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Abordagem holística sobre nova regulamentação da profissão do motorista (Lei nº 12.619/2012)

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III – INOVAÇÕES NA CLT (arts 3º e 4º da lei)

 

III.1) Deveres dos motoristas profissionais e novas modalidades de infrações disciplinares (art. 235-B, CLT):

O projeto de lei fazia, no art. 235-B, VI da CLT, expressa referência ao dever do motorista em cumprir as disposições legais e regulamentares quanto ao tempo de direção, à jornada de trabalho e ao repouso. Tal dispositivo foi vetado por conferir ao regulamento empresarial verdadeiro “status” de lei.  No entanto, impende ressaltar que tal obrigação remanesce no que concerne ao cumprimento, pelo motorista empregado, das disposições legais relativas à limitação da jornada de trabalho e gozo dos intervalos de descanso, uma vez que essas imposições ostentam o caráter de normas de ordem pública.

A despeito da observação acima, remanesceram textualmente na lei, as seguintes obrigações atribuídas aos motoristas profissionais empregados:

a) Estar atento às condições de segurança do veículo (art. 235-B, I da CLT);

b) Conduzir o veículo com perícia, prudência, zelo e com observância aos princípios de direção defensiva (art. 235-B, II da CLT);

c) Respeitar a legislação de trânsito e, em especial, as normas relativas ao tempo de direção e de descanso (art. 235-B, III da CLT);

d) Zelar pela carga transportada e pelo veículo (art. 235-B, IV da CLT);

e) Colocar-se à disposição dos órgãos públicos de fiscalização na via pública (art. 235-B, V da CLT);

f) Submeter-se a teste e a programa de controle de uso de droga e de bebida alcoólica, instituído pelo empregador, com ampla ciência do empregado (art. 235-B, VII da CLT).

Num primeiro momento causa certa perplexidade a menção a “deveres” dos empregados numa lei que deveria positivar “direitos”.

Tal percepção vem reforçada pela aparente violação ao princípio da alteridade traduzida pela obrigação do motorista “zelar pela carga transportada e pelo veículo”.

A questão não comporta maiores dificuldades, uma vez que o zelo pelos bens guardados decorre do dever geral da guarda. Todavia, tal dever cede espaço nos casos de legítima defesa de bem jurídico mais valioso, tal como a saúde e a vida.

Sendo assim, a disposição legal deve ser compreendia no sentido que o motorista tem o dever de guardar com zelo a carga e o veículo, na medida em que esse dever não implique em perigo para sua vida ou para sua saúde. Vale dizer, por exemplo, que lícito será o abandono do veículo se houver um problema mecânico em lugar ermo, obrigando-o a buscar socorro, bastando neste caso que o veículo seja devidamente fechado.

Outra questão que suscita questionamento diz respeito à submissão a teste e programa de uso de droga e de bebida alcoólica instituído pelo empregador. Será que tal obrigação não exporá a intimidade e a vida privada do motorista profissional? Será que não servirá de justificativa para dispensa desses trabalhadores?

Não se pode negar que muitos motoristas brasileiros fazem uso de drogas para suportar a desumana jornada de trabalho a eles atualmente imposta, o que autoriza inferir que há uma legião de motoristas viciados nesses psicotrópicos.

Caberia agora, com base na nova lei, a adoção de políticas de exclusão de tais profissionais dos quadros das empresas?

Não obstante os inquietantes questionamentos acima, a disposição legal inserida no art. 235-B, VII da CLT possui razão de ser, pois, nos termos do art. 8º, in fine da CLT, nenhum interesse de classe ou particular deve prevalecer sobre o interesse público. De fato, não resta dúvida de que o interesse da sociedade em contar com um trânsito seguro nas rodovias deve prevalecer sobre o interesse individual ou mesmo coletivo dos trabalhadores.

Entretanto, a prevalência do interesse público não pode servir como fundamento para violar direitos fundamentais, tampouco para patrocinar a adoção de políticas discriminatórias e flagrantemente injustas.

No que tange ao uso de álcool, embora haja a tipificação da embriaguez habitual ou em serviço como justa causa para a dispensa (art. 482, “f”, da CLT), resta sedimentado o entendimento de que o alcoolismo, classificado como patologia pela Organização Mundial de Saúde, não pode servir como fundamento para a dispensa do trabalhador por justa causa.

Todavia, impende observar que por força do que dispõe o art. 277 do CTB, todo motorista, profissional ou não, envolvido em acidente de trânsito ou que for alvo de fiscalização de trânsito, deve se submeter aos testes de alcoolemia, sofrendo, na esfera da legislação de trânsito, as penalidades cabíveis no caso de constatação do álcool.

Ora, se sob o prisma trabalhista o alcoolismo não pode, em princípio, motivar a dispensa por justa causa, com maior razão o uso de drogas não pode justificar a dispensa do motorista, uma vez que o vício decorre exatamente das condições de trabalho às quais esse trabalhador foi historicamente submetido.

Portanto, a nova disposição legal do art. 235-B, VII da CLT vem no sentido estabelecer meios de detecção de eventual problema do trabalhador com o álcool ou com as drogas, buscando, a partir da eventual detecção, empreender o tratamento capaz de auxiliá-lo a superar o problema.

Sendo assim, qualquer programa patronal de controle de uso de droga ou de álcool que venha expor a intimidade ou a vida privada do motorista, ou, ainda, que sirva como ferramenta para discriminatoriamente dispensar esse motorista, deve ser exemplarmente combatido por meio de ações civis públicas movidas pelo Ministério Público do Trabalho ou pelos sindicatos profissionais.

III.2) Regras atinentes à Jornada de Trabalho (arts. 235-C..235-F, CLT):

Tendo o núcleo da nova lei disposto sobre a regulamentação da jornada de trabalho dos motoristas, tal matéria contou com numerosas inovações que levaram em consideração as peculiaridades dessa atividade. Todavia, a exemplo do observado em outros pontos da lei, não houve o desejável rigor técnico na sua elaboração.

III.2.1) Identificação dos limites de jornada (art. 235-C e 235-F, CLT):

A limitação temporal da jornada dos motoristas profissionais segue a regra geral ditada pela Constituição Federal, art. 7º, XIII, ou seja, oito horas por dia e quarenta e quatro semanais, conforme se infere pelo caput do art. 235-C, abaixo transcrito:

Art. 235-C. A jornada diária de trabalho do motorista profissional será a estabelecida na Constituição Federal ou mediante instrumentos de acordos ou convenção coletiva de trabalho.

O dispositivo comporta uma inconsistência jurídica, pois sua literalidade aparenta conferir às convenções e acordos coletivos de trabalho o poder de alterar de qualquer modo os limites de jornada previstos na Constituição Federal, tal interpretação é juridicamente inviável frente à hierarquia normativa que restringe a atuação do legislador ordinário, impedindo-o de mitigar o alcance de normas constitucionais garantidoras de direitos fundamentais.

Desse modo, as convenções e acordos coletivos poderão dispor apenas sobre a compensação e redução da jornada, nos exatos termos do art. 7º, XIII da CF, verbis:

Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

[...]

XIII - duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho;

A presente ressalva é plenamente cabível também ao disposto no art. 235-H da CLT, o qual confere aos instrumentos coletivos o poder de estabelecimento de jornadas especiais de trabalho.

III.2.1.1) Da inconstitucionalidade do 235-F, CLT (jornada “12 x 36”):

O novo art. 235-F, da CLT vem assim redigido:

Art. 235-F. Convenção e acordo coletivo poderão prever jornada especial de 12 (doze) horas de trabalho por 36 (trinta e seis) horas de descanso para o trabalho do motorista, em razão da especificidade do transporte, de sazonalidade ou de característica que o justifique.

Constata-se que neste dispositivo o legislador conferiu efetivo poder derrogatório às convenções e acordos coletivos sobre a Constituição, pois estabeleceu abstratamente limite de 12 (doze) horas diárias de trabalho, em frontal violação ao limite constitucional diário de 8 (oito) horas estabelecido pelo art. 7º, XIII da CF.

Diversamente do que ocorre com os artigos 235-C, caput e 235-H da CLT, nos quais a conformação à Constituição pode ser alcançada pelo exercício hermenêutico, a literalidade do art. 235-F da CLT não deixa espaço para contemporizações, contendo uma insuperável antinomia jurídica.

Destarte, é flagrante a inconstitucionalidade da previsão inserta no art. 235-F da CLT.

Não se desconhece que a jurisprudência, ao considerar as peculiaridades de alguns segmentos, vem admitindo a aplicação da jornada “12 x 36” por meio de negociações coletivas.

Poder-se-ia questionar o seguinte: se os tribunais admitem a jornada “12 x 36” em algumas situações, onde estaria a inconstitucionalidade do novo art. 235-F da CLT?

Num repente, a indagação leva a acreditar que o novo dispositivo deve ser considerado constitucional, pois se o Poder Judiciário, guardião da Constituição, aceita a jornada nele prevista, não haveria falar em vício.

Mas não é assim. A análise da constitucionalidade de normas não se dá no plano concreto, mas sim no abstrato. Ao analisar se determinada lei é ou não constitucional, não há uma situação concreta a ser considerada, faz-se tão somente a análise de subsunção do direito objetivo examinado à Constituição. Se houver subsunção a norma é constitucional, caso contrário, inconstitucional. Trata-se, pois, de um processo de caráter objetivo.

Pois bem, o Poder Judiciário de um modo geral decide casos concretos e não abstratos, situações estas nas quais deverá o julgador ponderar os valores envolvidos de modo a entregar a tutela jurisdicional justa.

Ocorre que o justo nem sempre corresponde à exata dicção do direito objetivo.

Neste passo impende lembrar a máxima de que nenhum direito é absoluto, nem mesmo os inscritos na Constituição, ou seja, em dada circunstância um direito aparentemente absoluto pode produzir injustiça, razão pela qual, naquele caso esse direito deve ceder espaço para que outro promova a efetiva justiça.

É em razão dessa máxima que em casos concretos a solução justa pode, eventualmente, discrepar do texto da lei ou até mesmo da Constituição.

Por essa razão, o Poder Judiciário, em algumas situações específicas ao analisar os valores jurídicos envolvidos nos casos concretos tem admitido a aplicação da jornada “12 x 36”.

Ocorre que a situação ora estudada não diz respeito a um caso concreto, mas a um direito objetivo que, a toda evidência, vulnera o art. 7º, XIII da Constituição.

Está-se diante de uma norma ordinária que prescreve limite de jornada 50% (cinquenta por cento) superior ao limite constitucional. A previsão ordinária rivaliza frontal e diretamente o comando constitucional.

O precedente legislativo, por si só, caso mantido no ordenamento jurídico, representará um grave retrocesso social, abrindo espaço para que futuras normas ordinárias venham no mesmo sentido.

Trata-se do grave risco de banalização do vilipêndio à Constituição.

Longe de ser hipótese cerebrina, basta referir o art. 5º da Lei n. 11.901/2009, que embora regulando a atividade do bombeiro civil, bem menos penosa do que a do motorista, e estabelecer módulo semanal de trabalho bem inferior ao limite constitucional, padece do mesmo vício quanto ao limite diário de jornada e até o momento não fora excluído do ordenamento jurídico.

No caso da norma ora examinada o retrocesso social é ainda mais gritante se considerado seu destinatário: o motorista rodoviário. A atividade deste trabalhador é naturalmente fatigante e penosa, exigindo do motorista total atenção durante toda a jornada de trabalho. Admitir que esses trabalhadores laborem por doze horas diárias constitui verdadeiro absurdo, na medida em que tal disposição viola o objetivo do próprio diploma jurídico no qual foi inserida.

A aludida disposição legal comporta nítida incongruência com o espírito do diploma legal, de modo que, a fim de garantir a segurança jurídica e o resguardo ao interesse público à segurança no trânsito, melhor teria sido se o Poder Executivo houvesse exercido o veto jurídico ao disposto no art. 235-F da CLT.

Todavia, o fato é que tal veto não sobreveio, cabendo o enfrentamento da questão em sede de controle concentrado de constitucionalidade por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade, ou mesmo, por meio do controle difuso de constitucionalidade nos casos concretos que certamente virão.

Este ponto, ao lado da infeliz previsão de fracionamento do intervalo intrajornada, representa o que de pior a lei trouxe. Um inegável retrocesso social.

III.2.2) Tempo computado como jornada de trabalho (art. 235-C, § 2º, CLT):

Na linha dada pelo art. 4º da CLT, é considerado, para fins de aferição da jornada de trabalho, o tempo que o empregado se encontra à disposição do empregador. A lei, todavia, exclui o “tempo de espera”, os intervalos de refeição, repouso e de descanso. Além disso, conforme considerações posteriores, o chamado “tempo de reserva” também não é computado na jornada de trabalho.

Embora os conceitos relativos aos tempos de “espera” e de “reserva” sejam melhor abordados à frente, uma observação se faz oportuna: sem olvidar que a realidade atual vivenciada pelos motoristas implica na absoluta inexistência de remuneração dos períodos de tempo taxados pela nova lei como “espera” e “reserva”, cabe observar que a exclusão desses períodos temporais da jornada de trabalho é de duvidosa constitucionalidade, sobretudo em razão da sua remuneração gravitar em patamar inferior ao previsto no art. 7º, XVI da Constituição Federal.

III.2.3) “Tempo de espera” (art. 235-C, § 8º c/c art. 235-E, §§ 4º e 5º, CLT):

O “tempo de espera” constitui destacada inovação da norma, com previsão no § 8º do art. 235-C da CLT, corresponde ao tempo excedente à jornada normal de trabalho no qual o motorista aguarda na fila a carga/descarga da mercadoria ou, ainda, a fiscalização da mercadoria em barreiras fiscais ou alfandegárias.

É também considerado “tempo de espera”, nas viagens de longa distância, o período excedente à jornada de trabalho no qual o empregador exija que o empregado permaneça junto ao veículo, conforme disposto no art. 235-E, § 4º da CLT.

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Dito de outra forma, o art. 235-E, § 4º da CLT estabelece que, em regra, após cumprida a jornada de trabalho o motorista fica dispensado do serviço, salvo se a permanência junto ao veículo decorrer de exigência patronal, caso no qual o tempo de permanência junto ao veículo será computado como “tempo de espera”.

Seguindo a regra interpretativa de que o ordinário se presume e o extraordinário se prova, a redação do dispositivo leva a crer que a dispensa do serviço após a jornada é presumida, ao passo que eventual exigência patronal para que o motorista permaneça junto ao veículo deve ser provada.

No entanto, não é esse o melhor entendimento, pois ao contrário do que a norma leva a crer, o que ocorre normalmente na atividade do transporte rodoviário de cargas é a permanência do motorista junto ao veículo. Isto ocorre porque raramente há disponibilização, pelo empregador, seja por meio do custeio das despesas de hospedagem, seja pelo oferecimento de local de repouso, das mínimas condições de conforto para que o trabalhador possa gozar do seu tempo livre. Sendo assim, devido à falta de estrutura fornecida pelo empregador, o veículo passa a ser o local com melhores condições para a permanência do empregado.

Essa situação é agravada no caso das filas de embarque e desembarque, quando a permanência do motorista junto ao caminhão é necessária e ininterrupta. Permanência esta que, especialmente na fase das safras agrícolas, chega a implicar em vários dias na fila.

Sendo assim, para bem interpretar e aplicar o art. 235-E, § 4º da CLT, importante observar o critério dado pelo art. 335 do Código de Processo Civil, segundo o qual devem ser consideradas as regras de experiência comum subministradas pela observação do que ordinariamente acontece.

Ora, se ordinariamente o que acontece é a permanência compulsória do motorista junto ao veículo, cabe ao empregador comprovar que o trabalhador dispõe, após o cumprimento da sua jornada, de efetivas condições de deixar o veículo e de gozar adequadamente e em condições mínimas de conforto o seu tempo livre.

Por outro lado, forçoso reconhecer que, eventualmente a inexistência de condições dignas de conforto decorre não de ato ou omissão do empregador, mas sim das embarcadoras. Desse modo, embora a responsabilidade direta pelo pagamento do “tempo de espera” seja do empregador, na impede que este, amigavelmente ou em ação regressiva, se volte contra a embarcadora a fim de se ver ressarcido do custo adicional. Tal pretensão além de decorrer do princípio geral de que quem causa dano deve repará-lo, deriva, agora, da expressa disposição do art. 9º da lei, que atribui também ao embarcador a responsabilidade por garantir as condições sanitárias e de conforto mínimas preconizadas pelas Normas Regulamentadoras do MTE.

No mesmo sentido do § 4º do art. 235-E, da CLT seu § 10º prescreve que caso o motorista prefira, por decisão sua, permanecer junto ao veículo após a jornada para o gozo dos intervalos inter ou intrajornada resta descaracterizado o “tempo de espera”, descabendo, pois qualquer remuneração adicional.

Com base nos fundamentos a pouco expendidos, para fins de descaracterização do “tempo de espera”, nos termos do art. 235-E, § 10 da CLT é necessário que reste indene de dúvidas que a permanência do empregado junto ao veículo ocorreu por sua única e exclusiva vontade, ou seja, ainda que tal circunstância conste de declarações firmadas pelo empregador e pelo empregado, é necessário que as circunstâncias da prestação dos serviços permitam constatar a verossimilhança da espontaneidade.

Além disso, vale lembrar que ainda que confirmada a espontaneidade da permanência, perpassado o tempo correspondente ao gozo dos intervalos intra e interjornada, passa a ser computada normalmente a jornada de trabalho, ainda que o veículo permaneça parado.

III.2.3.1) Remuneração do “tempo de espera” (art. 235-C, § 9º, CLT):

Reza o art. 235-C, § 9º da CLT, que o “tempo de espera”, embora não seja computado na jornada de trabalho, é indenizado com adicional de 30% sobre o salário-hora.

Conforme aduzido alhures, tanto a exclusão do cômputo de tal tempo para fins de aferição da jornada de trabalho, quanto sua forma de remuneração, conduz a fundados questionamentos acerca da constitucionalidade do dispositivo, uma vez que o “tempo de espera”, inegavelmente constitui período no qual o trabalhador está à disposição do empregador, razão pela qual deveria, em princípio, ser remunerado conforme os ditames do art. 7º, XVI da Constituição Federal.

Sob outro norte, sem embargos à sua constitucionalidade ou não, o caráter indenizatório do “tempo de espera” ditado pelo dispositivo é relativo, uma vez que sua habitualidade e intensidade poderão caracterizá-lo como verba salarial, conforme entendimento jurisprudencial pacificado nas Súmulas 101 e 132 do C. TST. Desse modo, aplicando-se analogicamente o entendimento da Súmula 101 do C. TST é possível estabelecer o critério de que se a remuneração do tempo de espera superar 50% do salário do motorista, o montante pago a este título deverá integrar a remuneração do trabalhador para todos os fins.

III.2.3.2) Considerações finais acerca do “tempo de espera” (art. 235-C, § 9º, CLT):

É imperioso observar que, ainda que se tenha por constitucional a figura do “tempo de espera”, cabe salientar que sua caracterização deve ter por base uma interpretação restritiva. Isto porque o novo instituto limita o direito fundamental ao cômputo da jornada de trabalho (art. 7º, XIII, CF).

Desse modo, por exemplo, o tempo excedente à jornada normal gasto em fiscalizações das polícias rodoviárias federal e estadual deve ser considerado como horas extraordinárias. Tal conclusão pode ser alcançada, também, pelo fato de ser obrigação do empregado se submeter a tais fiscalizações, sob pena de cometimento de falta funcional (art. 235-B, V, CLT).

Ademais, adotando a interpretação restritiva ora defendida, em viagens que não se caracterizem como de longa distância (com retorno em menos de vinte e quatro horas), o tempo excedente à jornada no qual o motorista permaneça junto ao veículo, por sua vontade ou não, será considerado como hora extraordinária.

III.2.4) Tempo de descanso ou “intervalo de direção” (art. 235-D, I da CLT e art. 67-A,  1º do CTB):

O tempo de descanso referido nos artigos 235-D, I da CLT e 67-A, § 1º do CTB, aqui denominado “intervalo de direção”, corresponde a um período de trinta minutos de descanso a cada quatro horas de direção ininterrupta, podendo este ser usufruído de modo fracionado dentro do módulo de quatro horas de viagem.

Vale observar que embora o “intervalo de direção” esteja previsto no artigo relativo às viagens de longa distância (aquelas que implicam em ausência da sede ou da residência do empregado por mais de vinte e quatro horas), ele se aplica a qualquer viagem que supere o limite de quatro horas, mesmo porque, conforme já mencionado, tal imposição é dada em caráter geral pelo art. 67-A, § 1º do CTB, também introduzido pela lei em comento.

Embora haja a previsão de fracionamento do “intervalo de direção”, insta frisar que as paradas para abastecimento ou reparos não poderão ser consideradas como parte do gozo deste intervalo, já que essas se enquadram na regra geral de tempo à disposição do empregador.

Neste sentido vale referir o art. 1º, parágrafo único, III da Resolução n. 405 do CONTRAN, que exclui textualmente do cômputo do “intervalo de descanso” as interrupções involuntárias, tais como as decorrentes de engarrafamentos, semáforo e sinalização de trânsito.

O CONTRAN atentou-se para o eventual desvirtuamento do “intervalo de direção” por meio da concessão de “micropausas”, ao limitar seu fracionamento a, no máximo, três períodos de dez minutos (§ 1º do art. 3º da Resolução n. 405/2012).

Digno de nota o fato do “intervalo de direção” ser computado na jornada normal de trabalho, uma vez que não fora listado dentre as exceções do art. 235-C, § 2º da CLT.

Hipótese peculiar é a possível concomitância da concessão e gozo do “intervalo de direção” e do intervalo intrajornada autorizada pelo art. 235-D, II da CLT.

No caso de concessão simultânea dos intervalos intrajornada para alimentação e de direção há que se atentar para o fato de que o primeiro não é computado na jornada de trabalho, ao contrário do segundo.

Sendo assim, nesta situação, por força do princípio da condição mais benéfica, deve haver o cômputo do período correspondente ao “intervalo de direção” na jornada, ainda que coincidente com o intervalo para refeição, eis que essa é a interpretação que melhor atende aos interesses do empregado.

III.2.5) “Tempo de reserva” (art. 235-E, §§ 6º e 7º, CLT):

O chamado “tempo de reserva”, sobre o qual pesa dúvida razoável acerca da sua constitucionalidade, já contava com previsão legal no art. 26 da Lei n. 7.183/84, que define a Reserva como o período de tempo em que o aeronauta permanece, por determinação do empregador, em local de trabalho à sua disposição.

A nova lei confere nova roupagem ao instituto, para classificar com de “reserva” o tempo no qual o motorista estiver em repouso no veículo em movimento (art. 235-E, § 6º da CLT), aplicável nos casos onde a condução do veículo é compartilhada por mais de um motorista.

Embora não mencionado como exceção ao cômputo de jornada, o “tempo de reserva” excedente à jornada normal também não é considerado para fins de aferição do tempo de efetivo trabalho. Essa interpretação é resultado da análise combinada do art. 235-C caput e do art. 235-E, § 6º da CLT.

O “tempo de reserva”, embora não computado na jornada de trabalho, é remunerado na base de 30% do valor correspondente ao salário-hora (§ 9º do art. 235-C da CLT), cabendo ressaltar que não remanesce dúvida quanto ao caráter salarial da verba, devendo esta repercutir sobre todas as demais verbas salariais. Todavia, diversamente do que ocorre com o “tempo de espera”, o “tempo de reserva” não é remunerado integralmente com adicional de 30%, mas apenas com o valor de 30% correspondente à hora-normal.

Insta esclarecer que o “tempo de reserva”, a exemplo do que ocorre com o “tempo de espera”, começa a ser contado a partir do final da jornada normal, ou seja, ainda que repousando no veículo sob a condução do outro motorista, enquanto perdurar o horário da jornada normal de trabalho, não terá início a contagem do “tempo de reserva”.

Por fim, partindo da premissa de que o repouso com o veículo em trânsito não garante a adequada recuperação do empregado, o §7º do art. 235-E da CLT garante ao motorista o mínimo de seis horas consecutivas de repouso fora do veículo em alojamento externo ou, se na cabine leito, com o veículo estacionado.

III.3) Disposições especiais no caso de Viagem de Longa Distância (arts. 235-D e 235-E, CLT):

O art. 235-D, caput, da CLT conceitua a viagem de longa distância como aquelas em que o motorista profissional permanece fora da base da empresa, matriz ou filial e de sua residência por mais de 24 horas.

Inserido impropriamente no inciso I do aludido art. 235-D da CLT por possuir aplicação em quaisquer tipos de viagens, o “intervalo de direção” teve seus principais aspectos e peculiaridades comentadas no item II.2.4, alhures.

Da mesma forma, importantes disposições contidas nos parágrafos do art. 235-E, da CLT, tais como “tempo de reserva” e seus pormenores foram abordadas em linhas pretéritas, cabendo, porém, tratar de outras peculiaridades igualmente relevantes.

III.3.1) O Descanso Semanal Remunerado nas viagens de Longa Distância (art. 235-E, § 1º, CLT):

O descanso semanal remunerado – DSR nas viagens de longa distância vem regrado no § 1º do art. 235-E, verbis:

Art. 235-E. ...

§ 1o Nas viagens com duração superior a 1 (uma) semana, o descanso semanal será de 36 (trinta e seis) horas por semana trabalhada ou fração semanal trabalhada, e seu gozo ocorrerá no retorno do motorista à base (matriz ou filial) ou em seu domicílio, salvo se a empresa oferecer condições adequadas para o efetivo gozo do referido descanso.

Cabe ressaltar que o § 3º do art. 235-C da CLT prescreve a regra geral de trinta e cinco horas a título de DSR, ao passo que o § 1º do art. 235-E da CLT, prevê o DSR de trinta e seis horas, sendo necessário esclarecer que em ambas as prescrições houve a imprópria soma do intervalo interjornada de onze horas, de modo que, em verdade, tem-se como regra para o motorista empregado o DSR de vinte e quatro horas nas viagens de curta duração e de vinte e cinco horas para as viagens de longa distância.

É curiosa a razão pela qual o DSR nas viagens de longa distância ter sido estipulado com uma hora a mais do que o DSR nas viagens de curta duração. Trata-se de questão atinente ao processo de negociação que permeou a elaboração da lei. O segmento do transporte de cargas assentiu ao pleito das representações sindicais laborais no sentido de ampliar em uma hora o DSR. Todavia, tal pleito não foi aceito pelo segmento empresarial do transporte de passageiros. Em razão disso, apenas nas viagens de longa duração, próprias do transporte de cargas, houve a ampliação.

Questão de ordem prática de maior relevo diz respeito à cumulatividade do DSR nas viagens de longa distância.

Como se infere pelo disposto no § 1º do art. 235-E, restou possibilitada a concessão cumulada do DSR caso a empresa não ofereça condições adequadas para seu gozo ao longo da viagem.

Em que pesem os fundados questionamentos quanto ao cabimento desta cumulatividade, o fato é que o projeto de lei previa no § 2º do art. 235-E a limitação de tal acúmulo ao máximo de três DSR´s, na medida que prescrevia o limite de cento e oito horas de DSR´s acumulados, ou seja, três vezes o módulo semanal de trinta e seis horas.

Ocorre que o Poder Executivo vetou o §2º por inquina-lo de inconstitucional, todavia manteve incólume a redação do § 1º, ou seja, acabou por abrir espaço para o entendimento de que os DSR´s nas viagens de longa distância podem ser cumulados sem qualquer limite, desde que o empregador não proveja condições adequadas para o seu gozo ao longo do afastamento.

A toda evidência, tal entendimento pode conduzir a absurdos, eis que não são raras situações nas quais os motoristas transportadores de carga se ausentam por meses em viagem. Diante disso, necessário empregar o critério da razoabilidade para evitar que o instituto do descanso semanal seja completamente desvirtuado.

Pois bem, se por um lado parece conveniente ao trabalhador que este goze seu descanso semanal junto à família, por outro não se pode admitir a cumulatividade indefinida de descansos, sendo razoável, numa interpretação histórica da norma, estabelecer como limite o número de três DSR´s, conforme previa o dispositivo vetado.

III.3.2) Ocorrência de força maior nas viagens de Longa Distância (art. 235-E, CLT):

Especial preocupação reside na indeterminação do elastecimento da jornada no caso de força maior, prevista no § 9º do art. 235-E da CLT. Embora o dispositivo trate de exceção, dada a subjetividade da sua caracterização ele pode conduzir a exigência de trabalho por períodos absolutamente incompatíveis com os limites biológicos, cabendo ao aplicador da lei, no caso concreto, aferir a razoabilidade do seu emprego.

Ademais, por se tratar de norma de exceção e limitativa de direito ligado à saúde do trabalhador, sua interpretação deve ser restritiva, de modo que apenas em viagens consideradas de longa distância deverá ser aplicada essa prescrição legal. Sendo assim, ocorrendo força maior nos demais tipos de viagens, deverá ser observada a disposição celetista geral insculpida no art. 61 da CLT, que fixa, no seu § 2º, o limite de doze horas de trabalho.

III.4) Restrições às modalidades de remuneração prejudiciais ao controle da jornada (art. 235-G, CLT):

Inspirada no artigo 10, item 1 do Regulamento (CE) nº 561/2006 do Parlamento Europeu, a disposição inserta no art. 235-G, da CLT representa poderoso instrumento para evitar a superexploração consentida dos motoristas.

Em que pese a parte final do dispositivo conter ressalva aberta no sentido de que a restrição a determinadas formas de pagamento, tais como comissões, esteja condicionada à demonstração de prejuízo, ainda que potencial, à segurança rodoviária, à coletividade ou possibilitar violação das normas da lei sob análise, o fato é que tal potencialidade danosa é ínsita à atividade de transporte.

Sob esse prisma, tem-se que a vedação ao pagamento por comissões passa a ser a regra no segmento, de modo que a referida ressalva aberta deve ser compreendida no sentido de conferir a necessária flexibilidade à norma, possibilitando o pagamento por comissão, por exemplo, naquelas situações onde a prestação dos serviços de transporte se dá durante período fixo de tempo, ou ainda, quando a comissão esteja vinculada à qualidade do trabalho e não à sua quantidade, tal como ocorre quando há modulação da parte variável da remuneração em função do consumo de combustível.

III.4.1) Intangibilidade contratual e alteração da modalidade de remuneração:

Os efeitos da aplicação do dispositivo em comento sobre os contratos de trabalho dos atuais motoristas comportam importantes questionamentos: poderá o empregador alterar unilateralmente esses contratos no que concerne à modalidade de remuneração? Caso permitida, dessa alteração poderá resultar redução na remuneração desses trabalhadores?

As respostas às indagações remetem o aplicador do direito ao suporte axiológico do Direito do Trabalho, notadamente aos princípios da inalterabilidade contratual lesiva e da intangibilidade salarial. O primeiro com previsão legal no art. 468 da CLT e o segundo com suporte constitucional dado pelo art. 7º, VI da Carta Magna. O art. 468 da CLT reza:

Art. 468 - Nos contratos individuais de trabalho só é lícita a alteração das respectivas condições por mútuo consentimento, e ainda assim desde que não resultem, direta ou indiretamente, prejuízos ao empregado, sob pena de nulidade da cláusula infringente desta garantia.

Verifica-se que a modificação em cláusulas do contrato de trabalho está, em regra, condicionada à concomitância de dois requisitos: o mútuo consentimento e a ausência de prejuízo, direto ou indireto, ao trabalhador.

É certo, porém, que não há prescrição normativa absoluta, de modo que o mútuo consentimento, no caso em estudo, deve ceder espaço em face da superveniência de lei que visa proteger bem jurídico mais relevante – a saúde, segurança e a vida do trabalhador.

Remanesce, pois, o requisito da ausência de prejuízo, ainda que indireto, para o motorista, seja ele social ou econômico.

Cabe ressaltar que, conforme já adiantado, a vedação ao prejuízo econômico encontra respaldo, também, no princípio da intangibilidade salarial, princípio este ancorado no art. 7º, VI da Constituição Federal, in verbis:

Art. 7º ...

[...]

VI - irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo;

À luz dos princípios ora invocados, conclui-se que a nova lei, ao determinar o fim do pagamento por comissão exige, simultaneamente, que tal alteração contratual se dê sem prejuízo à remuneração do motorista.

Pois bem, ante esta conclusão nasce outra questão inquietante: qual o parâmetro a ser empregado para garantir a irredutibilidade remuneratória do motorista?

Essa questão é especialmente espinhosa, pois além de se estar tratando de remuneração variável, é de conhecimento público que no segmento de transporte existem numerosos casos de prática da fraude popularmente conhecida como “pagamento por fora”.

Ou seja, para o fim de determinar o valor fixo da remuneração a ser considerada na repactuação do contrato não basta, por exemplo, fazer uma média da remuneração dos últimos “n” meses lançadas nos recibos de pagamento, simplesmente porque essa remuneração “formal” não corresponde à realidade.

A solução para essa intrincada situação é encontrada, mais uma vez, em sede principiológica, devendo ser observado o princípio da primazia da realidade, de modo que o parâmetro a ser observado será o valor real da remuneração média percebida pelo motorista em dado período.

Vislumbra-se, neste cenário, um fantástico espaço para que os sindicatos laborais conquistem expressivos avanços para os motoristas, pois aberta está a oportunidade para, a um só tempo, formalizar a integralidade da remuneração desses trabalhadores, bem como estabelecer pisos salariais condizentes com a importância desta categoria profissional.

III.5) Delegação à norma coletiva para regulação de jornadas especiais (art. 235-H, CLT):

A regra dada pelo novo art. 235-H da CLT merece destacada atenção. Ela aparenta conferir aos sindicatos poder quase ilimitado para dispor sobre outras condições específicas de trabalho do motorista profissional, desde que não prejudiciais à saúde e à segurança do trabalhador, incluindo jornadas especiais, remuneração, benefícios, atividades acessórias e demais elementos integrantes da relação de emprego, poderão ser previstas em convenções e acordos coletivos de trabalho, observadas as demais disposições desta Consolidação.

Sua interpretação deve ser cautelosa. Dever ser dada ênfase à limitação da autonomia coletiva da vontade quando as disposições forem prejudiciais à saúde e à segurança do trabalhador ou, ainda, quando forem contrárias às disposições insertas na CLT e, obviamente, também na Constituição Federal.

Tal cuidado deve ser observado, sob pena de derrogação tácita da CLT e da própria Constituição por meio de instrumentos coletivos demasiadamente abrangentes.

Especial prudência deve ser dispensada à limitação da jornada propriamente dita, pois se levado ao pé da letra, instrumento coletivo poderia estabelecer jornadas especiais sem maiores critérios. Todavia, conforme já referido quando comentado o caput do art. 235-C, qualquer inovação coletiva acerca dos limites de jornada, deve observar os parâmetros dados pelo art. 7º, XIII da Carta Magna.

III.6) Fracionamento do intervalo intrajornada (art. 71, §5º, CLT):

Conforme já referido anteriormente, a autorização legislativa para que instrumento coletivo fracione o intervalo intrajornada mostra-se claramente inconstitucional.

Por certo o legislador tomou por base a Orientação Jurisprudencial n. 342 da SBDI-1 do C. TST, verbis:

OJ-SDI1-342 INTERVALO INTRAJORNADA PARA REPOUSO E ALI-MENTAÇÃO. NÃO CONCESSÃO OU REDUÇÃO. PREVISÃO EM NORMA COLETIVA. INVALIDADE. EXCEÇÃO AOS CONDUTORES DE VEÍCULOS RODOVIÁRIOS, EMPREGADOS EM EMPRESAS DE TRANSPORTE COLETIVO URBANO

I - É inválida cláusula de acordo ou convenção coletiva de trabalho contemplando a supressão ou redução do intervalo intrajornada porque este constitui medida de higiene, saúde e segurança do trabalho, garantido por norma de ordem pública (art. 71 da CLT e art. 7º, XXII, da CF/1988), infenso à negociação coletiva.

II – Ante a natureza do serviço e em virtude das condições especiais de trabalho a que são submetidos estritamente os condutores e cobradores de veículos rodoviários, empregados em empresas de transporte público coletivo urbano, é válida cláusula de acordo ou convenção coletiva de trabalho contemplando a redução do intervalo intrajornada, desde que garantida a redução da jornada para, no mínimo, sete horas diárias ou quarenta e duas semanais, não prorrogada, mantida a mesma remuneração e concedidos intervalos para descanso menores e fracionados ao final de cada viagem, não descontados da jornada.

Cabe frisar que, acertadamente, a superior corte de justiça trabalhista reconhece que a regra geral é a invalidade do fracionamento do intervalo intrajornada pela via coletiva, conforme bem esclarecido pelo item I da Orientação Jurisprudencial.

O intervalo intrajornada possui dupla função: destina-se à alimentação e ao repouso do empregado, bem como visa à preservação da saúde, física e mental do trabalhador, por meio do descanso. Trata-se de corolário do direito fundamental à saúde, insculpido como direito social dos cidadãos no art. 6º da Carta Magna.

Atenta à densidade normativa do art. 71 da CLT, a Subsessão de Dissídios Individuais n. 1 do Colendo TST, ao analisar o incidente de uniformização n. 1226/2005-005-24-00.1, por apertada maioria, decidiu dispensar tratamento especial aos condutores e cobradores do transporte coletivo urbano, passando a admitir cláusula coletiva que fracione o intervalo intrajornada, justificando que tal exceção se deu em razão das “condições especiais de trabalho a que são submetidos estritamente os condutores e cobradores de veículos rodoviários, empregados em empresas de transporte público coletivo urbano”.

A SBDI-1 do C. TST foi cuidadosa em estabelecer critérios capazes de preservar a saúde do trabalhador, mesmo na exceção acima mencionada, explicitando que a cláusula coletiva “flexibilizadora”, para ser considerada válida deve contemplar: a) a redução mínima da jornada diária de trabalho para sete horas e a semanal para quarenta e duas horas; b) que a redução da jornada não implique em correspondente redução remuneratória; c) que a jornada, além de reduzida, não possa ser prorrogada; d) que as frações do intervalo intrajornada, concedidos ao final de cada viagem (volta do ônibus), não sejam descontadas da jornada.

Embora o item II do verbete guarde certa semelhança com a nova disposição legal inserida no § 5º do art. 71 da CLT, suas diferenças são marcantes e determinantes para a conclusão de que a inovação é inconstitucional. A fim de bem analisar o novo dispositivo, segue sua transcrição:

§ 5o Os intervalos expressos no caput e no § 1o poderão ser fracionados quando compreendidos entre o término da primeira hora trabalhada e o início da última hora trabalhada, desde que previsto em convenção ou acordo coletivo de trabalho, ante a natureza do serviço e em virtude das condições especiais do trabalho a que são submetidos estritamente os motoristas, cobradores, fiscalização de campo e afins nos serviços de operação de veículos rodoviários, empregados no setor de transporte coletivo de passageiros, mantida a mesma remuneração e concedidos intervalos para descanso menores e fracionados ao final de cada viagem, não descontados da jornada.

Verifica-se que o dispositivo discrepa da orientação pretoriana nos seguintes pontos: a) enquanto a OJ limita a exceção ao condutor e ao cobrador, o dispositivo alcança, além destes, os fiscais de campos e afins; b) a OJ reconhece as condições especiais de trabalho no transporte coletivo urbano, enquanto o dispositivo se refere a transporte coletivo de passageiros, de modo a ampliar a exceção para o transporte de passageiros interurbanos e interestaduais, cujas condições de trabalho são absolutamente diversas; c) a OJ fala em concessão de intervalos menores ao final de cada viagem (volta do ônibus), enquanto o dispositivo refere-se à concessão de frações de intervalo entre o final da primeira hora e o início da última hora trabalhada, reforçando a conclusão de que a OJ fala de motoristas do transporte coletivo urbano, enquanto o dispositivo trata dos trabalhadores do transporte coletivo interurbano; d) a OJ condiciona a validade do ajuste coletivo à redução da jornada em, pelo menos, uma hora, enquanto o dispositivo nada diz a respeito; e) a OJ limita, em caráter absoluto, a prorrogação da jornada, ao passo que o dispositivo silencia-se.

Enfim, enquanto o Colendo Tribunal Superior do Trabalho não se afastou do lastro constitucional que dá suporte ao art. 71 da CLT, o legislador reformista o ignorou por completo.

Da forma como está redigido o indigitado § 5º do art. 71 da CLT, a norma ordinária passará a legitimar direta violação aos bens jurídicos protegidos constitucionalmente, permitindo a nefasta combinação entre o fracionamento do intervalo intrajornada, manutenção do atual módulo de oito horas de jornada, com a possibilidade da sua prorrogação.

Isto tudo aplicável à categoria na qual as atividades não exigem tratamento peculiar sobre a matéria, uma vez que o transporte coletivo urbano de passageiros é absolutamente diverso do interurbano, no qual a concessão do intervalo intrajornada integral se mostra totalmente compatível com a execução da atividade.

Diversamente do que ocorre no transporte coletivo urbano, onde os condutores param, obrigatória e repetidamente, por alguns minutos a cada volta no percurso, o transporte interurbano de passageiros demanda horas de direção entre uma parada e outra, exigindo paradas mais longas, necessárias para permitir que os passageiros façam suas refeições e necessidades fisiológicas.

Neste contexto indaga-se: onde está o fundamento para fracionar o intervalo do motorista do transporte interurbano?

Como se vê, o legislador reformador transitou além dos limites impostos pela Constituição ao flexibilizar norma de ordem pública garantidora do direito fundamental à saúde do trabalhador sem ao menos prever, como fez do C. TST, contrapartidas e condições que, mesmo na exceção, pudessem resguardar a saúde desses trabalhadores.

III.7) Instrumento coletivo aplicável ao empregador com atividade em várias localidades

A lei ora examinada confere destacado espaço à regulação coletiva e, levando em conta a peculiaridade inerente à atividade do transporte rodoviário de cargas e de passageiros, na qual é comum observar situações onde o empregador mantém bases em vários municípios e o trabalho é também exercido nesses vários municípios, impõe-se a questão de se identificar qual instrumento coletivo deverá ser observado para o fim de integração normativa do contrato individual de trabalho dos motoristas que laboram nesses vários municípios.

Nessa hipótese a doutrina justrabalhista apresenta como solução a aplicação do princípio da norma mais favorável ao trabalhador, observado o critério do conglobamento. Ou seja, aplicar-se-á o instrumento coletivo que, no seu conjunto, oferecer melhores condições ao trabalhador.

Tal solução se impõe como meio de evitar que o empregador possa “escolher” aplicar o instrumento coletivo que melhor atenda aos seus interesses, subvertendo, desse modo, o princípio da proteção.

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Sobre o autor
Paulo Douglas Almeida de Moraes

Procurador do Trabalho. Ex-Juiz do Trabalho da 15ª Região. Ex-Auditor-Fiscal do Trabalho.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MORAES, Paulo Douglas Almeida. Abordagem holística sobre nova regulamentação da profissão do motorista (Lei nº 12.619/2012). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3331, 14 ago. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22405. Acesso em: 3 mai. 2024.

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