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Crimes de informática.

Uma nova criminalidade

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01/10/2001 às 00:00
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4. Internet, Ciberespaço e Direito Penal

É muito antiga a noção de que Direito e Sociedade são elementos inseparáveis. "Onde estiver o homem, aí deve estar o Direito", diziam os romanos. A cada dia a Ciência Jurídica se torna mais presente na vida dos indivíduos, porque sempre as relações sociais vão-se tornando mais complexas.

A Internet, a grande rede de computadores, tornou essa percepção ainda mais clara. Embora, nos primeiros anos da rede tenham surgido mitos sobre sua "imunidade" ao Direito, esse tempo passou e já se percebe a necessidade de mecanismos de auto-regulação(41) e hetero-regulação, principalmente por causa do caráter ambivalente da Internet.

CELSO RIBEIRO BASTOS, nos seus Comentários à Constituição do Brasil, percebeu essa questão, ao asseverar que "A evolução tecnológica torna possível uma devassa na vida íntima das pessoas, insuspeitada por ocasião das primeiras declarações de direitos" (42). Força é convir que não se pode prescindir do Direito, para efeito da prevenção, da reparação civil e da resposta penal, quando necessária.

Tendo em vista as origens da Internet, é quase um contra-senso defender a idéia de que o ciberespaço co-existe com o "mundo real" como uma sociedade libertária ou anárquica. Isto porque a cibernética — que se aplica inteiramente ao estudo da interação entre homens e computadores — é a ciência do controle. A própria rede mundial de computadores, como um sub-produto da Guerra Fria, foi pensada, ainda com o nome de Arpanet (Advanced Research Projects Agency), para propiciar uma vantagem estratégica para os Estados Unidos, em caso de uma conflagração nuclear global contra a hoje extinta União Soviética.

A WWW – World Wide Web, que popularizou a Internet, propiciando interatividade e o uso de sons e imagens na rede, foi desenvolvida em 1990 no CERN — Organisation Européenne pour la Recherche Nucléaire/European Organization for Nuclear Research(43), pelo cientista TIM BERNERS-LEE. O CERN é uma organização internacional de pesquisas nucleares em física de partículas, situada nas proximidades de Genebra, na Suíça, e fundada em 1954. Atualmente a sua convenção-constituinte tem a ratificação de vinte Estados-partes.

Além dessa origem pouco vinculada à idéia de liberdade, a grande rede não tem existência autônoma. As relações que se desenvolvem nela têm repercussões no "mundo real". O virtual e o real são apenas figuras de linguagem (um falso dilema), não definindo, de fato, dois mundos diferentes, não dependentes. Em verdade, tudo o que se passa no ciberespaço acontece na dimensão humana e depende dela.

Por conseguinte, a vida online nada mais é do que, em alguns casos, uma reprodução da vida "real" somada a uma nova forma de interagir. Ou seja, representa diferente modo de vida ou de atuação social que está sujeito às mesmas restrições e limitações ético-jurídicas e morais aplicáveis à vida comum (não eletrônica), e que são imprescindíveis à convivência. Tudo tendo em mira que não existem direitos absolutos e que os sujeitos ou atores desse palco virtual e os objetos desejados, protegidos ou ofendidos são elementos da cultura ou do interesse humano.

Mas a Internet não é só isso. No que nos interessa, a revolução tecnológica propiciada pelos computadores e a interconexão dessas máquinas em grandes redes mundiais, extremamente capilarizadas, é algo sem precedentes na história humana, acarretado uma revolução jurídica de vastas proporções, que atinge institutos do direito tributário, comercial, do consumidor, temas de direitos autorais e traz implicações à administração da Justiça, à cidadania e à privacidade.

Não é por outra razão que, do ponto de vista cartorial (direito registrário), a Internet já conta com uma estrutura legal no País, representada pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil, que delegou suas atribuições à FAPESP – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, e tem regulamentado principalmente a adoção, o registro e a manutenção de nomes de domínio na rede brasileira.

Assim, verifica-se que não passam mesmo de mitos as proposições de que a Internet é um espaço sem leis ou terra de ninguém, em que haveria liberdade absoluta e onde não seria possível fazer atuar o Direito Penal ou qualquer outra norma jurídica(44).

Estabelecido que a incidência do Direito é uma necessidade inafastável para a harmonização das relações jurídicas ciberespaciais, é preciso rebater outra falsa idéia a respeito da Internet: a de que seriam necessárias muitas leis novas para a proteção dos bens jurídicos a serem tutelados pelo Direito Penal da Internet. Isto é uma falácia. Afinal, conforme o Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE, do Supremo Tribunal Federal, a invenção da pólvora não mudou a forma de punir o homicídio(45).

Destarte, a legislação aplicável aos conflitos cibernéticos será a já vigente, com algumas adequações na esfera infraconstitucional. Como norma-base, teremos a Constituição Federal, servindo as demais leis para a proteção dos bens jurídicos atingidos por meio do computador, sendo plenamente aplicáveis o Código Civil, o Código de Defesa do Consumidor, a Lei dos Direitos Autorais, a Lei do Software e o próprio Código Penal, sem olvidar a Lei do Habeas Data.

Os bens jurídicos ameaçados ou lesados por crimes informáticos merecerão proteção por meio de tutela reparatória e de tutela inibitória. Quando isso seja insuficiente, deve incidir a tutela penal, fundada em leis vigentes e em tratados internacionais, sempre tendo em mira o princípio da inafastabilidade da jurisdição, previsto no art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal.

A atuação do Direito Penal será imprescindível em alguns casos, por conta da natureza dos bens jurídicos em jogo. Pois, pela web e no ciberespaço circulam valores, informações sensíveis, dados confidenciais, elementos que são objeto de delitos ou que propiciam a prática de crimes de variadas espécies. Nas vias telemáticas, transitam nomes próprios, endereços e números de telefone, números de cartões de crédito, números de cédulas de identidade, informações bancárias, placas de veículos, fotografias, arquivos de voz, preferências sexuais e gostos pessoais, opiniões e idéias sensíveis, dados escolares, registros médicos e informes policiais, dados sobre o local de trabalho, os nomes dos amigos e familiares, o número do IP — Internet Protocol(46), o nome do provedor de acesso, a versão do navegador de Internet (browser), o tipo e versão do sistema operacional instalado no computador.

A interceptação de tais informações e dados ou a sua devassa não autorizada devem ser, de algum modo, tipificadas, a fim de proteger esses bens que são relevantes à segurança das relações cibernéticas e à realização da personalidade humana no espaço eletrônico.

Como escreveu FERNANDO PESSOA, navegar é preciso. E no mar digital, tanto quanto nos oceanos desbravados pelas naus portuguesas, há muitas "feras" a ameaçar os internautas incautos, a exemplo do Estado e de suas agências (vorazes e ameaçadores como tubarões); dos ciberdelinqüentes (elétricos e rápidos como enguias); de algumas empresas (sedutoras e enganosas como sereias); dos bancos de dados centralizados (pegajosos e envolventes como polvos); e de certos provedores (oportunistas comensais como as rêmoras).

LAWRENCE LESSIG, o maior especialista norte-americano em Direito da Internet, adverte que a própria arquitetura dos programas de computador que permitem o funcionamento da Internet como ela é pode se prestar à regulação da vida dos cidadãos online tanto quanto qualquer norma jurídica(47).

Uma nova sociedade, a sociedade do ciberespaço(48) surgiu nos anos noventa, tornando-se o novo foco de utopias. "Here freedom from the state would reign. If not in Moscow or Tblisi, then here in cyberspace would we find the ideal libertarian society".

Para LESSIG, "As in post-Communist Europe, first thoughts about cyberspace tied freedom to the disappearance of the state. But here the bond was even stronger than in post-Communist Europe. The claim now was that government ´could not´ regulate cyberspace, that cyberspace was essencially, and unavoidably, free. Governments could threaten, but behavior could not be controlled; laws could be passed, but they would be meaningless. There was no choice about which government to install — none could reign. Cyberspace would be a society of a very different sort. There would be a definition and direction, but built from the bottom up, and never through the direction of a state. The society of this space would be a fully self-ordering entity, cleansed of governors and free from political hacks".(49)

A idéia anárquica de Internet tem nítida relação — que ora apontamos — com o movimento abolicionista, do qual HULSMAN(50), é um dos maiores defensores. No entanto, segundo LESSIG, a etimologia da palavra "ciberespaço" remete à cibernética, que é a ciência do controle à distância. "Thus, it was doubly odd to see this celebration of non-control over architectures born from the very ideal of control"(51).

Posicionando-se, LESSIG pontua que não há liberdade absoluta na Internet e que não se pode falar no afastamento total do Estado. O ideal seria haver uma "constituição" para a Internet, não no sentido de documento jurídico escrito — como entenderia um publicista —, mas com o significado de "arquitetura" ou "moldura", que estruture, comporte, coordene e harmonize os poderes jurídicos e sociais, a fim de proteger os valores fundamentais da sociedade e da cibercultura.

Essa moldura deve ser um produto consciente e fruto do esforço de cientistas, usuários, empresas e Estado, pois o "cyberspace, left to itself, will no fulfill the promise of freedom. Left to itself, cyberspace will become a perfect tool of control. Control. Not necessarily control by government, and not necessarrily control to some evil, fascist end. But the argument of this book is that the invisible hand of cyberspace is building an architecture that is quite the opposite of what it was at cyberspace´s birth. The invisible hand, through commerce, is constructing an architecture that perfects control — an architecture that makes possible highly efficient regulation"(52).

Mais adiante, LESSIG arrola suas perplexidades diante das implicações do ciberespaço sobre o Direito, declarando que "Behavior was once governed ordinarily within one jurisdiction, or within two coordinating jurisdictions. Now it will sistematically be governed within multiple, non-coordinating jurisdictions. How can law handle this?(53). Ou seja, como será possível enfrentar o problema do conflito real de diferentes ordens jurídicas nacionais, em decorrência de fatos ocorridos no ciberespaço ou na Internet?

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Contudo, JACK GOLDSMITH, citado por LESSIG, opina que "there is nothing new here. For many years the law has worked through these conflicts of authority. Cyberspace may increase the incidence of these conflicts, but it does not change their nature", posição que parece lançar um pouco de luz sobre o tema.

Ainda segundo LESSIG, a mudança das concepções a respeito dos hackers, dá idéia de como o Direito tem lidado com conflitos entre as normas do ciberespaço e as da comunidade do "espaço real". "Originally, hackers were relatively harmless cyber-snoops whose behavior was governed by the norms of the hacker community. A hacker was not to steal; he was not to do damage; he was to explore, and if he found a hole in a system´s security, he was to leave a card indicating the problem".

Isto porque, no início, a Internet era um mundo de softwares e sistemas abertos(54), no qual valiosos arquivos e informações financeiras não eram acessíveis online. "Separate networks for defense and finance were not part of the Internet proper".

Todavia, com o avanço do cibercomércio, as coisas mudaram, e foi necessário estabelecer novas regras de segurança na rede, fazendo surgir um evidente conflito entre a cibercultura hacker e os interesses financeiros e econômicos das empresas e as preocupações estratégicas e de segurança do governo. "As these cultures came into conflict, real-space law quickly took sides. Law worked ruthlessly to kill a certain kind of online community. The law made the hackers´ behavior a ´crime´, and the government took aggressive steps to combat it. A few prominent and well-publicized cases were used to redefine the hackers´ ´harmless behavior´ into what the law could call ´criminal´. The law thus erased any ambiguity about the ´good´ in hacking"(55).

Exemplo disso foi o que se deu com ROBERT TAPPIN MORRIS, da Universidade de Cornell, que foi condenado a três anos de detenção, com direito a sursis (probation), pela Justiça Federal norte-americana, por violar o Computer Fraud and Abuse Act de 1986. Essa lei tipifica o crime de acesso doloso a "computadores de interesse federal" sem autorização, quando esse acesso cause dano ou impeça o acesso de usuários autorizados. MORRIS programou um worm(56) para mostrar as falhas do programa de email Sendmail, acabando por contaminar computadores federais, "congelando-os" ou deixando-os off-line.

Por conseguinte, embora repudiando o exagero de certas tipificações, não há como negar a interação entre a Internet e o Direito Penal. Isto porque o ciberespaço e sua cultura própria não estão fora do mundo. E, estando neste mundo, invariavelmente acabarão por sujeitar-se ao Direito, para a regulação dos abusos que possam ser cometidos pelo Estado contra a comunidade cibernética e para a prevenção de ações ilíctas e ilegítimas de membros da sociedade informatizada contra bens jurídicos valiosos para toda pessoa ou organização humana.


5. O problema da tipicidade

Sendo o Brasil um Estado democrático de Direito (art. 1º da Constituição Federal), necessariamente aplicam-se em seu território os princípios da legalidade e da anterioridade da lei penal.

Com efeito, o art. 5º, inciso XXXIX, da Lex Legum, estabelece, entre as liberdades públicas, a garantia de que "não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal". O art. 1º do Código Penal, por sua vez, estatui que "Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal".

Tais dispositivos traduzem, no direito positivo, os velhos princípios gerais do nullum crimen sine lege e nulla poena sine lege, dogmas que passaram a ser inafastáveis também nos países que adotam o sistema Common Law, pelo menos na Europa, tendo em conta que o art. 7º da Convenção Européia para os Direitos Humanos, de 1998, dispõe que "No one shall be held guilty of any offence on account of any act or omission which did not constitute a criminal offence under national ou international law at the time when it was committed". Daí a opção do Parlamento inglês pela edição do CMA — Computer Misuse Act, ao invés de continuar adotando o sistema de precedentes (case law).

A tipicidade é uma conseqüência direta do princípio da legalidade. Um fato somente será típico se a lei descrever, previamente e pormenorizadamente, todos os elementos da conduta humana tida como ilícita. Só assim será legítimo o atuar da Polícia Judiciária, do Ministério Público e da Justiça Penal.

MUÑOZ CONDE diz que "A tipicidade é a adequação de um fato cometido à descrição que desse fato tenha feito a lei penal. Por imperativo do princípio da legalidade, em sua vertente do nullum crimen sine lege, somente os fatos tipificados na lei penal como delitos podem ser considerados como tais"(57).

Por sua vez, Hans-Heinrich JESCHECK, assevera que "O conteúdo do injusto de toda classe de delito toma corpo no tipo, para que um fato seja antijurídico penalmente há de corresponder aos elementos de um tipo legal. Esta correspondência se chama tipicidade (TatbestandsmässigKeit)"(58).

Entre os penalistas brasileiros, Fernando de Almeida PEDROSO esclarece que "Não basta, conseqüentemente, que o fato concreto, na sua aparência, denote estar definido na lei penal como crime. Há mister corresponda à definição legal. Nessa conjectura, imprescindível é que sejam postas em confronto e cotejo as características abstratas enunciativas do crime com as características ocorrentes no plano concreto, comparando-se uma a uma. Se o episódio a todas contiver, reproduzindo com exatidão e fidelidade a sua imagem abstrata, alcançará a adequação típica. Isso porque ocorrerá a subsunção do fato ao tipo, ou seja, o seu encarte ou enquadramento à definição legal. Por via de conseqüência, realizada estará a tipicidade, primeiro elemento da composição jurídica do crime"(59).

A par dessa apreciação dogmática, é preciso ver que para que se admita um novo tipo penal no ordenamento brasileiro, é imprescindível que se atendam outras regras constitucionais, no sentido da elaboração legislativa. In casu, a competência é duplamente federal, porque, conforme o art. 22, inciso I, da Constituição, compete privativamente à União legislar sobre direito penal e, segundo o inciso IV, do mesmo artigo, a União também detém a competência para legislar sobre informática.

A colocação do problema nesses termos, a partir dos dispositivos constitucionais, tem relevância porque, em tratando de Internet, nos defrontamos com velhos delitos, executados por diferente modo (muda o modus operandi), ao mesmo tempo que estamos diante de uma nova criminalidade, atingindo novos valores sociais.

Quantos aos velhos delitos, já tipificados no Código Penal e na legislação extravagante, não há dificuldades para operar o sistema penal. As fórmulas e diretrizes do processo penal têm serventia, bastando, quanto a eles, adequar e modernizar as formas de persecução penal pelos órgãos oficiais, principalmente no tocante à investigação criminal pela Polícia Judiciária, uma vez que os ciberdelinqüentes têm grande aptidão técnica.

Como exemplo, pode-se afirmar que o crime de homicídio praticado por meio do computador (delito informático impróprio) deverá ser punido nos mesmos moldes do art. 121 do Código Penal. A proposição é de DAMÁSIO e, embora de difícil consumação, não é hipótese de todo inverossímil. Trata-se de caso em que um habilidoso cracker invade a rede de computadores de um hospital altamente informatizado, mudando as prescrições médicas relativas a um determinado paciente, substituindo drogas curativas por substâncias perniciosas ou alterando as dosagens, com o fim deliberado de produzir efeito letal. Ao acessar o terminal de computadores, um enfermeiro não percebe a alteração indevida e, inadvertidamente, administra o medicamento em via intravenosa, provocando a morte do paciente. Incidirá, nesta hipótese, o Código Penal e o processo será de competência do tribunal do júri da comarca onde se situar o hospital, aplicando-se nesse aspecto a teoria da atividade.

De igual modo, aplicar-se-á o tipo do art. 155, §4º, inciso II, do Código Penal (furto qualificado pela destreza) ao internauta que, violando o sistema de senhas e de segurança digital de um banco comercial, conseguir penetrar na rede de computadores da instituição financeira, dali desviando para a sua conta uma determinada quantia em dinheiro. Competente será o juízo criminal singular da circunscrição judiciária onde estiver sediado o banco.

Com isso, afiança-se que, ao punir os infratores eletrônicos com base nos tipos já definidos em lei, o Poder Judiciário não estará violando o princípio da legalidade nem o da anterioridade da lei penal.

Todavia, o Direito brasileiro não oferece solução para condutas lesivas ou potencialmente lesivas que possam ser praticadas pela Internet e que não encontrem adequação típica no rol de delitos existentes no Código Penal e nas leis especiais brasileiras ou nos tratados internacionais, em matéria penal, do qual o Estado brasileiro seja parte.

É clássica, nesse sentido, a referência à conduta do agente que, valendo-se de um microcomputador, obtém acesso à máquina da vítima e ali introduz, por transferência de arquivos, um vírus de computador, que acaba por provocar travamento dos programas instalados no aparelho atingido.

Sabe-se que o crime de dano, previsto no art. 163 do Código Penal, consuma-se quando se dá a destruição, deterioração ou inutilização de coisa alheia. Pergunta-se: um programa de computador, um software, é coisa?

Ou, por outra, figure-se o seguinte exemplo: um indivíduo invade um sistema e cópia um programa de computador. O software tem valor econômico. Mas poderá ser considerado res furtiva —para enquadrar-se como objeto de crime patrimonial —, já que a simples cópia do programa não retira a coisa da esfera de disponibilidade da vítima?

Em qualquer dos casos, para a adequação típica será necessário, certamente, um esforço interpretativo e poder-se-á objetar com o argumento de que não se admite analogia em Direito Penal, levando à conclusão de que esses fatos seriam atípicos.

Esse é apenas um singelo exemplo das dificuldades exegéticas e dos problemas conseqüentes no tocante à impunidade e à insegurança jurídica que a falta de uma lei de crimes de informática acarreta para a coletividade e para o cidadão, respectivamente.

ANTÔNIO CELSO GALDINO FRAGA é de opinião que nos Estados que adotam o sistema Civil Law e que ainda não editaram leis específicas sobre criminalidade informática, tais condutas são atípicas(60). A Inglaterra já o fez, por meio do citado CMA — Computer Misuse Act, de 1990, tipificando, entre outros, o crime de "modificação não autorizada de dado informático", preferindo o verbo "modificar" ao verbo "danificar", tendo em conta a intangibilidade dos programas de computador(61).

Alguns tipos penais, que descrevem crimes de informática, contudo, já existem. Podemos citar:

a) o art. 10 da Lei Federal n. 9.296/96, que considera crime, punível com reclusão de 2 a 4 anos e multa, "realizar interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática, ou quebrar segredo de Justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei"(62);

b) o art. 153, §1º-A, do Código Penal, com a redação dada pela Lei Federal n. 9.983/2000, que tipifica o crime de divulgação de segredo: "Divulgar, sem justa causa, informações sigilosas ou reservadas, assim definidas em lei, contidas ou não nos sistemas de informações ou banco de dados da Administração Pública", punindo-o com detenção de 1 a 4 anos, e multa;

c) o art. 313-A, do Código Penal, introduzido pela Lei n. 9.983/2000, que tipificou o crime de inserção de dados falsos em sistema de informações, com a seguinte redação: "Inserir ou facilitar, o funcionário autorizado, a inserção de dados falsos, alterar ou excluir indevidamente dados corretos nos sistemas informatizados ou bancos de dados da Administração Pública com o fim de obter vantagem indevida para si ou para outrem ou para causar dano", punindo-o com pena de reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa;

d) o art. 313-B, do Código Penal, introduzido pela Lei n. 9.983/2000, que tipificou o crime de modificação ou alteração não autorizada de sistema de informações, com a seguinte redação: "Modificar ou alterar, o funcionário, sistema de informações ou programa de informática sem autorização ou solicitação de autoridade competente", cominando-lhe pena de detenção, de 3 (três) meses a 2 (dois) anos, e multa;

e) o art. 325, §1º, incisos I e II, introduzidos pela Lei n. 9.983/2000, tipificando novas formas de violação de sigilo funcional, nas condutas de quem "I – permite ou facilita, mediante atribuição, fornecimento e empréstimo de senha ou qualquer outra forma, o acesso de pessoas não autorizadas a sistemas de informações ou banco de dados da Administração Pública" e de quem "II – se utiliza, indevidamente, do acesso restrito", ambos sancionados com penas de detenção de 6 meses a 2 anos, ou multa;

f) o art. 12, caput, §§1º e 2º, da Lei Federal n. 9.609/98, que tipifica o crime de violação de direitos de autor de programa de computador, punindo-o com detenção de 6 meses a 2 anos, ou multa; ou com pena de reclusão de 1 a 4 anos e multa, se o agente visa ao lucro;

g) o art. 2º, inciso V, da Lei Federal n. 8.137/90, que considera crime "utilizar ou divulgar programa de processamento de dados que permita ao sujeito passivo da obrigação tributária possuir informação contábil diversa daquela que é, por lei, fornecida à Fazenda Pública"; e

h) o art. 72 da Lei n. 9.504/97, que cuida de três tipos penais eletrônicos de natureza eleitoral.

Art. 72. Constituem crimes, puníveis com reclusão, de cinco a dez anos:

I - obter acesso a sistema de tratamento automático de dados usado pelo serviço eleitoral, a fim de alterar a apuração ou a contagem de votos;

II - desenvolver ou introduzir comando, instrução, ou programa de computador capaz de destruir, apagar, eliminar, alterar, gravar ou transmitir dado, instrução ou programa ou provocar qualquer outro resultado diverso do esperado em sistema de tratamento automático de dados usados pelo serviço eleitoral;

III - causar, propositadamente, dano físico ao equipamento usado na votação ou na totalização de votos ou a suas partes.

Tais tipificações esparsas(63) não resolvem o problema da criminalidade na Internet, do ponto de vista do direito objetivo, mas revelam a preocupação do legislador infraconstitucional de proteger os bens informáticos e de assegurar, na esfera penal, a proteção a dados de interesse da Administração Pública e do Estado democrático, bem como à privacidade "telemática" do indivíduo.

Para IVETTE SENIE FERREIRA essas leis "longe de esgotarem o assunto, deixaram mais patente a necessidade do aperfeiçoamento de uma legislação relativa à informática para a prevenção e repressão de atos ilícitos específicos, não previstos ou não cabíveis nos limites da tipificação penal de uma legislação que já conta com mais de meio século de existência"(64).

ALEXANDRE DAOUN e RENATO OPICE BLUM, por sua vez, alertam para os riscos da inflação legislativa no Direito Penal da Informática(65), posicionando-se — embora sem dizê-lo —, entre os que defendem a intervenção mínima.

Entretanto, a idéia de fragmentaridade inerente do Direito Penal, adequando-se à diretriz que determina a consideração da lesividade da conduta e à noção da intervenção mínima, impõe que outros bens jurídicos, além dos listados, sejam pinçados e postos sob a tutela penal. Por isso mesmo, está em tramitação no Congresso Nacional o PLC — Projeto de Lei da Câmara dos Deputados n. 84/99, de autoria do deputado LUIZ PIAUHYLINO (PSDB-PE).

Em suas disposições gerais, o projeto de lei sobre crimes informáticos busca inicialmente conferir proteção à coleta, ao processamento e à distribuição comercial de dados informatizados, exigindo autorização prévia do titular para a sua manipulação ou comercialização pelo detentor.

No projeto, são estabelecidos claramente os direitos de conhecimento da informação e de retificação dessa informação, o direito de explicação quanto ao seu conteúdo ou natureza, bem como o de busca de informação privada, instituindo-se a proibição de distribuição ou difusão de informação sensível e impondo-se a necessidade de autorização judicial para acesso de terceiros a tais dados.

No tocante ao rol de novos tipos penais, o PLC 84/99 procura inserir no ordenamento brasileiro os crimes de dano a dado ou programa de computador; acesso indevido ou não autorizado; alteração de senha ou acesso a computador, programa ou dados; violação de segredo industrial, comercial ou pessoal em computador; criação ou inserção de vírus de computador; oferta de pornografia em rede sem aviso de conteúdo; e publicação de pedofilia, cominando-se penas privativas de liberdade que variam entre um e quatros anos.

Há todavia tipos com sanções menos graves, como o crime de que se cuida no art. 11 do PLC 84/99, de obtenção indevida ou não autorizada de dado ou instrução de computador, com pena de três meses a um ano de detenção e, portanto, sujeito, em tese, à competência do Juizado Especial Criminal.

Se tais delitos forem praticados prevalecendo-se o agente de atividade profissional ou funcional, este ficará sujeito a causa de aumento de pena de um sexto até a metade.

Tramita também na Câmara, o PLC 1.806/99, do deputado FREIRE JÚNIOR (PMDB-TO), que altera o art. 155 do Código Penal para considerar crime de furto o acesso indevido aos serviços de comunicação e o acesso aos sistemas de armazenamento, manipulação ou transferência de dados eletrônicos.

Por sua vez, o PLC 2.557/2000, do deputado ALBERTO FRAGA (PMDB-DF), acrescenta o artigo 325-A ao Decreto-lei n. 1.001/69, Código Penal Militar, prevendo o crime de violação de banco de dados eletrônico, para incriminar a invasão de redes de comunicação eletrônica, de interesse militar, em especial a Internet, por parte de "hacker".

Já o PLC n. 2.558/2000, de autoria do deputado ALBERTO FRAGA (PMDB-DF), pretende acrescentar o artigo 151-A ao Código Penal, tipificando o crime de violação de banco de dados eletrônico.

Além desses projetos de lei de natureza penal, é de se registrar o PLC n. 1.589/99, que versa sobre o spam, proibindo tal prática, sem criminalizá-la, e também o PLC n. 4.833/98 que considera crime de discriminação "Tornar disponível na rede Internet, ou em qualquer rede de computadores destinada ao acesso público, informações ou mensagens que induzam ou incitem a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional", prevendo pena de reclusão de um a três anos e multa para o infrator, e permitindo ao juiz "determinar, ouvido o Ministério Público ou a pedido deste, a interdição das respectivas mensagens ou páginas de informação em rede de computador".

O PLC n. 4.833/98 é de autoria do deputado PAULO PAIM (PT-RS) e sua ementa "define o crime de veiculação de informações que induzam ou incitem a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, na rede Internet, ou em outras redes destinadas ao acesso público".

Também merece ser assinalado o projeto de lei da Câmara, de autoria do deputado VICENTE CAROPRESO (PSDB-SC), que permite a transmissão de dados pela Internet para a prática de atos processuais em jurisdição brasileira; e a Lei n. 9.800/99, já em vigor que permite a prática de certos atos processuais por fax. Aliás, o PLC n. 3.655/2000, do deputado CAROPRESO visa justamente a alterar os arts. 1º e 4º da Lei n. 9.800/99, "autorizando as partes a utilizarem sistema de transmissão de dados e imagens, inclusive fac-simile ou outro similar, incluindo a Internet, para a prática de atos processuais que dependam de petição escrita".

Ainda nesse âmbito processual, mas com evidente interesse do Direito Penal, tem curso o PLC n. 2.504/200, de iniciativa do deputado NELSON PROENÇA (PMDB-RS), que dispõe sobre o interrogatório do acusado à distância, com a utilização de meios eletrônicos, o chamado interrogatório online, que tem enfrentado a oposição de juristas de renome, ao argumento de que representa cerceamento do direito à ampla defesa do acusado.

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Sobre o autor
Vladimir Aras

Professor Assistente de Processo Penal da UFBA. Mestre em Direito Público (UFPE). Professor da Escola Superior do Ministério Público da União (ESMPU). Procurador da República na Bahia (MPF). Membro Fundador do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAS, Vladimir. Crimes de informática.: Uma nova criminalidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 51, 1 out. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2250. Acesso em: 1 mai. 2024.

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