados para o aborto de fetos anencéfalos.

Não é o fato de determinado valor defendido entrar também na esfera religiosa que o torna discurso ofensivo à laicidade. Os valores sociais irradiam-se por diferentes campos sociais, seja político, econômico, moral, ético, religioso, dentre tantos outros, daí porque não é a instância representativa que diz sobre determinado valor, e sim, a essência deste, a qual está sendo defendida de forma lícita, plural, laica. Em outros termos: não é porque determinada questão é defendida por representantes religiosos que o torna, em essência, tema destinado a defender determinada religião em detrimento de outra. Somente neste último caso poderia-se invocar a laicidade. Até porque instituições ideologicamente diferentes em certos aspectos podem convergir em tantos outros, e vice-versa. O que diz, portanto, sobre um tema é a sua essência, e não a entidade que o defende. Sem observar o real sentido do princípio do Estado laico, estar-se-á correndo o risco de desvirtuação da essência desse postulado, que se traduz na impossibilidade de reprimenda à liberdade de crenças. Eis a sua idônea acepção.

É necessária prudência intelectual no adequado julgamento dos casos que solicitam os fundamentos da laicidade estatal para que valores tradicionais e culturais reconhecidamente enraizados na sociedade, como é o caso do repúdio ao aborto, não sejam simplesmente descartados sob a bandeira de um argumento que fundamenta o termo “laico” como uma necessária oposição a valores que façam parte de crenças religiosas. Principalmente, quando a Constituição Federal Brasileira, que representa a positivação dos valores históricos de um povo, foi promulgada já sob o alicerce dos ideais vigentes à sua época. É preciso cuidado para não se colocar à margem contribuições dadas pelas instâncias representativas de valores socialmente já consolidados, sejam elas religiosas ou não, pois como dito, mesmos valores podem permeiar ideologias de inúmeras instituições que divergem entre si em outros.

Parece óbvio, mas, na prática, nem sempre essa premissa é levada a contento, a se observar pelas dispisciendas considerações do ilustre relator da ADPF n°. 54, Exmo. Min. Marco Aurélio, que em parte do seu voto, deteu-se à laicidade estatal, quando não há, data venia, correlação temática. Ora, se os fundamentos da laicidade estão sendo utilizados como argumentação para defesa do aborto do anencéfalo, óbvia e claramente já se auto-revela a suposição, que se está combatendo, de que a proibição do aborto viria de uma crença religiosa e exclusivamente dela. Mas a essência do tema, como já exposto, em nada guarda relação com religiosidade em prejuízo a outras crenças, daí porque não há choque com o princípio da laicidade estatal, mas o tema de fundo escapa desse plano, vai além, é valor moral e ético insculpido na sociedade

Nesse ponto, sob o prisma eminentemente jurídico, é de se reconhecer que as opiniões, crenças ou valores das instâncias da sociedade das mais variadas ideologias, sejam elas movidas pelo campo ético, moral, social, cultural ou religioso, devem estar inseridas nos debates sem que haja ferimento, por isso, do princípio da laicidade estatal, independente de quem as defenda. Por outro lado, e reforçando estar-se sob o prisma estritamente jurídico, tais instâncias representativas, religiosas ou não, seja qual for a ideologia defendida, são tão legítimas para discussões sociais, a merecer tratamento isonômico em suas ponderações, como o são todas as outras, sem que o princípio da laicidade seja levantado como óbice para a valoração jurídica dos seus argumentos, silenciando-lhes a voz.

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Sobre o autor
Francisco Gilney Bezerra de Carvalho Ferreira

Mestrando em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Especialista em Direito Público pela Faculdade Projeção e MBA em Gestão Pública pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Graduado em Direito pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR) e Engenharia Civil pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Procurador Federal em exercício pela Advocacia-Geral da União (AGU) e Professor do Curso de Graduação em Direito da Faculdade Luciano Feijão (FLF-Sobral/CE).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERREIRA, Francisco Gilney Bezerra Carvalho. Do aborto de fetos anencéfalos e a decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF 54: a reflexão continua!. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3220, 25 abr. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21612. Acesso em: 2 mai. 2024.

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