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Boa-fé objetiva processual: reflexões quanto ao atual CPC e ao projeto do novo Código

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5.0     Sujeitos da relação jurídica processual vinculados à boa-fé objetiva processual.

O dever de comportar-se de acordo com a boa-fé objetiva não é apenas das partes, mas de todo aquele que, de qualquer forma, participa do processo.

Efetivamente, além das partes, o comportamento de acordo com a boa-fé deve ser exigido também do juiz, do membro do Ministério Público ao atuar como fiscal da ordem jurídica, dos Defensores Públicos, dos advogados públicos e privados e de todos os auxiliares da Justiça.

Entre os auxiliares da Justiça incluem-se o escrivão, o chefe de secretaria judicial, o assessor judicial, o oficial de justiça, o perito, o depositário, o administrador, o intérprete, o tradutor, o conciliador, o mediador judicial, o contabilista e o amicus curiae, além daqueles a quem as normas de organização judiciária cometerem atribuições específicas.

Mas não são somente estes os sujeitos vinculados ao cumprimento da norma.

Com efeito, mesmo os sujeitos cuja participação no processo é apenas pontual e/ou eventual devem se comportar de acordo com a boa-fé objetiva.

Assim, devem agir em consonância com a boa-fé objetiva, dentre outros, o curador especial (art. 9º); o curador nomeado para o citando mentalmente incapaz ou impossibilitado de receber a citação (art. 218, § 2º); o corretor que participe da alienação, por iniciativa particular, de bem penhorado (art. 685-C); o leiloeiro público credenciado para atuar no procedimento de execução (art. 705); e o corretor de bolsa de valores incumbido de alienar bem penhorado que possua cotação (art. 704).

No campo da comunicação dos atos processuais é também muito comum a participação pontual e/ou eventual de pessoas igualmente vinculadas ao dever de se comportar em consonância com a boa-fé objetiva.

É o que acontece com o mandatário, administrador ou gerente do citando ausente, quando a demanda houver sido proposta com base em ato por ele praticado e a citação for feita na pessoa dele (art. 215, § 1º); com o carteiro incumbido da entrega, ao citando, da carta de citação (art. 223, parágrafo único); com a pessoa com poderes de gerência geral ou de administração, que vier a receber a carta de citação dirigida para a pessoa jurídica (arts. 223, parágrafo único); e com a pessoa da família ou o vizinho do citando, a quem, no caso de citação com hora certa, o oficial de justiça cientificar de que voltará a fim de efetuar a citação ou a intimação (arts. 227).


6.0 Conclusão.

Pelo exposto, a conduta em consonância com a boa-fé objetiva processual é exigência do CPC em vigor. 

Trata-se de princípio cuja aplicação não mais comporta recuos e que, ao lado do princípio do devido processo legal e do princípio do contraditório adequadamente redimensionado, compõe o esqueleto de sustentação do processo cooperativo, modelo processual já em vigor e cujas características tendem a ser significativamente realçadas no novo CPC. 

Diante disto, deve o legislador repensar a forma de expressar, no novo CPC, a proclamação do princípio da boa-fé objetiva no âmbito do processo civil.

É ele merecedor – plenamente merecedor! – de destaque, motivo pelo qual o seu enunciado deve integrar o grupo dos enunciados que abrirão o novo código, de preferência com a destinação de um dispositivo apenas para albergar o seu enunciado, com o que será dada ao intérprete a sensação de que não se trata de mais uma regra, mas de um princípio, uma norma de conduta[10] que vincula a todos os que participam, de qualquer forma, do processo.

Aliás, bem pensada a situação, a boa-fé objetiva não é apenas uma norma de conduta a ser seguida pelos distintos sujeitos das diversas relações jurídicas, de direito material ou de direito processual, mas por todos aqueles que, de alguma forma, se relacionam, juridicamente ou não, com outras pessoas.


Notas

[1] O projeto do novo Código de Processo Civil foi aprovado em 15 de dezembro de 2010 pelo Senado Federal (PLS n. 166/2010) e enviado à Câmara dos Deputados, onde é identificado como PL 8046/2010.  Na Câmara, o último andamento ocorreu em 9 de maio de 2012 e consistiu na decisão de prorrogar o prazo concedido ao Relator-Geral (http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=490267, acessado em 8 de agosto de 2012).

[2] Este tópico foi desenvolvido com base na obra Novo Curso de Direito Civil, vol. 4, tomo I, da autoria de Pablo Stolze Gagliano e de Rodolfo Pamplona Filho, na qual você poderá, caro leitor, aprofundar o estudo da matéria.

[3] Na estrutura de todo texto normativo é identificável uma hipótese fática (um acontecimento, ou um conjunto de acontecimentos, natural ou humano) à qual o sistema jurídico atribui um efeito, o efeito jurídico. Diz-se, assim, que a hipótese fática é o antecedente e o efeito jurídico é o consequente.  Quando o texto normativo contiver uma hipótese fática composta por termos vagos e o efeito jurídico for apenas determinável, e não previamente determinado, diz-se que ele contém uma cláusula geral.  A norma que impõe que toda relação jurídica processual deva estar em consonância com o princípio do devido processo legal é o mais evidente exemplo de cláusula geral no âmbito do Direito Processual. O mesmo se dá com a norma que impõe a todos que participam do processo uma conduta de acordo com a boa-fé.  Se imaginarmos uma linha reta, os textos normativos que contêm cláusulas gerais estarão numa extremidade dessa linha, ao passo que as regras casuísticas ocuparão o outro extremo.  Exemplo de regra casuística é a que impõe que os honorários advocatícios sucumbenciais serão fixados entre o mínimo de 10% e o máximo de 20% sobre o valor da condenação (CPC, art. 20, § 3º).  Nos modernos sistemas jurídicos o grande exercício do legislador é buscar um equilíbrio entre as cláusulas gerais e as regras casuísticas, com a produção de normas que ocupem, lógica e ordenadamente, o longo trajeto entre os pontos extremos daquela linha reta imaginária a que nos referimos.

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[4] HIRONAKA, Giselda M. F. N. Conferência de encerramento proferida em 21.09.01, no Seminário Internacional de Direito Civil, promovido pelo NAP – Núcleo Acadêmico de Pesquisa da Faculdade Mineira de Direito da PUC/MG e palestra proferida na Faculdade de Direito da Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI (SC), em 25.10.2002, cujo conteúdo foi gentilmente cedido a Pablo Stolze Gagliano.

[5] Refere-se o autor, aqui, ao Código Civil de 1916.

[6] Lewicki, Bruno. "Panorama da Boa-Fé Objetiva", in Problemas de Direito Civil-Constitucional. Coord.: Gustavo Tepedino. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 56.

[7] “A função reativa é a utilização da boa-fé objetiva como exceção, ou seja como defesa, em caso de ataque do outro contratante. Trata-se da possibilidade de defesa que a boa-fé objetiva possibilita em caso de ação judicial injustamente proposta por um dos contratantes” (Simão, José Fernando. A Boa Fé e o Novo Código Civil - Parte III, disponível em http://www.professorsimao.com.br/artigos_simao_a_boa_fe_03.htm), acessado em 8 de agosto de 2012.

[8] Em português: perda.

[9] DIDIER Jr., Fredie. "Multa coercitiva, boa-fé processual e supressio: aplicação do 'duty to mitigate the loss' no processo civil". Revista de Processo. SP: RT, 2009, n. 171, pp. 35/48.

[10] Para um estudo a respeito dos princípios, das regras e dos postulados normativos é indispensável a leitura de Humberto Ávila (Teoria dos Princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos, 13ª edição. SP: Malheiros, 2012).  

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Sobre os autores
Pablo Stolze Gagliano

Juiz de Direito. Mestre em Direito Civil pela PUC-SP. Membro da Academia Brasileira de Direito Civil, do Instituto Brasileiro de Direito Contratual e da Academia de Letras Jurídicas da Bahia. Professor da Universidade Federal da Bahia. Co-autor do Manual de Direito Civil e do Novo Curso de Direito Civil (Ed. Saraiva).

Salomão Viana

Graduado em Medicina, em 1985, pela Universidade Federal da Bahia. Graduado em Direito, em 1987, pela Universidade Católica do Salvador. Especialista em Direito Processual Civil pela Fundação Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia. Advogado, de 1987 a 1991. Juiz de Direito do Estado da Bahia, de 1991 a 1994. Juiz Federal Substituto na Seção Judiciária da Bahia, de 1994 a 1998. Juiz Federal na Seção Judiciária da Bahia, de 1998 até a presente data. Juiz do Tribunal Regional Eleitoral da Bahia de outubro/2009 a outubro/2011. Professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia desde o ano de 1995 e Professor do Brasil Jurídico Ensino de Alta Performance. Palestrante e autor de vários artigos na área.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GAGLIANO, Pablo Stolze ; VIANA, Salomão. Boa-fé objetiva processual: reflexões quanto ao atual CPC e ao projeto do novo Código. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3326, 9 ago. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22382. Acesso em: 8 mai. 2024.

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