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A informação como direito fundamental do consumidor

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01/10/2001 às 00:00
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6. Titular do direito à informação

O consumidor, tantas vezes referido, é o titular do direito à informação. Mas qual consumidor? Por certo não é consumidor individual e concreto em determinada relação de consumo, pois o dever de informar é objetivamente concebido em relação a todos os adquirentes e utentes do produto ou do serviço fornecido. Dessarte, há de ser considerado o consumidor típico, independentemente do maior ou menor grau de acesso individual à informação(10).

O consumidor objetivamente considerado é um tipo ideal, médio, para fins de identificação jurídica, ou seja, é o tipo médio a que se destina o produto ou o serviço. O tipo ideal ou médio é transpessoal, ultrapassa os interesses e condições individuais ou subjetivos e envolve o interesse coletivo de todos os destinatários, no tempo e no espaço. Sua configuração rejeita um juízo de valor universal, a exemplo do bonus paterfamilias do direito antigo. Em alguns casos, o consumidor típico é qualquer um, inclusive o iletrado, para o qual a informação deve ser a mais simples e acessível possível, como se dá com os produtos alimentícios postos à disposição em supermercados. Em outros casos, certo grau de informação técnica é necessário para o consumidor típico, como se dá com produtos de informática.


7. Dever de informar

O direito fundamental à informação resta assegurado ao consumidor se o correspectivo dever de informar, por parte do fornecedor, estiver cumprido. É o ônus que se lhe impõe, em decorrência do exercício de atividade econômica lícita.

Para o professor argentino Roberto M. Lopez Cabana, o dever de informar, imposto a quem produz, importa ou comercializa coisas ou presta serviços, se justifica em razão de se enfrentarem nessa peculiar relação, um profissional e um profano, e a lei tem um dever tuitivo com este último(11).

O dever de informar tem raiz no tradicional princípio da boa fé objetiva, significante da representação que um comportamento provoca no outro, de conduta matrizada na lealdade, na correção, na probidade, na confiança, na ausência de intenção lesiva ou prejudicial. A boa fé objetiva é regra de conduta dos indivíduos nas relações jurídicas obrigacionais. Interessam as repercussões de certos comportamentos na confiança que as pessoas normalmente neles depositam(12). Confia-se no significado comum, usual, objetivo da conduta ou comportamento reconhecível no mundo social. No direito comum dos contratos, esse princípio implícito, sem embargo da omissão proposital da codificação tradicional, como a brasileira, foi recorrente na doutrina mais atenta à evolução do direito contratual.

O princípio da boa fé objetiva foi refuncionalizado no direito do consumidor, otimizando-se sua dimensão de cláusula geral, de modo a servir de parâmetro de validade dos contratos de consumo, principalmente nas condições gerais dos contratos. Anteriormente ao advento das legislações específicas, a jurisprudência dos tribunais socorreu-se à larga da boa fé como cláusula geral definidora do limite das condições gerais dos contratos e do efetivo cumprimento do dever de informar.

Contudo, o dever de informar não é apenas a realização do princípio da boa fé. Na evolução do direito do consumidor assumiu feição cada vez mais objetiva, relacionado à atividade lícita de fornecimento de produtos e serviços. A teoria contratual também construiu a doutrina dos deveres anexos, deveres acessórios ou deveres secundários ao da prestação principal, para enquadrar o dever de informar(13). O desenvolvimento do direito do consumidor foi além, transformando-o no correspectivo do direito à informação, como direito fundamental, e o elevando a condicionante e determinante do conteúdo da prestação principal do fornecedor. Não se trata apenas de dever anexo.

A Constituição brasileira (art. 170) estabelece que a atividade econômica deve observar, entre outros, o princípio de defesa do consumidor. O princípio é dirigido não só ao Estado mas, principalmente, aos agentes econômicos. O princípio é abrangente do direito à informação, referido explicitamente no artigo 5º, XIV.

A fraca densidade semântica do princípio não é óbice à sua aplicação ou executividade imediata. Havendo, como há, legislação infraconstitucional regulamentando a matéria, sua aplicação deverá ser, sempre, informada do princípio.

A concepção, a fabricação, a composição, o uso e a utilização dos produtos e serviços atingiu, em nossa era, elevados níveis de complexidade, especialidade e desenvolvimento científico e tecnológico cujo conhecimento é difícil ou impossível de domínio pelo consumidor típico, ao qual eles se destinam. A massificação do consumo, por outro lado, agravou o distanciamento da informação suficiente. Nesse quadro, é compreensível que o direito avance para tornar o dever de informar um dos esteios eficazes do sistema de proteção.

O dever de informar impõe-se a todos os que participam do lançamento do produto ou serviço, desde sua origem, inclusive prepostos e representantes autônomos. É dever solidário, gerador de obrigação solidária. Essa solidariedade passiva é necessária(14), como instrumento indispensável de eficaz proteção ao consumidor, para que ele que não tenha de suportar o ônus desarrazoado de identificar o responsável pela informação, dentre todos os integrantes da respectiva cadeia econômica (produtor, fabricante, importador, distribuidor, comerciante, prestador do serviço).


8. Requisitos do dever de informar

Cumpre-se o dever de informar quando a informação recebida pelo consumidor típico preencha os requisitos de adequação, suficiência e veracidade. Os requisitos devem estar interligados. A ausência de qualquer deles importa descumprimento do dever de informar.

A adequação diz com os meios de informação utilizados e com o respectivo conteúdo. Os meios devem ser compatíveis com o produto ou o serviço determinados e o consumidor destinatário típico. Os signos empregados (imagens, palavras, sons) devem ser claros e precisos, estimulantes do conhecimento e da compreensão. No caso de produtos, a informação deve referir à composição, aos riscos, à periculosidade.

Maior cautela deve haver quando o dever de informar veicula-se por meio da informação publicitária, que é de natureza diversa, como adiante se dirá. Tome-se o exemplo do medicamento. A informação da composição e dos riscos pode estar neutralizada pela informação publicitária contida na embalagem ou na bula impressa interna. Nessa hipótese, a informação não será adequada, cabendo ao fornecedor provar o contrário.

A legislação de proteção do consumidor destina à linguagem empregada na informação especial cuidado. Em primeiro lugar, o idioma será o vernáculo. Em segundo lugar, os termos empregados hão de ser compatíveis com o consumidor típico destinatário. Em terceiro lugar, toda a informação necessária que envolva riscos ou ônus que devem ser suportados pelo consumidor será destacada, de modo a que "saltem aos olhos". Alguns termos em língua estrangeira podem ser empregados, sem risco de infração ao dever de informar, quando já tenham ingressado no uso corrente, desde que o consumidor típico com eles esteja familiarizado. No campo da informática, por exemplo, há universalização de alguns termos em inglês, cujas traduções são pouco expressivas, a exemplo do aparelho denominado mouse.

A suficiência relaciona-se com a completude e integralidade da informação. Antes do advento do direito do consumidor era comum a omissão, a precariedade, a lacuna, quase sempre intencionais, relativamente a dados ou referências não vantajosas ao produto ou serviço. A ausência de informação sobre prazo de validade de um produto alimentício, por exemplo, gera confiança no consumidor de que possa ainda ser consumido, enquanto que a informação suficiente permite-lhe escolher aquele que seja de fabricação mais recente. Situação amplamente divulgada pela imprensa mundial foi a das indústrias de tabaco que sonegaram informação, de seu domínio, acerca dos danos à saúde dos consumidores.

Insuficiente é, também, a informação que reduz, de modo proposital, as conseqüências danosas pelo uso do produto, em virtude do estágio ainda incerto do conhecimento científico ou tecnológico.

Problema mais delicado diz respeito ao chamado risco do desenvolvimento. Considera-se assim o lançamento do produto ou do serviço, que posteriormente vêm a ser demonstrados inadequados ou inseguros em virtude do desenvolvimento científico ou tecnológico posterior. No momento em que foram concebidos ou desenvolvidos mostravam-se compatíveis com o nível do conhecimento existente. Há forte controvérsia na doutrina. No Brasil, a tendência é desconsiderar o risco do desenvolvimento como excludente de responsabilidade, enquadrando-o nos riscos da atividade do fornecedor. Pessoalmente, conforme escrevi alhures(15), entendo que, no geral o risco de desenvolvimento deve ser considerado como exoneratório de responsabilidade. Todavia, a falta de informação suficiente, acerca do estágio do conhecimento científico e tecnológico sobre a matéria, infringe o dever de informar, pois sonega dados necessários à escolha do consumidor.

Todo produto ou serviço lançado no mercado, em conformidade com os dados de ciência e tecnologia atualmente irrefutáveis, considera-se adequado e seguro ao consumo. Porém, o progressivo desenvolvimento científico e tecnológico poderá alcançar estágios de aperfeiçoamento e qualificação dos mesmos produtos e serviços que tornem os anteriores inadequados ao uso.

É de se ter como unívocos os significados de state of the art (o produto está de acordo com os padrões correntes na data de seu lançamento) e risco de desenvolvimento (o produto não alcançou o nível de qualidade e segurança que seria lícito esperar, na data de seu lançamento), que a doutrina estrangeira busca distinguir(16) Exemplifica-se a primeira hipótese com o cinto de segurança nos automóveis que não se tinha como necessário décadas atrás; a segunda, com a inadequação do produto por excessiva toxidade, apenas mais tarde reconhecida.

A legislação mais recente encaminha-se a considerar exonerativa de responsabilidade o chamado risco de desenvolvimento (incluindo o state of the art), especialmente as que perfilharam a Diretiva da Comunidade Européia de 1985, acerca da responsabilidade do fornecedor. A Diretiva permitiu que se excluísse o risco do desenvolvimento quando se provar que o estado do conhecimento científico e tecnológico não permitia a descoberta da existência do defeito.

O Código do Consumidor brasileiro foi omisso a respeito, o que levou parte da doutrina a sustentar a impossibilidade da exoneração da responsabilidade por tal motivo, permanecendo imputável o fornecedor. O principal argumento é que a lei brasileira adota a responsabilidade objetiva, mercê do risco criado pela atividade econômica, não possuindo os consumidores meios de conhecerem os riscos que determinado produto encerra.

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A veracidade é o terceiro dos mais importantes requisitos do dever de informar. Considera-se veraz a informação correspondente às reais características do produto e do serviço, além dos dados corretos acerca de composição, conteúdo, preço, prazos, garantias e riscos. A publicidade não verdadeira, ou parcialmente verdadeira, é considerada enganosa e o direito do consumidor destina especial atenção a suas conseqüências.

O artigo l º do Código Brasileiro de Auto-Regulamentação Publicitária estabelece que todo anúncio deve ser "honesto e verdadeiro".


9. Efeitos jurídicos da informação publicitária

Meio século atrás, Jean Carbonnier levantara a necessidade da análise jurídica da publicidade, ao afirmar que "o estudo do contrato na nossa época não se deveria separar de um estudo da publicidade"(17).

Para o Código Brasileiro de Auto-Regulamentação Publicitária, publicidade é "toda atividade destinada a estimular o consumo de bens e serviços, bem como promover instituições, conceitos e idéias"(18). Para atingir suas finalidades, a publicidade deve observar os princípios básicos de liberdade, identificação, veracidade, lealdade e ordem pública. Porém, há uma distinção qualitativa com a informação em sentido estrito. A publicidade tem por fito atrair e estimular o consumo, enquanto s informação visa a dotar o consumidor de elementos objetivos de realidade que lhe permitam conhecer os produtos e serviços e exercer suas escolhas. Sem embargo da distinção, ambas são espécies do gênero informação, incidindo o dever de informar.

Afirmou-se, acima, que a informação obriga. Esclareça-se que obriga o fornecedor, pois o dever de informar de modo adequado, suficiente e veraz decorre da atividade que exerce. Essa obrigação desponta com especial força na publicidade dos produtos e serviços lançados no mercado de consumo, modificando substancialmente os valores jurídicos. A publicidade utiliza principalmente os meios de comunicação social, mas pode estar contida em mensagens dirigidas diretamente ao consumidor, seja por mala direta seja pela Internet, e nos próprios produtos.

Até o advento e consolidação do direito do consumidor, a publicidade não gerava conseqüências jurídicas a quem dela se utilizasse ou mesmo abusasse. Entendia-se que era o preço a pagar ou a ser suportado pela sociedade, para o desenvolvimento das atividades econômicas, em favor do irrestrito princípio da livre iniciativa. Afirmava-se que era um "dolus bonus", tolerado ou desconsiderado pelo direito, pois sua função era apenas a de estimular e atrair ao consumo. Mas, já se disse que "a evolução contemporânea do direito positivo, caracterizado pela proteção e informação dos consumidores, a regulamentação da publicidade, a força obrigatória dos documentos publicitários e o desenvolvimento da obrigação de informar, parece deixar um lugar muito reduzido ao ‘dolus bonus’"(19). Ao meu sentir não há mais lugar algum ao "dolus bonus".

Para realizar o direito fundamental à informação, o direito do consumidor toma a publicidade sob dois aspectos: no primeiro, a publicidade preenche os requisitos de adequação, suficiência e veracidade, considerando-a lícita; no segundo, a publicidade ultrapassa limites positivos e negativos estabelecidos na lei, para defesa do consumidor, tornando-a ilícita. A publicidade ilícita é enganosa quando divulga o que não corresponde ao produto ou serviço, induzindo em erro; é abusiva quando discrimina pessoas e grupos sociais ou agride outros valores morais. A publicidade ilícita não produz efeitos em face do consumidor, que pode resolver o contrato por esse fundamento.

A Constituição portuguesa (art. 60º) proibe todas as formas de publicidade oculta ou indireta. Do mesmo modo, a Lei de Defesa dos Consumidores portuguesa rejeita a publicidade que não seja inequivocamente identificada e desrespeite a verdade e os direitos dos consumidores. O sentido de "inequivocamente identificada" resulta em tornar ilícito o merchandising, a meu ver corretamente. Considera-se merchandising a aparição ou inserção camuflada de produtos em programas de televisão, rádio, em filmes, em espetáculos teatrais, sem indicação da natureza de mensagem publicitária. No direito brasileiro não é clara a proibição, havendo entendimento doutrinário de sua possível admissibilidade, desde que seja adaptada ao princípio da identificação(20). Penso, ao contrário, que não preenche o requisito de adequação do dever informar, porque não utiliza a transparência na publicidade, alcançando o consumidor de surpresa e de modo subliminar.

Para os propósitos deste estudo, interessam os efeitos jurídicos obrigacionais da publicidade lícita, nas relações de consumo. Teriam eles natureza de oferta?

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Sobre o autor
Paulo Lôbo

Doutor em Direito Civil pela USP. Advogado. Professor Emérito da UFAL. Vice-Presidente do IBDCIVIL. Ex-Conselheiro do Conselho Nacional de Justiça

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LÔBO, Paulo. A informação como direito fundamental do consumidor. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 51, 1 out. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2216. Acesso em: 28 mar. 2024.

Mais informações

Conferência proferida na Cerimônia de abertura do 3º Curso de Pós-Graduação em Direito do Consumidor do Centro do Direito do Consumo da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, no dia 10.11.2000

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