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Conselhos e ordens de fiscalização do exercício profissional: perfil jurídico a partir da jurisprudência do STF

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17/08/2012 às 16:56
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2 O PERFIL JURÍDICO DOS CONSELHOS E ORDENS NA CONSTITUIÇÃO DE 1988

O espírito trazido pela CRFB/1988 de ver a cidadania concretizada no plano prático[75] culminou com a definição da dignidade da pessoa humana[76] como um dos sustentáculos do Estado Democrático de Direito brasileiro[77], razão pela qual os direitos fundamentais tornaram-se expressão normativa do conjunto de valores básicos da sociedade[78].

Ao seguir a opção adotada em 1934, a CRFB/1988 elencou dentre os direitos fundamentais do homem a liberdade do exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, admitindo-se, porém, sua restrição:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XIII - é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer.

Manoel Gonçalves Ferreira Filho (2005, p. 31), quanto ao dispositivo, preconiza:

Outra liberdade reconhecida é a de profissão, que compreende, na sistemática da Constituição vigente (art.5º, XIII), a de trabalho ou de ofício. Como expressão lídima da liberdade individual, cada um tem o direito de trabalhar no ofício que lhe agradar, para o qual tiver aptidão. Rejeita-se assim o privilégio de profissão, anteriormente consagrado em prol das corporações de ofício.

Entretanto, sob pena de a liberdade profissional ser restringida em demasia (ou até mesmo anulada), Gilmar Ferreira Mendes (2007, p. 38), quanto à parte final do inciso XIII, destaca que “restrições à liberdade de exercício profissional somente podem ser levadas a efeito no tocante às qualificações profissionais”.

Tais ensinamentos, por sua vez, seguem o que foi definido pelo Ministro Rodrigues Alckmin, no que foi acompanhado pela maioria do Plenário do Supremo Tribunal Federal quando do julgamento da Representação nº 930/DF[79]-[80]:

a) A Constituição Federal assegura a liberdade de exercício de profissão. O legislador ordinário não pode nulificar ou desconhecer esse direito ao livre exercício profissional (Cooley, Constitutional Limitations, pg.209, ...Nor, where fundamental rights are declared by the constitutions, is it necessary at the same time to prohibit the legislature, in express terms, from taking them away. The declaration is itself a prohibition, and is inserted in the constitution for the express purpose of operating as a restriction upon legislative power). Pode somente limitar ou disciplinar esse exercício pela exigência de condições de capacidade, pressupostos subjetivos referentes a conhecimentos técnicos ou a requisitos especiais, morais ou físicos.

b) Ainda no tocante a essas condições de capacidade, não as pode estabelecer o legislador ordinário, em seu poder de polícia das profissões, sem atender ao critério da razoabilidade, cabendo ao Poder Judiciário apreciar se as restrições são adequadas e justificadas pelo interesse público, para julgá-las legítimas ou não.

Para chegar a tal conclusão, o Ministro Alckmin expôs que as restrições à liberdade de exercício profissional devem se ater aos limites previstos na própria Constituição (condições de capacidade, tais como técnica, moral e física, sempre e somente destinadas à preservação do interesse público e à defesa da sociedade, não à preservação de interesses de grupos) e ao princípio da razoabilidade, competindo ao Judiciário intervir sempre que tais limites forem extrapolados:

Assenta-se, portanto, que a liberdade de exercício de profissão, se pode ser limitada, somente o pode ser com apoio na própria permissão constitucional ("observadas as condições de capacidade que a lei estabelecer") e de maneira razoável.

E no Poder Judiciário cabe, induvidosamente, em face da lei que regulamenta exercício profissional, examinar, à luz desses critérios, a legitimidade da regulamentação.

(...)

Quais os limites que se justificam, nas restrições ao exercício de profissão?

Primeiro, os limites decorrentes da exigência de capacidade técnica. Observa Sampaio Dória: “A lei para fixar as condições de capacidade, terá de inspirar-se em critério de defesa social e não em puro arbítrio. Nem todas as profissões exigem condições legais de exercício. Outras, ao contrário, o exigem. A defesa social decide. Profissões há que, mesmo exercidas por ineptos, jamais prejudicam diretamente direito de terceiro, como a de lavrador. Se carece de técnica, só a si mesmo se prejudica. Outras profissões há, porém, cujo exercício por quem não tenha capacidade técnica, como a de condutor de automóveis, piloto de navios ou aviões, prejudica diretamente direito alheio. (...). Daí em defesa social, exigir a lei condições de capacidade técnica para as profissões cujo exercício possa prejudicar diretamente direitos alheios, sem culpa das vítimas” (Comentários à Constituição de 1946, v. IV, pág.637). São legítimas, consequentemente, as restrições que imponham demonstração de capacidade técnica, para o exercício de determinadas profissões. De profissões que, realmente, exijam conhecimentos técnicos para o seu exercício. Aliás, na Constituinte, sustentava Mário Masagão que somente esses requisitos de capacidade técnica poderiam ser exigidos por lei ordinária. E ponderava que, se se mantivesse a autorização ao legislador ordinário para estabelecer as condições de capacidade técnica unicamente, “já teremos assegurado o interesse público. Há profissões cujo exercício diz diretamente com a vida, a saúde, a liberdade, a honra e a segurança do cidadão, e por isso, a lei cerca seu exercício de determinadas condições de capacidade. Fora deste terreno, não podemos admitir exceções, porque estaríamos mutilando o regime democrático de Constituição e o Estado Jurídico em que pretendemos ingressar, dando à lei ordinária uma força que não deve e não pode ter” (v.José Duarte, 'A Constituição Brasileira', de 1946, v.3º p.33/34).

Prevaleceu emenda de Ivo de Aquino, porém, que excluiu, do texto o restritivo “técnica”. E daí a referência a poder, a lei ordinária, exigir condições de capacidade (não somente condições de capacidade técnica) para o exercício de profissões. Essa emenda, de n. 3.078, que prevaleceu finalmente, obteve parecer favorável, ponderando a Comissão que tinha ela a vantagem de permitir “atender às condições de capacidade moral, física e outras” (v.Rev. dos Tribunais, 201/76).

(...)

Mas se a lei ordinária pode exigir, regulamentando o exercício profissional, condições de capacidade que não sejam atinentes exclusivamente à técnica, nem por isso as condições podem ser arbitrárias ou ilimitadamente estabelecidas pelo legislador ordinário. Tais condições (de capacidade técnica, moral, física, ou outras) hão de ser sempre exigidas pelo interesse público, jamais pelos interesses de grupos profissionais ou de determinados indivíduos.

(…)

O primeiro e capital valor que se tutela, na aludida previsão constitucional, é o livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, valor que especialmente se protege com o erigir-se em direito individual o desempenho, por qualquer cidadão, do mister pelo qual se inclinar, por vocação ou por necessidade. O segundo valor é o interesse público, em cujo nome se autoriza o legislador a estipular condições de capacidade. Unicamente quando o interesse público imponha a observância de condições de capacidade, tomado o vocábulo em acepção ampla, para o desempenho deste ou daquele trabalho, ofício ou profissão, é lícito, por conseguinte, ao legislador regulamentar, pelo estabelecimento dos requisitos que se configurarem adequados, o desempenho deste ou daquele mister, que deixa, então, de ser livre para se tornar acessível somente aos que preencherem os pressupostos estipulados em lei.

Passará a constituir letra morta o direito individual ao livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão se deixado ao alvedrio do legislador trancar o acesso ao desempenho de qualquer atividade a quem para isso não preencher os requisitos que, a seu talante, venha a reclamar.

Fixadas as premissas relativas à limitação ao exercício profissional (condições de capacidade e princípio da razoabilidade), José Afonso da Silva (2005, p. 108) leciona ser regra geral o reconhecimento da liberdade de escolha e de exercício profissional, sendo admitido ao legislador ordinário federal sujeitá-la à observância de qualificações especiais, porquanto determinadas profissões dependem de capacidades de ordem técnica, científica ou moral.

Inexistindo, porém, tais sujeições legais, a eficácia e a aplicabilidade da liberdade profissional são amplas e diretas, porquanto derivadas diretamente do texto constitucional.

Para que a referida restrição se afigure legítima, então, André Ramos Tavares (2007, p. 560), ao discorrer sobre o inciso XIII, artigo 5º, da CRFB/1988, pondera que não basta versar sobre qualificações profissionais:

Trata-se de norma constitucional de eficácia contida, pois prevê a possibilidade de lei regulamentadora restritiva, vale dizer, que estabelecerá as qualificações e requisitos necessários para exercer determinadas profissões.

Mas essa legislação apenas poderá prever condições que apresentem nexo lógico com as funções a serem desempenhadas. Não se tolera condição discriminatória, injustificada, o que, além de violar a liberdade de profissão, fere igualmente o princípio da igualdade.

A limitação imposta pela parte final do inciso XIII, artigo 5º, da Carta Democrática de 1988, portanto, refere-se ao que Canotilho denomina reserva de lei restritiva[81] e ao que José Afonso da Silva (2007, p. 269) conceitua como norma de eficácia contida, presente quanto o legislador ordinário, autorizado pela Constituição, “intervém para restringir o direito de liberdade conferido”.

Por conseguinte, condições para o exercício de ofício, trabalho ou profissão, para serem tidas como legais e constitucionais, além de instituídas por lei em sentido estrito e voltadas exclusivamente ao estabelecimento dos requisitos de capacidade para desempenho[82], devem ser sopesadas à luz do princípio constitucional da proporcionalidade[83]-[84].

Portanto, os Conselhos e Ordens, haja vista lhes terem sido outorgadas por lei as funções de registro dos profissionais habilitados na forma da lei e de acompanhamento do exercício profissional sob os aspectos técnicos e éticos, agem de modo a conferir eficácia ao direito fundamental previsto no inciso XIII, artigo 5º, da CRFB/1988.

Nesse novo contexto, em 1989, por ocasião do julgamento do Recurso Ordinário em Mandado de Segurança nº 20.976/DF, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, à unanimidade[85], a despeito do Decreto nº 93.617, de 1986, ratificou a possibilidade de supervisão ministerial sobre os Conselhos no que se refere ao cumprimento de sua atividade-fim, nos termos do voto do Relator, Ministro Sepúlveda Pertence:

Daí, concluo, enquanto se mantiver na esfera do exercício regular dessa atividade-fim de interesse público, não ha espaço nos lindes que lhe traçou o Dec.-lei 968/69, para que a supervisão ministerial intervenha: nem para decidir, em grau de recurso hierárquico, posto que impróprio, sobre decisões concretas da autarquia, nem para dar-lhe instruções in abstracto sobre como decidir determinada questão jurídica[86].

Interessante que, para chegar a tal conclusão, o STF considerou válida[87] a supervisão mitigada instituída pelo parágrafo único, artigo 1º, do Decreto-lei nº 968, de 1969, esquecendo-se, contudo, que tal dispositivo fora revogado três anos antes, em 1986, pelo Decreto-lei nº 2.299.

De todo modo, à luz da CRFB/1988 o STF reafirmou a supervisão ministerial sobre os Conselhos, ainda que excepcional e específica.

Não obstante, em 1994 a Lei nº 8.906, (Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil), ao definir as atribuições da OAB[88] (único serviço de fiscalização profissional expressamente previsto na Constituição[89]), explicitou no §1º de seu artigo 44 que a Ordem “não mantém com órgãos da Administração Pública qualquer vínculo funcional ou hierárquico”.

Ainda, a mesma Lei expôs que os Conselhos Federal e Seccionais da OAB, bem como suas Caixas de Assistência, seriam dotados de “personalidade jurídica própria”, além de que a OAB, “por constituir serviço público, goza de imunidade tributária total em relação a seus bens, rendas e serviços”, sendo ainda competente para “fixar e cobrar, de seus inscritos, contribuições, preços de serviços e multas”[90].

Seguindo tais passos, em 1997 foi a vez dos demais Conselhos e Ordens receberem, na 36ª edição da Medida Provisória (MP) nº 1.549, tratamento específico, quando, então, definiu-se no artigo 58 e §§[91] que os serviços de fiscalização por si desempenhados seriam regidos “em caráter privado, por delegação do poder público, mediante autorização legislativa”, sendo atribuída aos Conselhos Federais de cada profissão a competência para disciplinar sobre suas respectivas organizações, estruturas e funcionamento.

A MP, em seguida, ao ponderar que os Conselhos, assim como a OAB, não manteriam com a Administração Pública qualquer vínculo funcional ou hierárquico, fixou o regime celetista como o regente das relações mantidas com seus empregados.

Finalmente, na MP conferiu-se aos Conselhos a atribuição de “cobrar e executar as contribuições anuais devidas por pessoas físicas ou jurídicas, bem como taxas e emolumentos instituídos em lei” e, igualmente, o poder de fiscalização administrativa e financeira.

Tais dispositivos, então, foram objeto de Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) em momentos distintos.

Embora cronologicamente posterior, a MP nº 1.549-36 foi a primeira a ter sua constitucionalidade questionada (o que se deu em 1997 pela ADI nº 1.717/DF), quando almejou-se retirar do ordenamento jurídico o já citado artigo 58 e respectivos parágrafos.

Deparou-se o Supremo Tribunal Federal, então, com a oportunidade de, em sede de controle concentrado e à luz da Carta Cidadã, definir a natureza jurídica dos Conselhos de Fiscalização do Exercício Profissional, excluída a OAB[92], à luz dos preceitos e princípios da Carta Cidadã.

O Pretório Excelso, quase 06 (seis) anos depois do ajuizamento da ação, posicionou-se, definitivamente, pela natureza autárquica dos Conselhos e Ordens de Fiscalização do Exercício profissional.

Muito embora definida a natureza jurídica dos Conselhos, permaneceu um vácuo no ordenamento jurídico, já que a entidade responsável pela fiscalização da advocacia não havia sido objeto de análise.

Tal lacuna, porém, começou a ser preenchida 07 (sete) meses depois de publicada a decisão proferida na ADI nº 1.717/DF, quando o Procurador-Geral da República ingressou com a ADI nº 3.026/DF para ver declarada a inconstitucionalidade de parte do §1º, artigo 79, da Lei nº 8.906, de 1994[93], que dispunha: "sendo assegurado aos optantes o pagamento de indenização, quando da aposentadoria, correspondente a cinco vezes o valor da última remuneração", bem como para se dar ao caput do mesmo artigo 79 da mesma lei[94] interpretação conforme o inciso II do artigo 37 da CRFB/1988.

Embora o cerne da referida discussão não se relacionasse diretamente à natureza jurídica da OAB, a Suprema Corte, para decidir em 2006 o mérito da questão, adentrou nas especificidades da Ordem e, também, de sua personalidade e natureza, inclusive com menções a traços que a aproximariam ou distinguiriam dos demais Conselhos.

Portanto, as ADIs nº 1.717/DF e 3.026/DF são marcos para conhecimento da visão que o Supremo Tribunal Federal tem sobre as entidades criadas na década de 1930 e que, nos dias atuais, sob a égide da Carta de 1988, ainda desempenham um papel ativo na efetivação de direitos fundamentais do homem, especificamente o da liberdade do exercício profissional.

2.1 Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.717/DF: natureza jurídica dos conselhos de fiscalização do exercício profissional

Em 26/11/1997 o Partido Comunista do Brasil (PC do B), o Partido dos Trabalhadores (PT) e o Partido Democrático Trabalhista (PDT), atendendo a reivindicações externadas pela Federação Nacional dos Servidores das Autarquias de Fiscalização do Exercício Profissional (FENASERA), pela Federação Nacional dos Enfermeiros (FNE), pelo Conselho Federal de Serviço Social (CFESS) e pela Associação Brasileira de Enfermagem (ABEn), propuseram a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 1.717/DF, com medida liminar, para ver declarada a inconstitucionalidade do artigo 58 e parágrafos da MP nº 1.549-36, de 06/11/1997[95].

Arguiu-se violação ao princípio da segurança jurídica, pois os referidos dispositivos, além de destoarem do objeto central da norma[96], só foram inseridos na MP a partir de sua 35ª edição[97].

A insegurança e incerteza jurídicas eram ressaltadas pelo fato de, já na 36ª edição, terem ocorrido alterações substanciais na redação dada pela 35ª edição ao artigo 58 e a seus parágrafos, sendo trazidos na inicial os seguintes exemplos:

a) enquanto na 35ª edição o caput do artigo 58 fazia menção a conselhos de fiscalização de profissões liberais dotados de personalidade jurídica de direito privado e forma federativa, na 36ª remetia-se a serviços de fiscalização de profissões regulamentadas exercidos em caráter privado, por delegação do poder público, mediante autorização legislativa;

b) se na 35ª edição o §1º atribuía à assembleia geral da respectiva categoria profissional a competência para definir a organização, estrutura e o funcionamento dos Conselhos, na 36ª a competência foi dada aos Plenários dos Conselhos Federais;

c) na 36ª edição ao §2º foi acrescida a vedação a "qualquer forma de transposição, transferência ou deslocamento para o quadro da Administração Pública direta ou indireta".

Ainda, por estar à época do ajuizamento pendente, no STF, o julgamento do Mandado de Segurança nº 21.797/RJ[98], afirmaram os autores que a inclusão na MP dos dispositivos impugnados afigurava-se tentativa de o Executivo interferir diretamente no Judiciário[99].

Assim, segundo os postulantes[100][101], sendo finalidade institucional das Medidas Provisórias evitar perturbações ou instabilidades jurídicas, a reedição por três anos da MP nº 1549, com as alterações e inovações mencionadas, demonstrava a falta de clareza acerca da normatização pretendida, sendo caracterizados o desvio de finalidade legislativa e o exercício arbitrário do poder previsto no artigo 62 da CRFB/1988[102].

Em sequência, os proponentes definiram que o artigo 58 e parágrafos violariam expressamente os seguintes preceitos e regras constitucionais: a) a competência da União de organizar, manter e executar a inspeção do trabalho (artigo 21, XXIV[103]); b) a competência privativa da União de legislar sobre organização do sistema nacional de emprego e condições para o exercício das profissões (artigo 22, XVI[104]); c) o regime jurídico único (caput do artigo 39[105]); d) o poder fiscalizatório do Tribunal de Contas da União - TCU - (artigos 70 e 71, II[106]), e, finalmente; e) a competência exclusiva da União de instituir contribuições sociais (artigo 149[107]).

Isso porque sendo atribuição da União dispor sobre as condições para o exercício profissional, o inciso XVI do artigo 22 daria fundamento constitucional aos serviços de fiscalização de profissões e viabilizaria o direito ao livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão (artigo 5º, XIII[108]), sendo estes os parâmetros limitadores da regulamentação e da definição dos meios pelos quais a União inspeciona e fiscaliza o trabalho (artigo 21, XXIV).

Portanto, segundo os postulantes, os órgãos criados por lei federal para fiscalização do exercício profissional, na medida em que desempenham típica atividade estatal, possuiriam inegável natureza pública, não havendo a possibilidade de seu exercício em caráter privado[109].

A inicial também trouxe como fundamento a assertiva de que as contribuições pelos Conselhos cobradas teriam natureza tributária, assim como a assertiva de que sua sujeição ao TCU decorreria do fato de seu patrimônio ser bem público e de sua natureza autárquica (como reconhecido pelo próprio STF[110]).

Partindo da premissa de que os Conselhos seriam autarquias, entenderam os requerentes que decorrência lógica seria sua submissão ao princípio do concurso público para contratação de seus empregados (artigo 39, II), resultando daí a inconstitucionalidade do §3º do artigo 58.

O §4º do artigo 58 foi apresentado na inicial como incongruente e inconstitucional porque autorizava aos Conselhos (transformados pela MP em entes privados) a realização das atribuições típicas da Administração Pública de cobrança e execução de contribuições, taxas e emolumentos.

Por entenderem que os Conselhos seriam entidades da Administração Indireta, os postulantes concluíram que o §5º do artigo 58 colidiria com a Constituição, porquanto retirava do TCU a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial das referidas entidades.

Após registrarem que os Conselhos de Fiscalização deteriam o poder de editar normas voltados à regulação de condutas éticas e técnicas e, igualmente, estariam investidos de poder de polícia - suficiente, inclusive, para cassação do exercício profissional -, os autores ponderaram que tais entes, por objetivarem, a um só tempo, a defesa da profissão, dos interesses da sociedade e do cidadão usuários dos serviços profissionais, desempenhariam relevante e prioritária função social na orientação, fiscalização e normatização do exercício profissional.

Assim, em sede liminar solicitou-se na inicial a suspensão dos efeitos do artigo 58 e seus parágrafos, sendo apresentado, além das argumentações acima sintetizadas, o seguinte:

No que se refere ao risco iminente de difícil reparação, importa anotar o perigo de que os Conselhos de Fiscalização de Profissões venha a demitir servidores e contratar outros, gerando inegável insegurança em todos os servidores destes órgãos, considerando ainda o risco de difícil reparação decorrente de apressadas mudanças na organização e funcionamento destes órgãos.

A suspensão liminar dos efeitos da norma impugnada, também sob o aspecto da conveniência, merece consideração, tendo em vista que a aplicação da norma tenderá a acarretar maior prejuízo, no que se refere a insegurança jurídica decorrente de sua aplicação, do que a suspensão de seus efeitos, até o julgamento final desta ação direta de inconstitucionalidade[111].

Por fim, quanto ao mérito os postulantes requereram “a declaração de inconstitucionalidade do disposto no art.58 da Medida Provisória nº 1549-36, de 06 de novembro de 1997”.

Em razão da 42ª edição da MP (agora sob nº 1651-42), que alterara os parágrafos 2º, 4º e 6º e acrescentara os 7º e 8º, os autores aditaram a inicial para expressar que as inovações simplesmente ressaltaram a inconstitucionalidade do artigo 58.

Especificamente quanto às alterações do §6º e inserção do §8º[112], expuseram:

Os autores não podem deixar de consignar a indignação em relação a esta conduta do Presidente da República, por significar, além de maior tumulto no tratamento desordenado que vem tendo em relação às Medidas Provisórias, denota conduta irresponsável no trato das questões normativas, ensejando apenas instabilidade e insegurança jurídica na sociedade brasileira.

Urge frear esta sanha legisferante (sic.) do Chefe do Poder Executivo, por extrapolar por completo os limites do razoável.

A par destas considerações, as inovações introduzidas, conforme assinalado anteriormente, têm como único benefício o reforço na demonstração da incongruência geradora da inconstitucionalidade em discussão nestes autos.

Com efeito, a imunidade tributária prevista no novo §6º e a fixação da competência da Justiça Federal, no §8º evidenciam a inegável natureza autárquica dos conselhos de fiscalização de profissões, porquanto somente tais entes possuem tais prerrogativas[113].

Quase 15 meses depois do ajuizamento da ação, o Ministro Sydney Sanches, em Sessão realizada em 1º/02/1999[114]-[115], apresentou voto no qual, depois de entender prejudicada[116] a análise do §3º do artigo 58, deferia o pedido cautelar para suspender, até decisão final da Suprema Corte, a cabeça do artigo 58 e de seus parágrafos 1º, 2º, 4º a 8º da Lei nº 9.649, de 1998[117].

Quanto aos demais dispositivos, Sanches expôs que os artigos 5º, XIII, 22, XVI, 21, XXIV, 70, parágrafo único, 149 e 175, todos da CRFB/1988[118], pareciam impedir delegação a entidade privada de atividade típica do Estado, que, relativamente ao exercício profissional, abrangia o poder de polícia, de tributar e de punir:

11. Com efeito, não me parece possível, a um primeiro exame, em face de nosso ordenamento constitucional, mediante a interpretação conjugada dos artigos 5º, XIII, 22, XVI, 21, XXIV, 70, parágrafo único, 149 e 175 da Constituição Federal, a delegação, a uma entidade privada, de atividade típica de Estado, que abrange até poder de polícia, de tributar e punir no que concerne ao exercício de atividades profissionais[119].

 O Relator citou como precedente o MS nº 22.643/SC, relatado pelo Ministro Moreira Alves, quando o STF, ao manter decisão do TCU que ordenara o afastamento do Presidente de determinado Conselho, decidiu, a uma só voz, pelo caráter tipicamente público da fiscalização de exercício profissional, pela natureza autárquica dos Conselhos de Medicina e por sua sujeição à Corte de Contas.

Assim, ao vislumbrar a incompatibilidade entre a Constituição e a delegação de serviço público a ente privado (fumus boni iuris) e por entender haver o risco de ruptura do sistema então vigente e a consequente vulnerabilidade da Administração e do próprio exercício das profissões regulamentadas (periculum in mora)[120], Sydney Sanches votou pelo deferimento da liminar a fim de suspender os dispositivos impugnados (ressalvado, como já dito, o §3º).

Após o voto do Ministro Nelson Jobim (que limitou-se acompanhar in totum o Relator), em razão do pedido de vista formulado pelo Ministro Maurício Corrêa, o julgamento da Medida Cautelar foi retomado na Sessão de 22/09/2000, ou seja, quase 08 meses depois de seu início.

Em seu voto-vista, Corrêa acompanhou o entendimento da prejudicialidade do §3º e, considerando que a MP ensejadora da ADI havia sido convertida em Lei, afastou a ofensa ao artigo 62 da CRFB/1988.

Quanto aos demais dispositivos apontados na vestibular como violados, porém, Maurício Corrêa divergiu nos seguintes termos:

a) O artigo 58 objeto de questionamento, ao dispor sobre organização, estrutura, funcionamento e controle dos órgãos fiscalizadores das profissões, não violaria o inciso XIII do artigo 5º, pois este se refere às condições prévias para o exercício profissional;

b) O inciso XXIV do artigo 21 da CRFB/1988, de igual sorte, não se afiguraria ofendido porque a função de organizar, manter e executar a inspeção do trabalho nele prevista diz respeito às condições dos ambientes físicos e psíquicos em que o trabalho é exercido, em nada se relacionando à fiscalização do exercício de profissão regulamentada.;

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c) O inciso XVI do artigo 22 (que se refere à competência legislativa da União quanto às prévias condições para o exercício de profissões) não se mostraria contrariado porque o artigo 58 em nenhum momento estabelecera condição para o exercício de profissão regulamentada, tendo se limitado a versar sobre organização, estrutura, funcionamento e controle dos órgãos fiscalizadores;

d) Diante da nova perspectiva e realidade impostas pelo artigo 58 da Lei nº 9.649, de 1998 (privatização dos Conselhos de Fiscalização), a fiscalização do TCU exigida pelo artigo 70 da CRFB/1988 (incidente sobre a Administração Indireta) deixaria automaticamente de ser aplicada;

e) Quanto ao parágrafo único do artigo 70 e ao inciso II do 71, a nova natureza jurídica atribuída pela lei aos Conselhos tornaria sua verba não mais pública, sua receita passaria a ser própria e, ainda, cessariam completamente os vínculos funcional e hierárquico com a Administração;

f) O artigo 159 da Constituição, por sua vez, manter-se-ia íntegro na medida em que a contribuição de interesse da categoria profissional, criada pela própria lei, deixaria de ser instrumento de atuação da União na respectiva área para se transformar em meio próprio de atuação da entidade;

g) A delegação do poder público, mediante autorização legislativa, dos serviços de fiscalização de profissões a entes privados não se afiguraria contrária à Constituição a delegação do poder público, pois tal experiência já era vivenciada, sem perplexidades, com os serviços notariais e de registro (artigo 236[121]):

Posto que o exercício de profissões está sujeito a condições prévias que são fixadas pela União, o desate da questão consiste em saber se os serviços de fiscalização de profissões regulamentadas podem ser exercidos em caráter privado, por delegação do poder público, mediante autorização legislativa.

Neste superficial exame cabível em juízo liminar não vejo impedimento a tal delegação legislativa, até porque a própria Constituição a prevê expressamente para os serviços notariais e de registro, de conotação muito mais ampla do que a fiscalização do exercício de determinada profissão, ao dispor no caput do seu artigo 236 “os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado por delegação do poder público”, sem que tal disposição cause qualquer perplexidade[122].

g) A Constituição não fixa e impõe a natureza autárquica para os entes responsáveis pela fiscalização do exercício profissional, sendo do legislador a competência para manter o encargo junto à Administração Direta ou, ao contrário, para criar autarquia;

h) A delegação da função fiscalizatória do exercício profissional a ente privado já existiria em relação à Advocacia e a OAB[123], sendo semelhantes os termos do artigo 58 impugnado e os dispositivos do Estatuto da Advocacia (Lei nº 8.906, de 1994)[124];

i) A constitucionalidade aparente do §8º do artigo 58 (que definia a competência da Justiça Federal) seria demonstrada pelo fato de que, mesmo privados, os Conselhos desempenhariam serviço público federal;

j) Depois do ajuizamento da ADI nº 1.717/DF, o artigo 26 da EC nº 19/1998[125] possibilitara a revisão da natureza jurídica das entidades da administração indireta, de modo que a Constituição expressamente trouxera norma geral suficiente a autorizar a adequação dos Conselhos à personalidade jurídica de direito privado;

k) A imunidade tributária concedida pelo §6º do artigo 58 conflitaria com a Constituição, porquanto, além de restrita a impostos, o referido benefício só poderia ser concedido pelo constituinte originário, sendo, ainda, vedado a lei federal invadir área reservada a Estados e Municípios.

Assim, por entender que o legislador pode/deve atribuir às entidades responsáveis pela fiscalização do exercício profissional a natureza jurídica que preferir (pública – direta ou indireta – ou privada), em juízo liminar votou Corrêa pela desnecessidade de suspensão cautelar do artigo 58, ressalvado o §6º, que, a seu juízo, deveria ser interpretado como isenção tributária, não imunidade.

Em sequência, o Ministro Sepúlveda Pertence, para ao final acompanhar o Relator, verbalizou:

(...) a onda neoliberal, ou qual nome tenha, ainda não chegou ao ponto de privatizar o poder de polícia. E o que se discute aqui é uma das modalidades do poder de polícia mais sérios, porque envolve uma das liberdades fundamentais do cidadão, a do exercício profissional, acrescido, ademais, com poder tributário; e como se não bastasse, com imunidade tributária[126].

Pertence ainda afastou a semelhança levantada por Corrêa quanto aos serviços notariais e à OAB, pois, enquanto no primeiro caso a Constituição teve de ser expressa em seu artigo 236, no segundo a Ordem, desde 1963, sempre lutou para não ser caracterizada como autarquia, tanto que, ao contrário dos demais Conselhos, nunca teve supervisão ministerial[127].

Os demais Ministros presentes à Sessão[128], por sua vez, não expuseram quaisquer outras considerações, limitando-se a acompanhar o Relator, de modo que a divergência ficou restrita ao Ministro Maurício Corrêa.

O julgado, então, recebeu a seguinte Ementa:

DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 58 E SEUS PARÁGRAFOS DA LEI FEDERAL Nº 9.649, DE 27.05.1998, QUE TRATAM DOS SERVIÇOS DE FISCALIZAÇÃO DE PROFISSÕES REGULAMENTADAS. 1. Está prejudicada a Ação, no ponto em que impugna o parágrafo 3º do art. 58 da Lei nº 9.649, de 27.05.1988, em face do texto originário do art. 39 da C.F. de 1988. É que esse texto originário foi inteiramente modificado pelo novo art. 39 da Constituição, com a redação que lhe foi dada pela E.C. nº 19, de 04.06.1988. E, segundo a jurisprudência da Corte, o controle concentrado de constitucionalidade, mediante a Ação Direta, é feito em face do texto constitucional em vigor e não do que vigorava anteriormente. 2. Quanto ao restante alegado na inicial, nos aditamentos e nas informações, a Ação não está prejudicada e por isso o requerimento de medida cautelar é examinado. 3. No que concerne à alegada falta dos requisitos da relevância e da urgência da Medida Provisória (que deu origem à Lei em questão), exigidos no art. 62 da Constituição, o Supremo Tribunal Federal somente a tem por caracterizada quando neste objetivamente evidenciada. E não quando dependa de uma avaliação subjetiva, estritamente política, mediante critérios de oportunidade e conveniência, esta confiada aos Poderes Executivo e Legislativo, que têm melhores condições que o Judiciário para uma conclusão a respeito. 4. Quanto ao mais, porém, as considerações da inicial e do aditamento de fls. 123/125 levam ao reconhecimento da plausibilidade jurídica da Ação, satisfeito, assim, o primeiro requisito para a concessão da medida cautelar ("fumus boni iuris"). Com efeito, não parece possível, a um primeiro exame, em face do ordenamento constitucional, mediante a interpretação conjugada dos artigos 5º, XIII, 22, XVI, 21, XXIV, 70, parágrafo único, 149 e 175 da C.F., a delegação, a uma entidade privada, de atividade típica de Estado, que abrange até poder de polícia, de tributar e de punir, no que tange ao exercício de atividades profissionais. 5. Precedente: M.S. nº 22.643. 6. Também está presente o requisito do "periculum in mora", pois a ruptura do sistema atual e a implantação do novo, trazido pela Lei impugnada, pode acarretar graves transtornos à Administração Pública e ao próprio exercício das profissões regulamentadas, em face do ordenamento constitucional em vigor. 7. Ação prejudicada, quanto ao parágrafo 3º do art. 58 da Lei nº 9.649, de 27.05.1998. 8. Medida Cautelar deferida, por maioria de votos, para suspensão da eficácia do "caput" e demais parágrafos do mesmo artigo, até o julgamento final da Ação[129].

Concedida a medida cautelar[130], oportunizou-se ao Advogado-Geral da União e ao Procurador-Geral da República a apresentação das respectivas manifestações[131].

O então Advogado-Geral da União, Gilmar Ferreira Mendes, manifestou-se pela constitucionalidade dos dispositivos impugnados e, consequentemente, pela total improcedência da ADI.

Fê-lo por entender que o objetivo dos dispositivos foi justamente tornar mais transparente a natureza jurídica dos Conselhos de Fiscalização de Profissões, “já que autarquias propriamente ditas, no sentido corrente do vocábulo para o Direito Administrativo (…), em rigor não seriam[132]”.

Prosseguiu afirmando que tais entidades, por exercerem atividade de utilidade pública de interesse da coletividade (e não atividade estatal típica), aproximam-se dos entes paraestatais, por si compreendidos como pessoas jurídicas de direito privado criadas por autorização legal, com patrimônio público ou misto, para realização de atividades, obras ou serviços de interesse coletivo, sob normas e controle do Estado.

Por desempenharem atividades de interesse público, o AGU entendeu que os atos de seus dirigentes seriam revestidos de “certa autoridade” e, por conseguinte, sujeitar-se-iam a Mandados de Segurança e ações populares.

Escorado no magistério de Hely Lopes Meirelles, Gilmar Mendes prosseguiu definindo entes paraestatais como o meio-termo entre o público e o privado, justapostos ao Estado (sem integrá-lo) e atuando em atividades de utilidade pública impróprias do Poder Público, razão pela qual seriam por este fomentadas.

Ainda amparado nas lições de Meirelles, o Advogado-Geral da União salientou serem espécies de entes paraestatais as empresas públicas e sociedades de economia misa (ambas da Administração Indireta) e os serviços sociais autônomos e as entidades disciplinadoras das profissões liberais (entes de cooperação[133]).

Conclui, pois, caracterizando as entidades de fiscalização de profissões regulamentadas como entes de cooperação, espécie do gênero entidades paraestatais.

Ponderou que, ainda que se admitisse a natureza autárquica dos entes, o conjunto das ideias contidas na Medida Provisória e na lei desta resultante permaneceria válido, pois a Constituição não pode ser interpretada “a partir da legislação ordinária que nela encontra fundamento, ou de meros conceitos doutrinários infensos à evolução do Estado[134]”.

Assim, para o Advogado-Geral da União, como a Constituição não define como requisito de autarquia a personalidade jurídica de direito público[135], legítimo seira que lei lhe conferisse natureza jurídica privada:

Conquanto possa enfrentar resistências, num primeiro instante, o certo é que a tese mostra-se plenamente harmônica com a corrente doutrinária pródiga em acentuar o caráter sui generis das autarquias corporativas. Dentre as peculiaridades que distinguiriam o gênero, bem poderia destacar a lei a índole privada de sua personalidade[136].

Prosseguindo em sua manifestação, o AGU afastou a inconstitucionalidade dos parágrafos §§6º e 8º do artigo 58 (imunidade tributária e competência da Justiça Federal) por entender serem as normas simples reproduções de regras constitucionais, assim como refutou afronta ao artigo 149 da Carta Republicana, já que o próprio STF admitira, na Representação nº 1169/DF, que a cobrança de contribuições de interesse das categorias profissionais, em forma de anuidades, poderia ser feita diretamente pelo Estado ou por delegação aos Conselhos.

Ao reputar pertinentes as consideração divergentes levantadas quando do julgamento da Medica Cautelar, Gilmar Mendes definiu que o reconhecimento da constitucionalidade do artigo 58 não afastaria ou excluiria os Conselhos de Fiscalização do controle externo exercido pelo Congresso Nacional, pois a própria Lei Orgânica do Tribunal de Contas (nº 8.443, de 1992), no inciso V de seu artigo 5º[137] submete à jurisdição da Corte os responsáveis por entidades dotadas de personalidade jurídica de direito privado que recebam contribuições parafiscais e prestem serviços de interesse público ou social.

Após fixar que tais entidades deveriam obediência aos princípios norteadores da Administração Pública elencados no caput do artigo 37 da CRFB/1988, Gilmar Mendes concluiu:

Como visto, não é defeso ao legislador instituir, mediante lei, peculiar regime jurídico de entidades paraestatais, ainda quando abrangidas pelo termo autarquias, dotando-as até mesmo de privilégios administrativos e prerrogativas públicas inerentes ao Estado. Não há, enfim, ilegitimidade constitucional na legislação que assim eventualmente disponha[138].

Por sua vez, o então Procurador-Geral da República, Geraldo Brindeiro, disse que a transformação da personalidade jurídica dos Conselhos (de pública para privada) seria vedada pelo artigo 21, XXIV, da CRFB/1988, pois os serviços por si desenvolvidos se caracterizariam como atividades típicas do Estado e de competência da União.

A PGR seguiu asseverando que, por possuírem as contribuições natureza tributária, a capacidade de ser sujeito ativo da obrigação, por força do artigo 119 do Código Tributário Nacional (CTN)[139], não poderia ser delegada a ente dotado de personalidade jurídica de direito privado por lei ordinária (caso da Lei nº 9.649), mas somente por lei complementar.

Geraldo Brindeiro ainda sustentou a inconstitucionalidade do afastamento da fiscalização pela Corte de Contas, pois o STF havia decidido nos Mandados de Segurança nº 21.797/RJ e 22.643/SC que os Conselhos devem prestar contas ao TCU.

Definido que só a Constituição poderia versar sobre imunidade tributária e sobre competência da Justiça Federal, o que acarretaria a inconstitucionalidade dos §§ 6º e 8º impugnados, concluiu o Parquet pela parcial procedência da ADI, restando prejudicada apenas quanto ao §3º, artigo 58.

Requerida a inclusão do feito em pauta para julgamento[140], em Sessão realizada em 07/11/2002[141], Sydney Sanches, depois de apresentar relatório, limitou-se a expor:

No mais, porém, ou seja, quanto ao art.58 e seus parágrafos 1º, 2º, 4º, 5º, 6º, 7º e 8º, a medida cautelar de sua suspensão foi deferida e o mérito da ADI pode agora ser julgado.

...

E agora, ao ensejo deste julgamento de mérito, não me convenci do contrário, sobretudo em face do parecer da Procuradoria Geral da República,...:

Por todas essas razões, estando prejudicada a Ação, quanto ao §3º do art.58, da Lei nº 9.649, de 27.05.1998, como já decidiu o Plenário, quando apreciou o pedido de medida cautelar, julgo-a, no mais, PROCEDENTE, para declarar a inconstitucionalidade do caput e dos parágrafos 1º, 2º, 4º, 5º, 6º, 7º e 8º do mesmo art.58[142].

Os demais Ministros, por sua vez, acompanharam à unanimidade[143] o Relator, sem, contudo, apresentarem quaisquer registros em separado, destaques ou complementos.

Interessante que Maurício Corrêa, para afastar a divergência por si suscitada quando do julgamento da Medida Liminar e rever seu posicionamento inicial, cingiu-se a expor:

Sr. Presidente, no caso da cautelar, fui vencido, porque entendia, naquela ocasião, não haver conveniência de deferir-se o pedido, sobretudo porque me transpareceu alguma dúvida com relação ao §8º, que dava competência à Justiça Federal para apreciar as controvérsias que envolvam os conselhos de fiscalização de profissões regulamentadas, quando no exercício de serviços a eles delegados. Superada a fase de delibação, acompanho o Relator[144].

Assim, frustradas as expectativas de que a mencionada divergência acarretaria longos e fundamentados debates, o julgamento final do STF quanto à natureza jurídica dos Conselhos e Ordens de fiscalização do exercício profissional recebeu a seguinte Ementa:

DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 58 E SEUS PARÁGRAFOS DA LEI FEDERAL Nº 9.649, DE 27.05.1998, QUE TRATAM DOS SERVIÇOS DE FISCALIZAÇÃO DE PROFISSÕES REGULAMENTADAS. 1. Estando prejudicada a Ação, quanto ao § 3º do art. 58 da Lei nº 9.649, de 27.05.1998, como já decidiu o Plenário, quando apreciou o pedido de medida cautelar, a Ação Direta é julgada procedente, quanto ao mais, declarando-se a inconstitucionalidade do "caput" e dos § 1º, 2º, 4º, 5º, 6º, 7º e 8º do mesmo art. 58. 2. Isso porque a interpretação conjugada dos artigos 5°, XIII, 22, XVI, 21, XXIV, 70, parágrafo único, 149 e 175 da Constituição Federal, leva à conclusão, no sentido da indelegabilidade, a uma entidade privada, de atividade típica de Estado, que abrange até poder de polícia, de tributar e de punir, no que concerne ao exercício de atividades profissionais regulamentadas, como ocorre com os dispositivos impugnados. 3. Decisão unânime[145].

Apresentados os fundamentos utilizados pelo STF para conferir a natureza autárquica aos Conselhos, para se dar continuidade à abordagem da matéria expor-se-ão as razões explicitadas pela Suprema Corte quanto à natureza jurídica da OAB.

2.2 Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.026/DF: natureza jurídica da Ordem dos Advogados do Brasil

Em 28/10/03 o Procurador-Geral da República, Cláudio Fonteles, ajuizou a ADI nº 3.026, com pedido de liminar, contra parte do §1º, artigo 79, do Estatuto da OAB (Lei nº 8.906, de 1994[146]), que dispunha: "sendo assegurado aos optantes o pagamento de indenização, quando da aposentadoria, correspondente a cinco vezes o valor da última remuneração".

Fê-lo por entender que o referido dispositivo estaria a violar o princípio da moralidade administrativa.

Ainda, requereu fosse dada ao caput do artigo 79[147] da mesma lei interpretação conforme o inciso II do artigo 37 da CRFB/1988.

Embora o cerne da referida discussão se relacionasse ao regime jurídico dos empregados da OAB, à indenização devida quando de sua aposentadoria e à (des)necessidade de submissão ao princípio do concurso público, a Suprema Corte deparou-se com nova oportunidade para discutir a natureza jurídica dos entes responsáveis pela fiscalização de profissões.

Isso por ter a PGR defendido que a OAB, por exercer serviço público de fiscalização da profissão de advogado (indispensável à administração da justiça – art.133 da CRFB/1988), seria pessoa jurídica de direito público, sujeita, pois, aos princípios da Administração.

Segundo a vestibular, quando do julgamento da ADI 1.707/MT o Ministro Moreira Alves destacara em seu voto expressamente a natureza autárquica da OAB:

Ora, a Ordem dos Advogados do Brasil, em face do disposto na Lei 8.906/94, é expressamente declarada com serviço público, dotada de personalidade jurídica e forma federativa, tendo por finalidade, dentre outras 'defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado democrático de direito, os direitos humanos, a justiça social, e pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas, bem como a de promover com exclusividade, entre outras, a seleção e a disciplina dos advogados' (artigo 44). Portanto. por essa Lei, é, em última análise, a OAB uma federação de pessoas jurídicas de direito público (autarquias) que têm atribuições que estão intimamente ligadas à prestação jurisdicional por parte do Estado, certo como é, inclusive, que o advogado, segundo o preceituado na parte inicial do artigo 133 da Constituição, é 'indispensável à administração da justiça'[148].

Como reforço, Cláudio Fonteles defendeu que a Ordem, além de possuir personalidade jurídica própria, deteria autoadministração e atuaria no exercício de atividade pública e específica do Estado (art.44, I e II, §§1º e 2º, da Lei nº 8.906, de 1994[149]), desfrutando, para tanto, de prerrogativas inerentes à condição de pessoa jurídica de direito público (tais como a imunidade tributária e o repasse de verbas públicas).

Para deferimento da medida cautelar e suspensão do §1º, art.79, da Lei nº 8.906, de 1994, expôs a PGR:

Assim, resta demonstrada a inconstitucionalidade material da expressão “sendo assegurado aos optantes o pagamento de indenização, quando da aposentadoria, correspondente a cinco vezes o valor da última remuneração” do §1º do art.79 da Lei nº 8.906/94, consubstanciando o fumus boni iuris das alegações anteriormente expendidas. Relativamente ao periculum in mora, é evidente o prejuízo irreparável ou de dificílima reparação, uma vez que, com a produção de efeitos pela norma alvejada, ainda está a permitir que aqueles servidores que à época não optaram pelo regime trabalhista, permanecendo submetidos ao regime da Lei nº 8.112/90, que venham a se aposentar, percebam indenização no valor de cinco vezes sua última remuneração, de forma contrária à moralidade administrativa[150].

Quanto ao mérito, Cláudio Fonteles requereu a declaração da inconstitucionalidade da expressão “sendo assegurado aos optantes o pagamento de indenização, quando da aposentadoria, correspondente a cinco vezes o valor da última remuneração” do §1º, artigo 79, do Estatuto da OAB, bem como a conformação da interpretação do caput do artigo 79 ao princípio do concurso público exigido no inciso II, artigo 37, da CRFB/1988.

Submetida a ação ao rito do artigo 12 da Lei nº 9.868, de 1999[151], e prestadas as informações pelo Presidente da República e pelo Congresso Nacional, o então Advogado-Geral da União, Álvaro Augusto Ribeiro Costa, manifestou-se pela improcedência da ADI.

Para tanto, ponderou que as normas do artigo 37 da CRFB/1988, por incidirem somente sobre a Administração Direta e Indireta, não alcançariam a OAB, porquanto “entidade corporativa autônoma, pelo menos, e, neste ponto, extreme de dúvidas, no que diz respeito ao seu funcionamento interno e estrutura, que compreendem o regime de pessoal[152]”.

O AGU, depois de dizer que a Lei nº 8.906, de 1994, em nenhum momento definira a OAB como autarquia, com respaldo em lições de Paulo Luiz Neto Lôbo (Comentários ao Novo Estatuto da Advocacia e da OAB, Brasília: Brasília Jurídica, 1994), aduziu que o funcionamento interno das ordens profissionais (possuidoras de natureza jurídica de direito público e de privado – mista, portanto), dentre as quais a Ordem dos Advogados, escaparia ao Direito Administrativo.

Quando muito, Álvaro Augusto Ribeiro Costa admitiu que as normas contidas nos artigos 37 e 38 da Constituição poderiam reger o exercício do poder de polícia administrativa da profissão, nunca sua estrutura ou seu funcionamento interno, sujeitos às normas de direito privado.

Ponderou a AGU, ainda:

Interessante colacionar de parecer do então Consultor-Geral da República, Dr.Luiz Rafael Mayer, posteriormente Ministro do Supremo Tribunal Federal, entendimento, ainda atual, sustentado a partir do disposto no §1º do art.139 do antigo Estatuto da OAB (Lei nº 4.215, de 1963), no sentido de que, “pela própria lei institucional, se conferia (e ainda se confere) à OAB uma situação peculiar, excepcional, divergente da que se atribuíra às suas congêneres, compreendidas no estalão comum” (Parecer nº L-69, de 09.05.1075, cópia anexa).

Vale conferir, ainda, a doutrina de Orlando de Assis Corrêa, que também assinala a desvinculação da OAB a qualquer ministério ou órgão governamental, repudiando, ainda, a classificação da OAB como autarquia: “A OAB não está subordinada, nem mesmo ligada, de qualquer forma, a qualquer ministério ou órgão governamental. (…). Embora alguns a queiram como uma autarquia, pensamos que a OAB é uma entidade autônoma, devendo obediência tão-somente às leis do País, e, seja na representação de seus inscritos, seja na competência institucional, agir com plena liberdade, limitada esta pelas leis vigentes, que deve respeitar e tentar aprimorar, e pela decisão soberana de seus inscritos, nas Assembléias Gerais que devem decidir, afinal, seus rumos maiores” (Comentários ao Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, 2ª ed., AIDE: Rio de Janeiro, 2003, p.163, original sem destaques)[153].

Ainda, ao acrescentar que a existência de servidores sujeitos ao regime estatuário seria situação excepcional, uma vez que o referido regime deixara de ser aplicado à OAB desde o Decreto-lei nº 968, de 1969, o Advogado-Geral observou que o artigo 37 da CRFB/1988 se aplicaria aos cargos e empregos públicos, os quais deveriam ser criados por lei. Assim, como os empregos da OAB não são criados por lei, o artigo 37 da CRFB/1988 não lhe seria aplicável.

Por fim, ao ponderar que a expressão atacada na ADI não contrariaria o princípio da moralidade administrativa, a Advocacia-Geral da União manifestou-se pelo reconhecimento da constitucionalidade do §1º, art.79, da Lei nº 8.906, de 1994, e, também, pela impossibilidade de se conferir ao caput do art.79 da mesma norma a interpretação conforme pretendida.

O Procurador-Geral da República, Cláudio Fonteles, instado pelo artigo 12 da Lei nº 9.868, de 1999, a se manifestar, posicionou-se[154] pela procedência do pedido.

Fê-lo por entender que, à luz do Decreto-lei nº 200, de 1967, e do magistério de Hely Lopes Meirelles, inexistiriam dúvidas quanto à natureza pública e autárquica da OAB, pois, além de ter sido criada por lei (Decreto nº 19.408, de 1930) e ser detentora de personalidade jurídica própria, seu patrimônio, proveniente de contribuições de seus membros, seria público.

Ainda, Fonteles destacou que, segundo posicionamento adotado pelo STF quando do julgamento da ADI nº 1.707MC/MT, a OAB estaria investida do exercício de atividade típica do Estado vinculado à prestação jurisdicional.

Por fim, segundo o Parquet, a ausência de vínculo funcional ou hierárquico com a Administração Pública não seria fundamento para caracterizá-la como ente privado, porquanto a ausência dos referidos vínculos seria justamente a razão de sua classificação como autarquia.

Poder-se-ia argumentar que a OAB possui natureza de pessoa jurídica de direito privado, uma vez que esta não mantém com órgãos da Administração Pública qualquer vínculo funcional ou hierárquico, conforme a norma do §1º do art.44 da Lei nº 8.906/94, entretanto, tal raciocínio não se sustenta.

Na lição de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, “sendo, como são, pessoas jurídicas, as autarquias gozam de liberdade administrativa nos limites da lei que as criou; não são subordinadas a órgão algum do Estado, mas apenas controladas”. Sendo assim, a ausência de vínculo funcional ou hierárquico da OAB ao qualquer órgão da Administração Pública, é justamente o fundamento para classificar-lhe como autarquia[155].

Assim, partindo da premissa de que a OAB possuiria natureza jurídica de autarquia, concluiu a PGR estar a Ordem sujeita aos princípios gerais da Administração Pública, devendo ser reconhecida a inconstitucionalidade do §1º, art.79, da Lei nº 8.906, de 1994, bem como declarado que os empregados da OAB somente devem ser contratados depois de aprovados em concurso público.

O julgamento da ADI, que teve relatoria do Ministro Eros Grau, iniciou-se em Sessão realizada em 23/02/2005 e se findou em 08/06/2006[156].

O Relator iniciou ressaltando que a criação de entidade por lei não seria causa suficiente para sua caracterização como autarquia, posto que a própria Constituição admite nos incisos XIX e XX do artigo 37[157] a criação, pela União e também por lei, de pessoas jurídicas de direito privado.

Para Eros Grau, a autonomia e independência da OAB seria percebida na medida em que seus serviços não teriam como destinatária a comunidade, de modo que, inexistente a coesão social, não poderia a Ordem ser considerada serviço público.

Após transcrever trechos de parecer de autoria de Dario de Almeida Magalhães[158], Eros Grau afirmou que a OAB não compõe a Administração Indireta da União, tanto que os diplomas que a estruturam (Decreto nº 19.408, 1930; Lei 4215, de 1963; Lei nº 8.906, de 1994) não a enquadraram como autarquia.

Nesse cenário, a despeito da irrelevância quanto à qualificação das entidades como autarquias, fundações e sociedades de economia mista, a OAB não seria entidade da Administração e não estaria adstrita ao princípio do concurso público (próprios dos entes integrantes da Administração), peculiaridade essa que, a juízo do Relator, deveria permanecer inalterada, inclusive, para afirmação do princípio republicano.

Por fim, para o Relator, enquanto as autarquias (nada obstante responsáveis por seus próprios comportamentos e não subordinadas ao Estado) estariam sujeitas à tutela administrativa (elemento fundamental para sua caracterização e que autoriza a Administração Direta a interferir em sua atividade de modo a garantir o cumprimento dos objetivos institucionais), o controle e a interferência não seria formal ou materialmente necessária em relação à OAB, pois sua finalidade (vinculada à essencialidade do advogado para a administração da Justiça – artigo 133 da CRFB/1988) não poderia vincular-se ou se subordinar a qualquer órgão público:

Ora, a OAB não é, evidenciadamente, uma entidade da Administração Indireta. Não está sujeita a controle da Administração, nem a qualquer das suas partes está vinculada.

Essa não-vinculação é formal e materialmente necessária. A OAB ocupa-se de atividades atinentes aos advogados, que exercem função constitucionalmente privilegiada na medida em que são indispensáveis à administração da Justiça, nos termos do que dispõe o artigo 133 da Constituição do Brasil. Entidade cuja finalidade é afeita a atribuições, interesses e seleção de advogados não poderia vincular-se ou subordinar-se a qualquer órgão público.

A Ordem dos Advogados do Brasil é, em verdade, entidade autônoma, porquanto autonomia e independência são características próprias dela, que, destarte, não pode ser tida como congênere dos demais órgãos de fiscalização profissional. Ao contrário deles, a Ordem dos Advogados do Brasil não está voltada exclusivamente a finalidades corporativas, mas, nos termos do art.44, I da lei, tem por finalidade “defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado democrático de direito, os direitos humanos, a justiça social, e pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas. Esta é, iniludivelmente, finalidade institucional e não corporativa.

A Constituição do Brasil confere atribuições de extrema relevância à OAB, bastando para ratificar a assertiva ressaltar o disposto no inciso VIII do artigo 103 da Constituição, que confere legitimidade ao Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil para a propositura da ação direta de inconstitucionalidade, bem assim a definição de advogado como essencial á promoção da Justiça, ao qual é assegurada inviolabilidade no que tange aos seus atos e manifestações no exercício da profissão[159].

Carlos Velloso, embora não tenha proferido Voto em razão de não mais integrar a Suprema Corte quando da continuidade do julgamento, durante os debates fez questão de expôr que os julgadores, para decidirem as controvérsias, no mister de tipificar devem valer-se das categorias jurídicas existentes, razão pela qual a classificação das entidades e institutos, ainda que possuidores de peculiaridades e especificidades (como é o caso dos Conselhos e Ordens), deveria observar o tratamento consagrado.

Joaquim Barbosa, por sua vez, começou atestando que o Direito Comparado não possui situação semelhante à desfrutada pela OAB no ordenamento jurídico pátrio, pois, aqui, além de participar da formação do Estado, reúne a única categoria que tem o direito constitucional de ingressar em suas fileiras.

Segundo Barbosa, existiria em relação à Ordem uma espécie de regime público, pois, além da sujeição ou subordinação à Administração Direta, as autarquias também seriam caracterizadas pelo exercício de missões públicas típicas:

O que caracteriza a natureza de uma autarquia – há diversas modalidades de autarquias – não é simplesmente, como disse o ministro Eros Grau, sua sujeição ou subordinação a um órgão ou entidade da Administração; é o fato de que ela assume ou exerce atividades, missões típicas de serviço público. E todos esses elementos contidos na nossa Constituição e nas leis referentes à OAB indicam, sim, que esta é regida por um regime de direito público, e não de direito privado[160].

O fato de a OAB congregar profissionais considerados essenciais à Justiça, continuou Barbosa em seu voto-divergente, enfatizaria sua natureza pública e sua sujeição a um regime de direito público.

Joaquim Barbosa, por fim, arrebatou com a certeza de que a OAB não se distinguiria, em essência, dos demais Conselhos, não podendo ser o tratamento constitucional lhe dispensado utilizado como argumento para privilégio[161].

Carlos Ayres Britto, por sua vez, iniciou alertando que somente a OAB e a advocacia mereceram tratamento constitucional, razão pela qual gozaria de singularidades enquanto pessoa jurídica e não se submeteria a tutela e controle do Estado.

O referido tratamento constitucional, continuou Britto, a faria ir além da tarefa corporativa para atingir a função institucional de defesa da ordem jurídica e da Constituição, sendo essa a essência para sua comparação aos demais Conselhos.

Depois de registrar que, segundo Aristóteles, os homens padecem do vício de tentar adaptar realidades diferenciadas em escaninhos conceituais preexistentes, Carlos Ayres Britto reforçou que a OAB seria mais uma situação heterodoxa do Direito, sendo exemplos de suas especificidades: seus cargos e empregos não são criados, modificados ou extintos por lei; os vencimentos não são fixados por lei; não se integra nos órgãos e entes da Administração Pública e, portanto, não se submete à direção do Chefe do Executivo ou à coordenação, supervisão e orientação de Ministros de Estado; e seu patrimônio não pertence ao Estado.

Assim, Britto definiu a Ordem como instituição da sociedade civil de natureza bifronte regida por normas de direito público e privado e que, assim como a imprensa, para exercer seu munus público, deveria permanecer absolutamente desatrelada do Poder Público, competindo-lhe fiscalizar o Estado, não ser por ele fiscalizado:

…, o pensamento jurídico ortodoxo sobre a OAB encontra sérias dificuldades pela heterodoxia da natureza da OAB, que eminentemente é uma instituição da sociedade civil, não é uma instituição da sociedade estatal, daí por que aparelhada pela própria Constituição, “n” vezes a fim de exercer um munus que a coloca ao lado da Imprensa como as duas grandes instituições da sociedade civil. E por natureza infensas, ambas, imprensa e OAB, a controles estatais[162].

Para diferenciá-la dos demais Conselhos, Ayres Britto reiterou o fato de a OAB congregar profissionais – advogados - que desempenham função constitucionalmente considerada essencial à jurisdição e à justiça.

O Ministro Nelson Jobim, pois, ao expressar que o Ministério Público, em verdade, pretendia com a propositura da ADI medir forças e disputar espaço institucional com a OAB, alertou que a Corte não poderia se esquecer do processo histórico-político que desenhara a OAB para colocá-la sobre as categorias de direito administrativo consagradas, sob pena de se “pegar um processo histórico político clássico, claramente sui generis em face da realidade política e institucional do País, (...), para outro objetivo que não fazer com que se traia esse processo político”.

Jobim propôs, então, que as categorias jurídicas existentes, ao contrário do que preconizou Carlos Velloso, deveriam ser vistas a partir da história, porquanto o dinamismo social exigiria uma reinterpretação dos modelos jurídicos.

Cezar Peluso, a seu turno, definiu que as dificuldades no julgamento da ADI repousavam na tentativa de se analisar a OAB a partir das compreensões e conceitos predefinidos e preexistentes, por si definidos como “escaninhos preestabelecidos”.

Ao salientar que a OAB seria regida por normas de direito público e de direito privado, Peluso indagou: “o regime de pessoal da Ordem está sujeito a regras de direito público? Os cargos são criados por lei? Há necessidade de lei para regular qualquer circunstância do regime jurídico de pessoal?”[163].

A suas próprias perguntas respondeu que ao pessoal da OAB não se aplicariam as normas de direito público.

Para tanto, Peluso definiu que, sendo escopo da regra do concurso público (sedimentado no princípio da impessoalidade, não da eficiência) impedir que o poder político caia na tentação de submeter a máquina e o serviço públicos a suas ambições e projetos pessoais, a OAB “não tem nenhuma afinidade ou familiaridade com essa problemática do poder político como tal, porque ela não é objeto do poder político no sentido rigoroso da palavra”[164].

Prosseguiu fixando que, embora a função da Ordem tenha nítido caráter público, este “não tem alcance de tentar equipará-la à natureza orgânica da Administração Pública para efeito de atrair para sua administração interna as mesmas regras da Administração Pública em geral”[165], de modo que não se exige dela o concurso público.

Prosseguindo o julgamento, o Ministro Gilmar Ferreira Mendes houve por bem pedir vista dos autos.

Em seu destacado voto-vista, apresentado na Sessão de 08/06/2006, Gilmar Mendes definiu preliminarmente estar a questão sob análise intimamente relacionada à conformação constitucional e legal conferida à OAB e a sua atuação no sistema constitucional de 1988.

Ponderou, porém, que a análise da matéria (regime dos servidores da OAB) deveria ser feita independentemente dos 'rótulos jurídicos', formas e conceitos predefinidos, já que “o nomen iuris aplicável é insuficiente para que, por si só, se tenha a dimensão das garantias constitucionais envolvidas, assim como da função institucional desempenhada pela entidade”[166].

Embora na inicial da ADI o Procurador-Geral da República tenha exposto que o STF, quando do julgamento da ADI nº 1.707/MT[167], houvera atribuído à OAB a natureza autárquica, tal definição, segundo Gilmar Mendes, decorreu não das peculiaridades da Ordem, mas da relevância do serviço público por si prestado.

Assim é que, segundo Mendes, “da leitura de toda a argumentação expendida pelo Ministro Moreira Alves, portanto, constata-se a dificuldade de sustentar, de modo absoluto, a efetiva configuração do caráter autárquico da OAB”[168].

Ratificou a referida dificuldade com os seguintes argumentos: a) a manifestação do STF se deu em caráter liminar; b) “embora a ementa do julgado indevidamente faça pressupor a caracterização da OAB como autarquia, em nenhum momento pode-se dizer que esse fundamento tenha sido decisivo para o indeferimento da liminar[169]”; c) impossibilidade de se invocar vinculação à decisão proferida na ADI nº 1.707/MT, porquanto desprovida de “definitividade e profundidade do pronunciamento realizado naquela assentada”[170].

Assim, fixada a premissa de que a natureza jurídica da OAB não fora objeto das devidas considerações por parte do STF, Gilmar Mendes sustentou que a Ordem, por se tratar de organização pública que executa papel institucional de cunho estatal e público (cadastramento de habilitados, fixação de critérios avaliativos para ingresso na profissão, fiscalização da qualidade dos serviços prestados e aplicação de sanções disciplinares), constituiria serviço público stricto sensu, ainda que não hierárquica ou funcionalmente sujeita à Administração Pública:

A OAB, ainda que não esteja diretamente submetida a vínculo funcional ou hierárquico quanto aos órgãos da Administração Pública (Lei nº 8.906/1994, art.55, §1º), é responsável por atividades de inegável relevância pública, tais como, a título meramente exemplificativo:

a) “defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado democrático de direito, os direitos humanos, a justiça social, e pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas;” (Lei nº 8.906/1994, art.44, I);

b) “promover, com exclusividade, a representação, a defesa, a seleção e a disciplina dos advogados em toda a República Federativa do Brasil.” (Lei nº 8.906/1994, art.44, II);

c) a competência da OA para “fixar e cobrar de seus inscritos, contribuições, preços de serviços e multas”, cujos créditos, uma vez reconhecidos por “certidão passada pela diretoria do Conselho competente”, “constitui título executivo extrajudicial” (Lei nº 8.906/1994, art.46, caput e parágrafo único);

d) a titularidade para o recolhimento de pagamento da contribuição anual à OAB, o qual “isenta os inscritos nos seus quadros do pagamento obrigatório da contribuição sindical” (Lei nº 8.906/1994, art.47 – dispositivo sub judice, impugnado na ADI nº 2.522/DF, Rel.Eros Grau);

e) “por constituir serviço público, [a OAB] goza de imunidade tributária total em relação a seus bens, rendas e serviços” (Lei nº 8.906/1994, art.45, §5º);

f) “Os atos conclusivos dos órgãos da OAB, salvo quando reservados ou de administração interna, devem ser publicados na imprensa oficial ou afixados no fórum, na íntegra ou em resumo” (Lei nº 8.906/1994, art.45, §6º);

g) o Conselho Federal da OAB possui competência para “representar, com exclusividade, os advogados brasileiros nos órgãos e eventos internacionais da advocacia;” (Lei nº 8.906/1994, art.54, IV); e

h) a vinculação dos advogados públicos à OAB e a conseqüente possibilidade de aplicação de sanções[171].

Para Mendes, portanto, a função institucional da OAB abrangeria o dever de definição das condições para o legítimo exercício do poder de polícia lhe atribuído pela Constituição, de modo que, à luz do inciso XIII, artigo 5º, da CRFB/1988, as atribuições lhe conferidas pela Lei nº 8.906, de 1994, assumiriam contornos fortemente estatais, inclusive em relação aos vários campos de atuação jurídica do Estado.

Em sequência, a relevante e destacada atuação histórica da OAB não poderia resultar na instituição de um regime de privilégios, devendo a Ordem atuar segundo o contexto republicano definido no artigo 1º da CRFB/1988.

Desse modo, prosseguiu o Ministro, consequência do exercício de atividade pública seria o respeito, pelos agentes investidos nas respectivas funções públicas, aos postulados ético-jurídicos vinculados à adequada fiscalização e responsabilidade, e a legitimação para atuação da OAB pressuporia “uma burocracia estável escolhida por métodos objetivos”[172].

A aplicação do princípio republicano a esse caso envolve a premissa de que todo e qualquer agente, ao atuar para a realização de interesse eminentemente público-estatal, não se pode furtar obediência à Constituição, nem pretender eximir seus atos e omissões da pertinente fiscalização exercida pelas instâncias críticas da sociedade[173].

Gilmar Mendes, ainda, apontou que, na prática, direitos constitucionalmente previstos são, em grande medida, reconhecidos justamente em razão da atuação em juízo de advogados (capacidade postulatória), o que realçaria a necessidade de se preverem instrumentos e procedimentos de controle e fiscalização da advocacia e, por consequência, exigiria maior segurança, transparência e legitimidade da OAB quanto aos serviços públicos por si desempenhados.

Afirmou Gilmar Mendes, pois, que a OAB corresponderia a instituição civil que, legal e constitucionalmente, “exerce atividade pública de extrema relevância: a habilitação, o controle, a fiscalização e a aplicação de penalidades na área profissional da advocacia”, mas que, “exatamente por seu caráter de autonomia com relação à estrutura hierárquica do Estado (Lei nº 8.906/1994, art.44, §1º), não pode ser enquadrado especificamente na disciplina típica do art.175 da CF”[174].

Para sedimentar sua posição, registrou Gilmar Mendes que a experiência estadunidense dos state actions nos the public function cases[175] levou a Suprema Corte norteamericana a reconhecer o exercício de função pública por entes privados.

Tal experiência, prosseguiu, admitiria que atores aparentemente privados (seemingly private actors) exercessem funções típicas dos poderes públicos (powers or functions governmental in nature), sendo, por conseguinte, equiparados ao aparato estatal, inclusive para fins de responsabilização à luz da ordem constitucional[176].

A razão de ser da OAB, pois, deveria ser analisada a partir da concretização e da viabilização de direitos individuais, coletivos e difusos constitucionalmente reconhecidos (artigo 5º, XIII e XXXVI), sendo a abertura ao controle social medida republicana para legitimação de sua atuação:

O poder de polícia delegado à OAB, assim como no caso das empresas estatais prestadoras de serviços públicos em geral, corresponde a serviço público de sede constitucional e legal, e que poderia até mesmo, caso assim entendesse o constituinte originário, ter sido diretamente atribuído a algum dos poderes constituídos.

Logo, para o caso em apreço, a imposição da aplicação do princípio do concurso público não decorre necessariamente da natureza jurídica da entidade em questão. É preciso levar em conta, ademais, a premissa normativa de que o serviço público delegado à OAB apresenta dimensão de relevância não apenas pública, mas também estatal (ou paraestatal)[177].

E prosseguiu:

... - acredito que já estamos cansados dessas formas jurídicas de autarquias - na qual acho bom que se divise, sim, um tertium genus ou um modelo que não tenha de reproduzir essas características já conhecidas de Administração direta ou indireta. É bom que a Ordem seja considerada uma entidade civil, com esse forte perfil institucional. Isso faz bem ao próprio processo de independência que ela deva ter[178].

Finalizou Gilmar Mendes, então, com a seguinte consideração:

Não acho que devamos nos aferrar, inclusive, às formas jurídicas existentes, no caso, senão seria muito fácil perfilhar a tese do caráter autárquico e, a partir daí, assumir todas as consequências desse modelo. (…). Agora, é inegável, a Ordem, como os demais conselhos que fiscalizam profissões, exerce poder estatal inequívoco, inclusive temos jurisprudência sobre o assunto, a partir do célebre caso julgado pelo Ministro Rodrigues Alckmin, sobre a liberdade de exercício profissional. Na verdade, esses órgãos cumprem uma função eminente de regulação de profissão, e é nesse contexto que se coloca, portanto, a necessidade, a meu ver, diante desse caráter e, também, do modelo de financiamento, público, sabemos bem, das entidades ter-se esse padrão republicano, tão-somente isso[179].

Ricardo Lewandowski, a seu turno, consignou que as corporações de advogados, desde a Roma Antiga, nunca tiveram qualquer vínculo com o Estado, o que se repetiu no Brasil em toda a história da OAB.

Embora de natureza controvertida, entendeu ser a Ordem uma federação de corporações que presta munus público definido na Constituição, o que não se confunde com serviço público stricto sensu:

Concordo, data venia, com o eminente Ministro Eros Grau quando diz que a OAB não presta, a rigor, serviço público stricto sensu. Na medida em que é uma corporação e seus membros desempenham múnus público, ela desempenha o múnus público, taxativamente determinado, aqui e acolá, na Constituição.

Trago aqui definição da sempre magistral Professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro, (…), na qual diz o seguinte: “Serviço público é toda atividade que a administração pública executa direta ou indiretamente para satisfazer a necessidade coletiva, sob regime predominantemente público”.

A partir dessa definição, com todo o respeito, não posso enxergar na atividade da OAB um serviço público, pelo menos tal como definem os doutrinadores – à frente de todos, aqui, a nossa Professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro[180].

Ao ponderar não serem os cargos da OAB criados por lei, Lewandowski prosseguiu dizendo que o exercício de poder de polícia e a administração de certames públicos para o ingresso de seus membros nos respectivos quadros não seriam suficientes para alterar o raciocínio de que de serviço público stricto sensu não se trata, já que as universidades privadas também exercem atividade fiscalizatória e, nem por isso, cogita-se que seus quadros devam ser providos mediante concurso público.

Lewandowski encerrou, então, afirmando ser incompatível com a natureza histórica da OAB entendê-la vinculada, controlada e tutelada pela Administração Indireta.

Durante os debates Marco Aurélio fez questão de ressaltar que com a ADI nº 3.026/DF o STF estaria a julgar, indiretamente, todo o Sistema de Fiscalização do Exercício Profissional, pois a OAB e os demais Conselhos e Ordem foram todos criados por lei, são detentores do poder de polícia e podem impor contribuições obrigatórias.

Assim, segundo Marco Aurélio, caso se entendesse pela natureza privada da OAB, igual raciocínio deveria ser estendido às demais entidades.

Questionou, todavia, a referida natureza privada, pois foi precisamente a criação por lei (com personalidade jurídica, patrimônio e receita próprios) que lhe conferira o poder de executar atividades típicas da Administração, de modo que sua atuação, além do simples cadastramento de advogados, abrangeria a fiscalização da profissão e, principalmente, o uso do Poder de Polícia, suficiente inclusive a inviabilizar a fruição do direito fundamental de exercício profissional (artigo 5º, XIII).

Nada obstante a Constituição tenha dado especial atenção à Ordem, segundo Marco Aurélio, isso não significa estar ela acima do próprio Estado, sob pena de ser considerada “órgão todo-poderoso”.

Ainda, depois de dizer que o maior destaque da OAB em relação aos demais Conselhos de Fiscalização decorreria do simples fato de a capacidade postulatória (instrumento de acesso ao Judiciário e exercício de cidadania) depender do registro dos advogados em seus quadros, Marco Aurélio concluiu não ser possível equipará-la aos partidos políticos, já que, enquanto a adesão a partido político não é obrigatória, para o exercício da advocacia exige-se a prévia inscrição dos advogados nos quadros da OAB.

Sepúlveda Pertence, por sua vez, observou que, como na ADI nº 1.717/DF decidiu-se pela natureza pública de todos os Conselhos de Fiscalização, as autarquias (por força do Decreto-lei nº 200, de 1967) estariam sujeitas à tutela da Administração e, por consequência, ao princípio do concurso público (sendo irrelevante para tanto o regime – estatutário ou trabalhista – de seus servidores).

Entretanto, após asseverar que no referido julgamento não se analisara especificamente a natureza jurídica da OAB, Pertence ponderou que a Ordem, assim como os partidos políticos, teria 'personalidade bifronte' (entidade que, por exercer munus público, possui natureza pública - aspecto funcional -, mas no plano de composição de seus quadros, formação de sua diretoria, recrutamento de seus servidores, é privada), razão pela qual o concurso, embora desejável, não seria uma imposição constitucional:

Senhora Presidente, de minha parte faço votos pra que, por deliberação própria da entidade ou da sua lei orgânica, a Ordem venha, sim, a submeter-se à regra do concurso público. No campo interno da Ordem, é indiscutível que a ausência do concurso público pode, sim, comprometer o caráter de impessoalidade, enfatizado no antológico voto do Ministro Cezar Peluso, a que Sua Excelência se remeteu.

Agora, não consegui me convencer, sem embargo do brilho dos votos dissidentes dos Ministros Joaquim Barbosa e Gilmar Mendes, de que essa necessidade decorra da Constituição Federal[181].

Por fim, a Ministra Ellen Gracie, Presidente do STF, limitou-se a expor:

Senhores Ministros, também eu, com vênia dos Ministros Gilmar Mendes e Joaquim Barbosa, julgo improcedente a ação, fazendo por adotar, também, os bons votos e bons augúrios agora manifestados pelo Ministro Sepúlveda Pertence de que a Ordem, voluntariamente, venha a se curvar à regra democrática do concurso público[182].

O Plenário do STF[183], então, vencidos parcialmente os Ministros Gilmar Mendes e Joaquim Barbosa, entenderam que a OAB fundado nas referidas razões, não está sujeita à regra do concurso público, recebendo o Acórdão a seguinte Ementa:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. § 1º DO ARTIGO 79 DA LEI N. 8.906, 2ª PARTE. "SERVIDORES" DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. PRECEITO QUE POSSIBILITA A OPÇÃO PELO REGIME CELESTISTA. COMPENSAÇÃO PELA ESCOLHA DO REGIME JURÍDICO NO MOMENTO DA APOSENTADORIA. INDENIZAÇÃO. IMPOSIÇÃO DOS DITAMES INERENTES À ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DIRETA E INDIRETA. CONCURSO PÚBLICO (ART. 37, II DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL). INEXIGÊNCIA DE CONCURSO PÚBLICO PARA A ADMISSÃO DOS CONTRATADOS PELA OAB. AUTARQUIAS ESPECIAIS E AGÊNCIAS. CARÁTER JURÍDICO DA OAB. ENTIDADE PRESTADORA DE SERVIÇO PÚBLICO INDEPENDENTE. CATEGORIA ÍMPAR NO ELENCO DAS PERSONALIDADES JURÍDICAS EXISTENTES NO DIREITO BRASILEIRO. AUTONOMIA E INDEPENDÊNCIA DA ENTIDADE. PRINCÍPIO DA MORALIDADE. VIOLAÇÃO DO ARTIGO 37, CAPUT, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. NÃO OCORRÊNCIA. 1. A Lei n. 8.906, artigo 79, § 1º, possibilitou aos "servidores" da OAB, cujo regime outrora era estatutário, a opção pelo regime celetista. Compensação pela escolha: indenização a ser paga à época da aposentadoria. 2. Não procede a alegação de que a OAB sujeita-se aos ditames impostos à Administração Pública Direta e Indireta. 3. A OAB não é uma entidade da Administração Indireta da União. A Ordem é um serviço público independente, categoria ímpar no elenco das personalidades jurídicas existentes no direito brasileiro. 4. A OAB não está incluída na categoria na qual se inserem essas que se tem referido como "autarquias especiais" para pretender-se afirmar equivocada independência das hoje chamadas "agências". 5. Por não consubstanciar uma entidade da Administração Indireta, a OAB não está sujeita a controle da Administração, nem a qualquer das suas partes está vinculada. Essa não-vinculação é formal e materialmente necessária. 6. A OAB ocupa-se de atividades atinentes aos advogados, que exercem função constitucionalmente pr ivilegiada, na medida em que são indispensáveis à administração da Justiça [artigo 133 da CB/88]. É entidade cuja finalidade é afeita a atribuições, interesses e seleção de advogados. Não há ordem de relação ou dependência entre a OAB e qualquer órgão público. 7. A Ordem dos Advogados do Brasil, cujas características são autonomia e independência, não pode ser tida como congênere dos demais órgãos de fiscalização profissional. A OAB não está voltada exclusivamente a finalidades corporativas. Possui finalidade institucional. 8. Embora decorra de determinação legal, o regime estatutário imposto aos empregados da OAB não é compatível com a entidade, que é autônoma e independente. 9. Improcede o pedido do requerente no sentido de que se dê interpretação conforme o artigo 37, inciso II, da Constituição do Brasil ao caput do artigo 79 da Lei n. 8.906, que determina a aplicação do regime trabalhista aos servidores da OAB. 10. Incabível a exigência de concurso público para admissão dos contratados sob o regime trabalhista pela OAB. 11. Princípio da moralidade. Ética da legalidade e moralidade. Confinamento do princípio da moralidade ao âmbito da ética da legalidade, que não pode ser ultrapassada, sob pena de dissolução do próprio sistema. Desvio de poder ou de finalidade. 12. Julgo improcedente o pedido[184].

Apresentados em linhas gerais os argumentos prevalecentes no julgamento de ambas as Ações Diretas de Inconstitucionalidade, passemos à análise das referidas teses.

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Sobre o autor
Cyrlston Martins Valentino

Advogado atuante em Goiás e Distrito Federal, advogado do Conselho Federal de Medicina Veterinária

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VALENTINO, Cyrlston Martins. Conselhos e ordens de fiscalização do exercício profissional: perfil jurídico a partir da jurisprudência do STF. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3334, 17 ago. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22434. Acesso em: 31 out. 2024.

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