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A linha tênue que distingue o dolo eventual da culpa consciente nos homicídios de trânsito

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14/10/2012 às 14:10

Resumo:


  • O número de acidentes fatais no trânsito brasileiro tem crescido, e muitos desses casos envolvem condutores embriagados, em alta velocidade ou participando de rachas, o que gera debates sobre a aplicação do dolo eventual.

  • A distinção entre dolo eventual e culpa consciente é sutil, mas crucial, pois o dolo eventual pressupõe que o agente, apesar de não desejar o resultado lesivo, assume o risco de sua ocorrência, enquanto na culpa consciente, o agente prevê o resultado, mas acredita sinceramente que ele não ocorrerá.

  • O entendimento jurisprudencial e doutrinário varia, mas tende a reconhecer o dolo eventual em casos de embriaguez ao volante combinada com outros fatores agravantes, como excesso de velocidade ou participação em rachas, devido à indiferença demonstrada pela segurança e vida alheias.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

3 DOLO EVENTUAL X CULPA CONSCIENTE

3.1 LIMITES FRONTEIRIÇOS

Como já visto nos capítulos anteriores, as diferenças entre dolo direto e culpa inconsciente (culpa propriamente dita) são bastante latentes e de entendimento não conturbado na doutrina e jurisprudência. Em sentido contrário, as ramificações desses elementos, mais precisamente no que se refere às espécies dolo eventual e culpa consciente, se estreitam de tal forma que a linha diferenciadora entre os dois torna-se bastante tênue e cinzenta, gerando, por conseguinte, uma turbulenta discussão jurisprudencial e doutrinária quanto à incidência do dolo eventual nos casos concretos, principalmente no tocante aos crimes contra a vida praticados à direção de veículos automotores.

Não é à toa que Bitencourt (2007, p. 288) afirma que “os limites fronteiriços entre o dolo eventual e a culpa consciente constituem um dos problemas mais tormentosos da Teoria do Delito.”. Seguindo tal entendimento, que é unanimidade na doutrina, Juarez Cirino dos Santos (2008, p. 141) corrobora que “a definição do dolo eventual e sua distinção da imprudência consciente, como conceitos simultaneamente excludentes e complementares, é uma das mais controvertidas e difíceis questões de direito penal [...].”.

Em verdade, o dolo eventual posiciona-se no extremo mais brando do dolo, enquanto a culpa consciente (ou culpa com previsão) situa-se no mais grave extremo da culpa. Esta encontra sua principal semelhança com aquele, justamente, na previsão do resultado.

A culpa consciente possui uma previsão genérica positiva colocada ao lado de uma previsão concreta negativa (Costa Jr., 2009, p.101), ou seja: existe a previsão do evento lesivo (previsão genérica positiva), todavia o agente acredita, sinceramente, que tal evento não ocorrerá ou que poderá evitá-lo (previsão concreta negativa).

Por outro lado, nos dizeres de Costa Jr. (2009, p. 101), o dolo eventual possui “uma previsão genérica positiva seguida de outra, de caráter parcialmente positivo: é possível que o evento se verifique. Inobstante tal previsão, o agente não se detém. Continua a agir, custe o que custar (coûte que coûte).”.

Para a maioria da doutrina penal, o dolo eventual deve apresentar dois componentes: a previsão do resultado e a anuência à sua ocorrência (Bitencourt, 2008, p. 288). Se o agente não prestar anuência ao resultado previsto, acreditando que o mesmo não vá ocorrer, restará, em tese, configurada hipótese de culpa consciente. De outro giro, “se o sujeito assume o risco de produzir o resultado, isto é admite e aceita o risco de produzi-lo” (DAMÁSIO, 2009, p. 286), ter-se-á, em tese, dolo eventual.

Luiz Flávio Gomes (2007, v. II, p. 379), por seu turno, acredita que o dolo eventual deve apresentar, na verdade, três componentes: o agente representa o resultado como possível (previsão do resultado), assume o risco de produzi-lo (anuência à sua ocorrência) e ainda atua com total indiferença frente ao bem jurídico. No que tange à culpa consciente, o mencionado autor afirma que esta possui dois requisitos: “o agente representa o resultado como possível, mas confia que não vai acontecer (confia em sua habilidade para evitá-lo). Não o aceita. Não atua com indiferença frente ao bem jurídico.” (GOMES, 2007, v. II, p. 379).

Nesta esteira, verifica-se que a previsão do resultado é ponto comum entre as espécies em tela, ao passo que sua diferença reside na aceitação deste resultado.

Assim, para entender tais institutos, necessário se faz compreender, por primeiro, que na culpa consciente, o agente, diante da representação de um resultado lesivo (ponto comum), acredita, sinceramente, que este não irá sobrevir (ponto diferenciador), tendo em conta seu conhecimento ou habilidade, sendo que “se estivesse convencido de que o resultado poderia ocorrer, sem dúvida, desistiria da ação.” (BITENCOURT, 2007, p. 288). Já no dolo eventual, diante da previsão do resultado lesivo (ponto comum), o agente atua com indiferença (ponto diferenciador), aceitando-o, ou seja: “se morrer morreu”, “que se dane”, “não me importo”, “aconteça o que acontecer, continuarei agindo”.

Elucidando o requisito “aceitação do resultado” mediante a assunção do risco, Luiz Regis Prado (2007, p. 381) ensina que,

Só há assunção do risco, quando o agente tenha tomado como séria a possibilidade de lesar ou colocar em perigo o bem jurídico e não se importa com isso, demonstrando, pois, que o resultado lhe era indiferente. Assim, não poderão servir de ponto de apoio a essa indiferença e, pois, ao dolo eventual, a simples dúvida, ou a simples possibilidade, ou a simples decisão acerca da ação.

Importante pontuar que não se pode confundir a previsibilidade (consciência do risco) com a aceitação do resultado. O cuidado objetivo constitui um elemento do tipo culposo e, justamente por isso, quando o resultado, embora previsto, carecer de aceitação, não há de se falar em dolo, pois, para que este se aperfeiçoe, o agente deve consentir – na modalidade indiferença/aceitação –, com o resultado.

Esclarecendo as principais diferenças entre o dolo eventual e a culpa consciente em sede doutrinária, Juarez Cirino dos Santos (2008, p. 143) explana que,

A literatura contemporânea trabalha, no setor dos efeitos secundários (colaterais ou paralelos) típicos representados como possíveis, com os seguintes conceitos-pares para definir dolo eventual e imprudência consciente: a) o dolo eventual se caracteriza, no nível intelectual, por levar a sério a possível produção do resultado típico  e, no nível da atitude emocional, por conformar-se com a eventual produção desse resultado – às vezes, com variação para as situações respectivas de contar com o resultado típico possível, cuja eventual produção o autor aceita. b) a imprudência consciente se caracteriza, no nível intelectual, pela representação da possível produção do resultado típico e, no nível da atitude emocional, pela leviana confiança na ausência ou evitação desse resultado, por força da habilidade, atenção, cuidado etc. na realização concreta da ação.

De igual forma, Cleber Masson ratifica (2010, p. 268):

Na culpa consciente, o sujeito não quer o resultado, nem assume o risco de produzi-lo. Apesar de sabê-lo possível, acredita sinceramente ser capaz de evitá-lo, o que apenas não acontece por erro de cálculo ou por erro na execução. No dolo eventual o agente não somente prevê o resultado naturalístico, como também, apesar de tudo, o aceita como uma das alternativas possíveis.

Insta destacar, também, um dos pontos diferenciadores entre dolo eventual e culpa consciente mais citados pela doutrina penal, que toma forma por meio da utilização da renomada Teoria Positiva do Conhecimento, criada pelo alemão Reinhart Frank. Segundo tal teoria, para que seja verificado o dolo eventual, o agente deve dizer a si próprio “seja como for, dê no que der, em qualquer caso, não deixo de agir.” (HUNGRIA apud BITENCOURT, 2007, p. 272) e ainda “seja assim ou de outra maneira, suceda isto ou aquilo, em qualquer caso agirei.” (MASSON, 2010, p, 251).

À luz da doutrina parece-nos pacífico o conceito diferenciador de dolo eventual e culpa consciente, todavia, quando adentra-se ao campo prático, inicia-se a turbulência. É o que demonstra o seguinte exemplo trazido por Masson (2010, p. 268):

“A” sai atrasado de casa em uma motocicleta, e se dirige para uma entrevista que provavelmente lhe garantirá um emprego. No caminho, fica parado em um congestionamento. Ao perceber que a hora combinada se aproxima, e se continuar ali inerte não chegará em tempo, decide trafegar um quarteirão pela calçada, com o propósito de, em seguida, rumar por uma via alternativa descongestionada. Na calçada, depara-se com inúmeros pedestres, mas mesmo assim insiste na sua escolha.

Certamente lhe é previsível que, assim agindo, pode atropelar pessoas, e, conseqüentemente, feri-las e inclusive matá-las. Mas vai em frente e acaba por colidir com uma senhora de idade, matando-a.

Do exemplo acima fornecido, pode-se chegar a duas conclusões: a) se o agente, após representar como possível o resultado “morte ou lesão de um transeunte”, acreditar, sinceramente (luxúria), que este não irá ocorrer, pois fará de tudo para evitá-lo, o caso concreto amolda-se, em tese, à figura da culpa consciente. b) todavia se o agente, após representar como possível o resultado “morte ou lesão de um transeunte”, agir com indiferença frente a possibilidade de que este sobrevenha, assumindo o risco de sua produção (se ocorrer, que se dane), estar-se-á frente a um caso de dolo eventual.

Daí demonstra-se a tênue linha que paira entre as duas espécies de dolo e culpa. Como identificá-las nos casos práticos? Como saber se o agente acreditou, sinceramente, que o resultado não sobreviria ou agiu com indiferença frente ao perigo previsto, aceitando-o? Como empregar a fórmula de Frank para confirmar se o agente, intrinsecamente, mentalizou as expressões “que se dane”, “se ocorrer, ocorreu”, “aconteça o que acontecer, continuarei”?

Justamente por isso “alguns doutrinadores criticam o dolo eventual, dizendo ser inócuo, pois sua prova residiria exclusivamente na mente do autor.” (MASSON, 2010, p. 252). Cediço é a impossibilidade de adentrar a mente do agente e arrancar-lhe pensamentos que comprovem que este mentalizou as expressões mencionadas alhures. Logo, na prática,

Não se exige consentimento explícito, formal, sacramental, concreto e atual [...]. O consentimento que o tipo requer não é o manifestado formalmente, o imaginado explicitamente, o “mediato”, “pensado cuidadosamente”. Não se exige fórmula psíquica ostensiva, como se o sujeito pensasse “consinto”, “conformo-me com a produção do resultado”. Nenhuma justiça conseguiria condenar alguém por dolo eventual se exigisse confissão cabal de que o sujeito psíquica e claramente consentiu na produção do evento; que, em determinado momento anterior à ação, deteve-se para meditar cuidadosamente sobre suas opções de comportamento, aderindo ao resultado. Jamais foi visto no banco dos réus alguém que confessasse ao juiz: “no momento da conduta eu pensei que a vítima poderia morrer, mas, mesmo assim, continuei a agir”. A consciência profana da ilicitude, na teoria finalista da ação, não faz parte do dolo, que é natural (JESUS, 2009, p. 287/288).

Portanto, para que o juiz, bem como o conselho de sentença, verifique a incidência de dolo eventual, necessário se faz que socorram-se das circunstâncias fático probatórias, ignorando a possibilidade de adentrar o consciente do agente e extrair-lhe pensamentos capazes de sanar a eterna dúvida entre o dolo eventual da culpa com previsão.  Neste ponto, imperioso destacar, novamente, os chamados “indicadores objetivos” do dolo eventual, apresentados por Damásio de Jesus (2009, p. 288):

1º.) risco de perigo para o bem jurídico implícito na conduta (ex: a vida); 2º.) poder de evitação de eventual resultado pela abstenção da ação; 3º.) meios de execução empregados; e 4º.) desconsideração, falta de respeito ou indiferença para com o bem jurídico.

  De igual forma se posiciona Cleber Masson (2010, p. 252), afirmando que,

[...] o dolo eventual, assim como o dolo direto, não tem a sua comprovação limitada ao psiquismo interno do agente. Extrai-se, ao contrário, das circunstâncias do caso concreto, tais como os meios empregados, a apreciação da situação precedente, o comportamento do agente posteriormente ao crime e sua personalidade, entre tantos outros que somente a vida real pode esgotar.

Esta também é a atual posição dos tribunais pátrios:

Salientou-se que, no Direito Penal contemporâneo, além do dolo direto – em que o agente que o resultado como fim de sua ação e considera unido a esta última – há o dolo eventual, em que o sujeito não deseja diretamente a realização do tipo penal, mas a aceita como possível ou provável (CP, art. 18, I, in fine). Relativamente a este ponto, aduziu-se que, dentre as várias teorias que buscam justificar o dolo eventual, destaca-se a do assentimento ou da assunção, consoante a qual o dolo exige que o agente aquiesça em causar o resultado, além de reputá-lo como possível. Assim, esclareceu-se que, na espécie, a questão principal diz respeito à distinção entre dolo eventual e culpa consciente, ambas apresentando em comum a previsão do resultado ilícito. Observou-se que para a configuração do dolo eventual não é necessário o consentimento explícito do agente, nem sua consciência reflexiva em relação às circunstâncias do evento, sendo imprescindível, isso sim, que delas (circunstâncias) se extraia o dolo eventual e não da mente do autor (STF: HC 91.159/MG, rel. Min. Ellen Gracie, 2ª Turma, j. 02.09.2008, noticiado no informativo 518). (Grifos nossos)

E mais,

[...] O dolo eventual, na prática, não é extraído da mente do autor, mas, isto sim, das circunstâncias. Nele, não se exige que o resultado seja aceito como tal, o que seria adequado ao dolo direto, mas, isto sim, que a aceitação se mostre no plano do possível, do provável (STJ: REsp 247.263/MG, rel. Min. Felix Fischer, 5ª Turma, j. 05.04.2001).

E ainda,

[...] Para configuração do dolo eventual não é necessário o consentimento explícito do agente, nem sua consciência reflexiva em relação às circunstâncias do evento. Faz-se imprescindível que o dolo eventual se extraia das circunstâncias do evento, e não da mente do autor, eis que não se exige uma declaração expressa do agente (STF: 91159 MG, Relator: ELLEN GRACIE, Data de Julgamento: 02/09/2008, Segunda Turma, Data de Publicação: DJe-202 DIVULG 23-10-2008 PUBLIC 24-10-2008 EMENT VOL-02338-02 PP-00281).

3.2 HOMICÍDIOS DE TRÂNSITO

No Brasil, o trânsito possui um índice assustador de mais de 40 mil mortes por ano. Tal índice poderia ser bem maior em termos informativos, todavia só integram a contagem as vítimas fatais verificadas no momento dos acidentes, ou seja, as vítimas que vêm a óbito em hospitais não entram no computo estatístico.

Em termos comparativos, as estatísticas apontam que o Brasil ainda está muito aquém do índice almejado pela Organização Mundial de Saúde. “O trânsito brasileiro mata 2,5 vezes mais que nos Estados Unidos, e 3,7 mais que na União Européia (CONFEDERAÇÃO NACIONAL DOS MUNICÍPIOS, 2009, p. 04).

Inobstante o endurecimento da legislação em relação às normas de trânsito, principalmente no tocante ao advento do Código Brasileiro de Trânsito - Lei 9.503/97 -, o índice de mortalidade cresceu drasticamente nos últimos anos, encontrando tímido decréscimo no ano de 2009, em função do advento da Lei 11.705/2005 – a chamada Lei Seca, e voltando a subir em 2010.

O alto índice de acidentes de trânsito com vítimas fatais se deve, principalmente, aos condutores totalmente indiferentes para com a vida humana. Dentre as principais causas desses acidentes pode-se citar: embriaguez ao volante e excesso de velocidade.

Diante de tal cenário, que há muito fora considerado uma questão de saúde pública pela Organização Mundial de Saúde, surgem inúmeras discussões, dentre as quais destacamos o tema do presente estudo: a aplicação do dolo eventual nos homicídios de trânsito.

Decerto que o clamor social muito influencia e pressiona o Judiciário na tentativa de buscar soluções à altura para os casos concretos. Porém, é válido anotar que a visão dos leigos, na grande maioria das vezes, é atécnica. Daí a necessidade de sedimentar um entendimento justo e equitativo para definir os casos de dolo eventual e culpa consciente.

Apesar de serem separados por uma tênue linha no campo teórico, o dolo eventual e a culpa consciente possuem um enorme abismo em relação às penas que lhes são abstratamente cominadas.

Enquanto a reprimenda penal de um homicídio doloso praticado na direção de veículo automotor varia de 6 (seis) a 20 (vinte) anos em sua forma simples e de 12 a 30 anos em sua forma qualificada, a pena dos homicídios culposos praticados no trânsito varia de 2 (dois) a 4 (quatro anos), podendo ser aumentada pela metade nos casos previstos em Lei.

O artigo 302 do Código Brasileiro de Trânsito, chamado por muitos autores de homicídio culposo qualificado, estipula uma pena mais severa em relação aos homicídios culposos abarcados pelo Código Penal, gerando por parte da doutrina uma crítica “sobre a questão da proporcionalidade: qual a justificativa para que a morte derivada de culpa seja maior quando o instrumento é um veículo automotor do que quando se utiliza, por exemplo, uma arma de fogo?” (JUNQUEIRA, 2008, p. 371).

Inobstante a real desproporcionalidade entre as penas cominadas aos dois tipos de homicídios culposos, visível é a preocupação do legislador com o crescente índice de morte nas vias brasileiras, principalmente pelo fato de os condutores esquecerem que seus veículos são somente veículos, e não armas.

Para que se entenda os possíveis casos de dolo eventual e culpa consciente praticados na direção de veículos automotores, primeiramente se faz necessário conceituar veículo automotor, que para o Código de Trânsito Brasileiro (BRASIL, Lei 9.503/97, anexo I)  é

Todo veículo a motor de propulsão que circule por seus próprios meios e que serve normalmente para o transporte viário de pessoas ou coisas, ou para tração viária de veículos utilizados para o transporte de pessoas e coisas. O termo compreende os veículos conectados a uma linha elétrica que não circulam sobre trilhos.

Por sua vez, “estar na direção significa conduzir o veículo de maneira normal, ou seja, não está na direção de veículo automotor aquele que empurra seu carro.” (JUNQUEIRA, 2008, p. 372). Assim, quem estaciona seu carro em uma descida sem acionar o feio de mão e, por tal motivo, possibilita que o carro desça de forma desgovernada até atingir e ceifar a vida de outrem, responderá por homicídio culposo aos moldes do Código Penal.

Quanto ao conceito de trânsito, o Código de Trânsito também é preciso em seu artigo 1º: “Considera-se trânsito a utilização de vias por pessoas, veículos e animais, isolados ou em grupos, conduzidos ou não, para fins de circulação, parada, estacionamento e operação de carga ou descarga.”.

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Desta feita, superado os breves conceitos de veículo automotor e trânsito, cabe-nos comentar os principais casos de homicídios praticados no trânsito que geram discussão a respeito da incidência do dolo eventual e culpa consciente.

3.3 PRINCIPAIS CASOS DE HOMICÍDIOS DE TRÂNSITO E SUAS INTERPRETAÇÕES DOUTRINÁRIAS E JURISPRUDENCIAIS.

Como mencionado alhures, os tribunais brasileiros, tal como a doutrina, firmaram entendimento no sentido de que o dolo eventual não é extraído da mente do agente, mas sim das circunstâncias fáticas do crime. Assim sendo, necessário se faz analisar quais as circunstâncias fáticas idôneas à reconhecer o dolo eventual ou culpa consciente adotadas pela jurisprudência.

Almejando aproximar ao máximo o tema do presente estudo à realidade brasileira, discorremos abaixo sobre os principais casos de delitos de trânsito e suas interpretações doutrinárias e, principalmente, jurisprudenciais.

3.3.1 Embriaguez ao volante

Uma das principais causas de acidentes de trânsito no Brasil, a embriaguez ao volante é, talvez, o ponto de maior discussão doutrinária, jurisprudencial e social na atualidade.

Todavia, tal conduta, por si só, não tem o condão de transformar o crime de homicídio culposo em homicídio doloso. Resta sedimentado na doutrina e jurisprudência dos tribunais superiores que aquele que dirige alcoolizado, dando causa ao resultado morte, não incide, via de regra, no crime de homicídio doloso.

Diante da constante pressão social, foi criada uma perigosa fórmula matemática: “embriaguez + velocidade excessiva + direção de veiculo automotor + morte = dolo eventual”, que apesar de adotada por muitos tribunais Brasil afora, sofre grande crítica por parte da doutrina, como bem sustenta Rogério Greco (2008, p. 208): “Não se pode partir do princípio de que todos aqueles que dirigem embriagados e com velocidade excessiva não se importam em causar a morte de outras pessoas.”.

O mencionado autor justifica seu entendimento citando o seguinte exemplo:

Determinado sujeito, durante a comemoração de suas bodas de prata, bebe excessivamente e, com isso, se embriaga. Encerrada a festividade, o agente, juntamente com sua esposa e três filhos, resolve voltar rapidamente para sua residência, pois que queria assistir a uma partida de futebol que seria transmitida na televisão. Completamente embriagado, dirige em velocidade excessiva, a fim de chegar a tempo para assistir ao início do jogo. Em razão do seu estado de embriaguez, conjugado com a velocidade excessiva que imprimia ao seu veículo, colide o seu automóvel com outro, causando a morte de todo a família (GRECO, 2008, p. 209).

Greco defende que o agente, no exemplo acima, jamais consentiu com tal resultado, visto que se assim o fizesse, aceitaria sua própria morte e a dos demais membros de sua família.

Inobstante o posicionamento do ilustre doutrinador, pergunta-se: Se a jurisprudência brasileira, como já demonstrado nos itens anteriores, firmou entendimento que o dolo não é extraído da mente do agente e, muito menos, necessita de disposição expressa do mesmo no sentido de ter assumido o risco, sendo consubstanciado, em verdade, nas circunstâncias fáticas do evento, como se pode afirmar que o agente que conduz seu veículo em estado de embriaguez, imprimindo-lhe velocidade excessiva, não assente com a morte de outrem?

Diante de tal indagação, verifica-se o tamanho da dificuldade enfrentada quando da delimitação do dolo eventual e da culpa consciente nos crimes de trânsito.

Em um dos julgados mais recentes da história do Brasil a respeito de embriaguez ao volante, o Supremo Tribunal Federal (STF) manifestou-se de forma favorável à culpa consciente do acusado L.M.A, motorista que, ao dirigir em estado de embriaguez, envolveu-se em um acidente de trânsito, causando a morte de uma pessoa. De acordo com a maioria dos ministros, a embriaguez, por si só, não tem o condão de transformar a culpa consciente em dolo eventual. Vejamos:

Ementa: PENAL. HABEAS CORPUS. TRIBUNAL DO JÚRI. PRONÚNCIA POR HOMICÍDIO QUALIFICADO A TÍTULO DE DOLO EVENTUAL. DESCLASSIFICAÇÃO PARA HOMICÍDIO CULPOSO NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. EMBRIAGUEZ ALCOÓLICA. ACTIO LIBERA IN CAUSA. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DO ELEMENTO VOLITIVO. REVALORAÇÃO DOS FATOS QUE NÃO SE CONFUNDE COM REVOLVIMENTO DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO. ORDEM CONCEDIDA. 1. A classificação do delito como doloso, implicando pena sobremodo onerosa e influindo na liberdade de ir e vir, mercê de alterar o procedimento da persecução penal em lesão à cláusula do due process of law, é reformável pela via do habeas corpus. 2. O homicídio na forma culposa na direção de veículo automotor (art. 302, caput, do CTB) prevalece se a capitulação atribuída ao fato como homicídio doloso decorre de mera presunção ante a embriaguez alcoólica eventual. 3. A embriaguez alcoólica que conduz à responsabilização a título doloso é apenas a preordenada, comprovando-se que o agente se embebedou para praticar o ilícito ou assumir o risco de produzi-lo. 4. In casu, do exame da descrição dos fatos empregada nas razões de decidir da sentença e do acórdão do TJ/SP, não restou demonstrado que o paciente tenha ingerido bebidas alcoólicas no afã de produzir o resultado morte. 5. A doutrina clássica revela a virtude da sua justeza ao asseverar que “O anteprojeto Hungria e os modelos em que se inspirava resolviam muito melhor o assunto. O art. 31 e §§ 1º e 2º estabeleciam: 'A embriaguez pelo álcool ou substância de efeitos análogos, ainda quando completa, não exclui a responsabilidade, salvo quando fortuita ou involuntária. § 1º. Se a embriaguez foi intencionalmente procurada para a prática do crime, o agente é punível a título de dolo; § 2º. Se, embora não preordenada, a embriaguez é voluntária e completa e o agente previu e podia prever que, em tal estado, poderia vir a cometer crime, a pena é aplicável a título de culpa, se a este título é punível o fato”. (Guilherme Souza Nucci, Código Penal Comentado, 5. ed. rev. atual. e ampl. - São Paulo: RT, 2005, p. 243) 6. A revaloração jurídica dos fatos postos nas instâncias inferiores não se confunde com o revolvimento do conjunto fático-probatório. Precedentes: HC 96.820/SP, rel. Min. Luiz Fux, j. 28/6/2011; RE 99.590, Rel. Min. Alfredo Buzaid, DJ de 6/4/1984; RE 122.011, relator o Ministro Moreira Alves, DJ de 17/8/1990. 7. A Lei nº 11.275/06 não se aplica ao caso em exame, porquanto não se revela lex mitior, mas, ao revés, previu causa de aumento de pena para o crime sub judice e em tese praticado, configurado como homicídio culposo na direção de veículo automotor (art. 302, caput, do CTB). 8. Concessão da ordem para desclassificar a conduta imputada ao paciente para homicídio culposo na direção de veículo automotor (art. 302, caput, do CTB), determinando a remessa dos autos à Vara Criminal da Comarca de Guariba/SP.(STF: HC 107801, Relator(a):  Min. CÁRMEN LÚCIA, Relator(a) p/ Acórdão:  Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 06/09/2011, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-196 DIVULG 11-10-2011 PUBLIC 13-10-2011)

Neste mesmo sentido, sustentando que a embriaguez não autoriza a presunção automática de dolo eventual, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) vem decidindo:

PENAL. PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. 1. HOMICÍDIO. CRIME DE TRÂNSITO. EMBRIAGUEZ. DOLO EVENTUAL. AFERIÇÃO AUTOMÁTICA. IMPOSSIBILIDADE. 2. ORDEM CONCEDIDA. 1. Em delitos de trânsito, não é possível a conclusão automática de ocorrência de dolo eventual apenas com base em embriaguez do agente. Sendo os crimes de trânsito em regra culposos, impõe-se a indicação de elementos concretos dos autos que indiquem o oposto, demonstrando que o agente tenha assumido o risco do advento do dano, em flagrante indiferença ao bem jurídico tutelado. 2. Ordem concedida para, reformando o acórdão impugnado, manter a decisão do magistrado de origem, que desclassificou o delito para homicídio culposo e determinou a remessa dos autos para o juízo comum (STJ: 58826 RS 2006/0099967-9, Relator: Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, Data de Julgamento: 29/06/2009, T6 - SEXTA TURMA. Data de Publicação: DJe 08/09/2009).

Também é o entendimento coadunado pelo Tribunal de Justiça do Estado do Pará (TJPA):

RECURSO EM SENTIDO ESTRITO CRIME DE TRÂNSITO EMBRIAGUEZ - HOMICÍDIO DOLOSO – RECORRENTE REQUER A DESCLASSIFICAÇÃO DO DOLO EVENTUAL PARA FORMA CULPOSA ALEGA QUE OS CRIMES DE TRÂNSITO, EM GERAL, APRESENTAM A CULPA COMO ELEMENTO SUBJETIVO LESÃO CORPORAL CULPOSA - PRESCRIÇÃO - RECURSO PROVIDO DECISÃO UNÂNIME.

I - A defesa requer a desclassificação da imputação do delito cometido com dolo eventual para a forma de homicídio culposo. Aduz que os crimes de trânsito, via de regra, são cometidos com culpa;

II Para que se atribua dolo eventual ao crime de trânsito, é necessário que existam circunstâncias específicas que demonstrem a vontade deliberada do agente em assumir o risco, conforme direciona a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça;

III Prescrita a pretensão punitiva referente ao delito de lesão corporal culposa;

IV - Recurso provido. Decisão unânime (TJPA: RSE 64652. Rel. João José da Silva Maroja. 1ª Câmara Criminal Isolada. 12/02/2010, Cad. 1, p. 61.)

De forma contrária, os demais Tribunais Estaduais de Justiça tem decidido, constantemente, pró-dolo eventual quando a embriaguez é somada ao excesso de velocidade. Citam-se os seguintes julgados:

PENAL E PROCESSO PENAL. CRIME DE TRÂNSITO. PRONÚNCIA DO RÉU NO DELITO DE HOMICÍDIO SIMPLES - ART. 121, CAPUT, DO CÓDIGO PENAL. CONDUÇÃO DE MOTOCICLETA COM ALTA VELOCIDADE, EM ESTADO DE EMBRIAGUEZ E SEM HABILITAÇÃO. ATROPELAMENTO DE TRANSEUNTE. APELAÇÃO CRIMINAL COM FULCRO NO ART. 593, INCISO III, ALÍNEA D, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. ALEGAÇÃO DE QUE A DECISÃO DO CONSELHO DE SENTENÇA FOI CONTRÁRIA À PROVA DOS AUTOS. INADMISSIBILIDADE. PEDIDO ALTERNATIVO DE DESCLASSIFICAÇÃO PARA HOMICÍDIO CULPOSO. DOLO EVENTUAL. CONFIGURADO. IMPOSSIBILIDADE. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. ACÓRDÃO121CÓDIGO PENAL593IIICÓDIGO DE PROCESSO PENAL (TJRN: 50844 RN 2009.005084-4. Relator: Juiz Henrique Baltazar (Convocado), Data de Julgamento: 11/01/2011, Câmara Criminal);

e mais,

RÉU ALCOOLIZADO, QUE DESENVOLVIA VELOCIDADE INADEQUADA. NÃO REDUÇÃO AO VER PESSOAS TENTANDO A TRAVESSIA. CONDUTA QUE EVIDENCIA O DOLO EVENTUAL. ASSUNÇÃO AO RISCO DE PRODUZI-LO. O VEÍCULO AUTOMOTOR, CADA VEZ MAIS SOFISTICADO E VELOZ, QUANDO ENTREGUE NAS MÃOS DE MOTORISTAS MENOS PREPARADOS, EM FACE DA EMBRIAGUEZ, PASSA A CONSTITUIR UMA ARMA PERIGOSA, IMPONDO GRANDE RISCO ÀS PESSOAS QUE SE ENCONTRAM NAS VIAS PÚBLICAS. ORA, AQUELES QUE USAM DESSA ARMA DE MODO INADEQUADO SE NÃO QUEREM O RESULTADO LESIVO, ASSUMEM, PELO MENOS, O RISCO DE PRODUZI-LO (TJSP: Rec. 189.655-3. Rel. Min. Silva Pinto – Bol. Jan. 96/123).

e mais,

RECURSO EM SENTIDO ESTRITO - DELITOS DE HOMICÍDIO SIMPLES, LESÕES CORPORAIS GRAVES E EMBRIAGUEZ AO VOLANTE (121, CAPUT, ART. 129, § 1º, INCISO I, DO CP E ART. 306, DO CTB)- PRONÚNCIA - PEDIDO DE DESCLASSIFICAÇÃO DOS DOIS PRIMEIROS DELITOS PARA A FORMA CULPOSA - (ART. 302 E 303 DO CTB)- CONJUNTO PROBATÓRIO A DEMONSTRAR SUFICIENTES INDÍCIOS DA OCORRÊNCIA DE DOLO EVENTUAL - DECISÃO DE PRONÚNCIA MANTIDA - APRECIAÇÃO DA RESPONSABILIDADE DELITIVA DELEGADA AO TRIBUNAL DO JÚRI - INVIABILIDADE DA DESCLASSIFICAÇÃO DO DOLO EVENTUAL PARA A CULPA CONSCIENTE NESTA ETAPA PROCEDIMENTAL - RECURSO DESPROVIDO. 129§ 1ºICP306CTB302303CTB1. Para a pronúncia basta que existam a materialidade do crime e indícios sérios quanto à autoria do delito, vez que respaldada a configuração do dolo eventual em elementos colhidos da massa cognitiva processual, está o feito, bem endereçado para julgamento pelo Júri.2. O conjunto probatório reúne suficientes indicativos de que o recorrente dirigia o veículo depois de ingerir bebida alcoólica e em velocidade excessiva quando atingiu as vítimas que de bicicleta circulavam pelo acostamento. Tais indícios demonstram plausível a imputação, de modo a aperfeiçoar o dolo eventual, revelando que o motorista, nestas condições, poderia ter assumido o risco de produzir o resultado e, portanto a sujeitar-se ao veredicto do Júri Popular. Recurso desprovido (TJPR: 6668895 PR 0666889-5, Relator: Oto Luiz Sponholz, Data Julgamento: 02/06/2011, 1ª Câmara Criminal, Data de Publicação: DJ: 663).

e ainda,

APELAÇÃO CRIME. HOMICÍDIO SIMPLES. ARTIGO 121, "CAPUT", DO CÓDIGO PENAL. MORTE DE PEDESTRE. ATROPELAMENTO POR VEÍCULO AUTOMOTOR. MOTORISTA EMBRIAGADO E QUE TRAFEGAVA COM EXCESSO DE VELOCIDADE. DOLO EVENTUAL RECONHECIDO PELO JÚRI. DECISÃO QUE NÃO É MANIFESTAMENTE CONTRÁRIA ÀS PROVAS DOS AUTOS. DOSIMETRIA DA PENA ADEQUADA. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO.121CÓDIGO PENAL (3908267 PR 0390826-7, Relator: Maria Aparecida Blanco de Lima, Data de Julgamento: 19/06/2008, 1ª Câmara Criminal, Data de Publicação: DJ: 7649)

3.3.2 “Racha”

  Sinônimo de corrida, disputa ou competição automobilística não autorizada em via pública, o “racha” também é objeto de grande discussão quando o assunto em tela é dolo eventual.

Todavia, a prática de tal conduta, que é altamente reprovada pela sociedade, não encontra muitos percalços na jurisprudência, que vem entendendo, com enorme freqüência, que os homicídios causados por “rachas” em vias públicas de grande fluxo, constituem, quase pacificamente, crimes dolosos (dolo eventual).

Cleber Masson (2010, p. 251) justifica o endurecimento jurisprudencial da seguinte forma:

Fundamenta-se essa escolha nas diversas campanhas educativas realizadas nas últimas décadas, demonstrando os inúmeros riscos da direção ousada e perigosa, como se dá no racha, na embriaguez ao volante e no excesso de velocidade em via pública.

Tais advertências são suficientes para esclarecer os motoristas da vedação legal de tais condutas, e, mais, dos resultados danosos que em razão delas são rotineiramente produzidos. E, se mesmo assim continua o condutor de veículo automotor a agir de forma imprudente, revela inequivocamente sua indiferença com a vida e a integridade corporal alheia, devendo responder pelo crime doloso a que der causa.

Adotando a mesma linha de pensamento, a doutrina esmagadora, ao abordar o tema “dolo eventual x culpa consciente”, cita constantes exemplos de homicídios provocados por “rachas” para ilustrar o dolo eventual, como bem demonstram Fernando Capez (2006, p. 203) e Eugênio Zaffaroni (2011, p. 435), respectivamente: “São também casos de dolo eventual: [...] participar de inaceitável disputa automobilística realizada em via pública (‘racha’), ocasionando morte”; “Quem se lança numa competição automobilística de velocidade, numa cidade populosa, à custa da possibilidade de produção de um resultado lesivo, age igualmente com dolo eventual de homicídio, lesões e danos”.

Segundo o site do Superior Tribunal de Justiça, um dos primeiros casos em que essa egrégia corte se manifestou de forma favorável à aplicação do dolo eventual, foi no episódio acontecido no dia 05 de abril de 1996, na estrada que liga a cidade mineira de Mar de Espanha a Bicas, episódio este que ficou conhecido como “A tragédia de Mar de Espanha” (STJ: HC 71331/MG, Rel. Min. Felix Fischer).

Relatava a denúncia que, no supracitado dia, o industrial Ismael Keller Loth participava de um “racha”, a 140 km/h, com o médico Ademar Pessoa Cardoso, instante em que a Blazer conduzida pelo industrial atingiu um fusca com cinco pessoas (um condutor e quatro passageiros) da mesma família, que morreram na hora.

Apesar de o Tribunal de Justiça de Minas Gerais ter entendido que o caso acima configurava culpa consciente, o STJ decidiu que o dolo eventual restara demonstrado, submetendo, desta feita, os criminosos à julgamento perante o Tribunal do Júri, que condenou um a 12 anos e nove meses de reclusão e outro a doze anos. 

Importante destacar, ainda, a possibilidade da incidência de qualificadores em crimes revestidos de dolo eventual, como demonstra o seguinte julgado do STJ, em mais um caso de “racha” nas vias brasileiras:

HABEAS CORPUS. PENAL. HOMICÍDIO QUALIFICADO. ART. 121, § 2.º, INCISOIV, DO CÓDIGO PENAL. "RACHA". QUALIFICADORA DO RECURSO QUEDIFICULTOU OU TORNOU IMPOSSÍVEL A DEFESA DA VÍTIMA. COMPATIBILIDADECOM O DOLO EVENTUAL. PRECEDENTES DESTA CORTE. 121§ 2.º CÓDIGO PENAL1. Consoante já se manifestou esta Corte Superior de Justiça, a qualificadora prevista no inciso IV do § 2.º do art. 121 do Código Penal é, em princípio, compatível com o dolo eventual, tendo em vista que o agente, embora prevendo o resultado morte, pode, dadas as circunstâncias do caso concreto, anuir com a sua possível ocorrência, utilizando-se de meio que surpreenda a vítima.Precedentes.2. Na hipótese, os réus, no auge de disputa automobilística em via pública, não conseguiram efetuar determinada curva, perderam o controle do automóvel e o ora Paciente atingiu, de súbito, a vítima,colidindo frontalmente com a sua motocicleta, ocasionando-lhe a morte.3. Nesse contexto, não há como afastar, de plano, a qualificadora em questão, uma vez que esta não se revela, de forma incontroversa, manifestamente improcedente. 4. Ordem denegada (STJ: 120175 SC 2008/0247429-0, Relator: Ministra LAURITA VAZ, Data de Julgamento: 02/03/2010, T5 - QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 29/03/2010.)

Ademais, destaca-se também o brilhante entendimento do STJ dispondo que o tráfego é atividade própria de risco permitido, todavia o racha é uma anomalia. Vejamos:

PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO ESPECIAL. HOMICÍDIOS DOLOSOS. PRONÚNCIA. DESCLASSIFICAÇÃO. DOLO EVENTUAL E CULPA CONSCIENTE. QUAESTIO FACTI E QUAESTIO IURIS. REEXAME E REVALORAÇÃO DA PROVA.

I – É de ser reconhecido o prequestionamento quando a questão, objeto da irresignação rara, foi debatida no acórdão recorrido.

II – É de ser admitido o dissídio pretoriano se, em caso semelhante, no puctum saliens, há divergência de entendimento no plano da valoração jurídica.

III – Não se pode generalizar a exclusão do dolo eventual em delitos praticados no trânsito. Na hipótese de "racha", em se tratando de pronúncia, a desclassificação da modalidade dolosa de homicídio para a culposa deve ser calcada em prova por demais sólida. No iudicium accusationis, inclusive, a eventual dúvida não favorece os acusados, incidindo, aí, a regra exposta na velha parêmia in dubio pro societate.

IV – O dolo eventual, na prática, não é extraído da mente do autor mas, isto sim, das circunstâncias. Nele, não se exige que resultado seja aceito como tal, o que seria adequado ao dolo direto, mas isto sim, que a aceitação se mostre no plano do possível, provável.

V – O tráfego é atividade própria de risco permitido. O "racha", no entanto, é – em princípio – anomalia que escapa dos limites próprios da atividade regulamentada.

VI – A revaloração do material cognitivo admitido e delineado no acórdão reprochado não se identifica com o vedado reexame da prova na instância incomum. Faz parte da revaloração, inclusive, a reapreciação de generalização que se considera, de per si, inadequada para o iudicium acusationis.

Recurso provido, restabelecendo-se a pronúncia de primeiro grau (STJ: REsp 247.263/MG, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 05/04/2001, DJ 20/08/2001, p. 515, REPDJ 24/09/2001, p. 329).

Por fim, o STF não entende de forma diversa:

DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. CRIME DE COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL DO JÚRI. "RACHA" AUTOMOBILÍSTICO. HOMICÍDIO DOLOSO. DOLO EVENTUAL. NOVA VALORAÇÃO DE ELEMENTOS FÁTICO-JURÍDICOS, E NÃO REAPRECIAÇÃO DE MATERIAL PROBATÓRIO. DENEGAÇÃO.1. A questão de direito, objeto de controvérsia neste writ, consiste na eventual análise de material fático-probatório pelo Superior Tribunal de Justiça, o que eventualmente repercutirá na configuração do dolo eventual ou da culpa consciente relacionada à conduta do paciente no evento fatal relacionado à infração de trânsito que gerou a morte dos cinco ocupantes do veículo atingido.2. O Superior Tribunal de Justiça, ao dar provimento ao recurso especial interposto pelo Ministério Público do Estado de Minas Gerais, atribuiu nova valoração dos elementos fático-jurídicos existentes nos autos, qualificando-os como homicídio doloso, razão pela qual não procedeu ao revolvimento de material probatório para divergir da conclusão alcançada pelo Tribunal de Justiça.3. O dolo eventual compreende a hipótese em que o sujeito não quer diretamente a realização do tipo penal, mas a aceita como possível ou provável (assume o risco da produção do resultado, na redação do art. 18, I, in fine, do CP).18ICP4. Das várias teorias que buscam justificar o dolo eventual, sobressai a teoria do consentimento (ou da assunção), consoante a qual o dolo exige que o agente consinta em causar o resultado, além de considerá-lo como possível.5. A questão central diz respeito à distinção entre dolo eventual e culpa consciente que, como se sabe, apresentam aspecto comum: a previsão do resultado ilícito. No caso concreto, a narração contida na denúncia dá conta de que o paciente e o co-réu conduziam seus respectivos veículos, realizando aquilo que coloquialmente se denominou "pega" ou "racha", em alta velocidade, em plena rodovia, atingindo um terceiro veículo (onde estavam as vítimas).6. Para configuração do dolo eventual não é necessário o consentimento explícito do agente, nem sua consciência reflexiva em relação às circunstâncias do evento. Faz-se imprescindível que o dolo eventual se extraia das circunstâncias do evento, e não da mente do autor, eis que não se exige uma declaração expressa do agente.7. O dolo eventual não poderia ser descartado ou julgado inadmissível na fase do iudicium accusationis. Não houve julgamento contrário à orientação contida na Súmula 07, do STJ, eis que apenas se procedeu à revaloração dos elementos admitidos pelo acórdão da Corte local, tratando-se de quaestio juris, e não de quaestio facti.8. Habeas corpus denegado (STF: 91159 MG , Relator: ELLEN GRACIE, Data de Julgamento: 02/09/2008, Segunda Turma, Data de Publicação: DJe-202 DIVULG 23-10-2008 PUBLIC 24-10-2008 EMENT VOL-02338-02 PP-00281).

3.3.3 Velocidade Excessiva

Dos exemplos acima mencionados verifica-se que a grande maioria da jurisprudência vem reconhecendo o dolo eventual nos casos em que o excesso de velocidade soma-se a outros fatores, como nos casos de corridas automobilísticas (que naturalmente ocorrem em excesso de velocidade) e embriaguez ao volante.

O mesmo ocorre nos casos em que o excesso de velocidade é somado à realização de manobras perigosas e arriscadas. Capez (2006, p. 202) cita os seguintes exemplos:

É o caso do motorista que se conduz em velocidade incompatível com o local e realizando manobras arriscadas. Mesmo prevendo que pode perder o controle do veículo, atropelar e matar alguém, não se importa, pois é melhor correr este risco, do que interromper o prazer de dirigir (não quero, mas se acontecer, tanto faz). É também o caso do chofer que em desabalada corrida, para chegar a determinado ponto, aceita, de antemão o resultado de atropelar uma pessoa.

Da mesma forma manifesta-se a jurisprudência dos Tribunais de Justiça do país:

EMBARGOS INFRINGENTES NO RECURSO EM SENTIDO ESTRITO ACIDENTE DE TRÂNSITO COM RESULTADO MORTE - EXCESSO DE VELOCIDADE - ULTRAPASSAGEM EM CURVA - TRECHO DESCONHECIDO PELO MOTORISTA E COM GRANDE FLUXO DE PESSOAS - DOLO EVENTUAL CONFIGURADO - COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL DO JÚRI. Éminuciosa a diferença entre culpa consciente e dolo eventual, cristalina à luz da doutrina, porém, de embaraçosa evidência no caso concreto. Em ambos os casos há a previsão do resultado antijurídico pelo agente, porém, na culpa consciente, o mesmo realiza a ação, acreditando sinceramente que o fato não irá ocorrer, enquanto que no dolo eventual, o mesmo se arrisca, não se importando na consequência do seu ato. O excesso de velocidade não pode ser traduzido em vontade de produzir o resultado. Contudo, o fato de ter tentado uma ultrapassagem em uma pista concretamente desfavorável e em uma curva estreita, com apenas uma mão de via dupla, tangenciam para uma situação de desprezo ou de insignificância, em relação a consequência da manobra, já que, um outro veículo poderia estar tecendo o sentido inverso do embargante, com grandes chances de colisão (TJES: 8050001547 ES 8050001547, Relator: SÉRGIO LUIZ TEIXEIRA GAMA, Data de Julgamento: 13/02/2008, CÂMARAS CRIMINAIS REUNIDAS, Data de Publicação: 25/03/2008);

e mais,

RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. ACIDENTE DE TRÂNSITO. HOMICÍDIOS SIMPLES CONSUMADO E TENTADOS (ART. 121, CAPUT (UMA VEZ) E ART. 121, CAPUT, C/C ART. 14, II, DO CP (POR QUATRO VEZES). PRELIMINAR DE NULIDADE DO AUTO DE PRISÃO EM FLAGRANTE. AFASTAMENTO. AUTO REGULAR E EM CONSONÂNCIA COM O DISPOSTO NO ART. 301 E SEGUINTES DO CPP. PRONÚNCIA. DOLO EVENTUAL CARACTERIZADO PELA EMBRIAGUEZ COMPROVADA DO AUTOR ALIADA A EXCESSO DE VELOCIDADE E MANOBRAS ARRISCADAS E CONTRÁRIAS ÀS NORMAS DE TRÂNSITO QUE CULMINARAM EM FATÍDICO ACIDENTE AUTOMOBILÍSTICO. INVIABILIDADE DE DESCLASSIFICAÇÃO PARA OS CRIMES DE LESÃO CORPORAL SEGUIDA DE MORTE OU PARA HOMICÍDIO E LESÕES CORPORAIS CULPOSAS NESTA FASE PROCESSUAL. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO IN DUBIO PRO SOCIETATE. DECISÃO MANTIDA. RECURSO NÃO PROVIDO.12114IICP301CPP (TJPR: 7763408 PR 0776340-8, Relator: Macedo Pacheco, Data de Julgamento: 21/07/2011, 1ª Câmara Criminal, Data de Publicação: DJ: 686);

e mais,

PENAL. HOMICÍDIO. CRIME DE TRÂNSITO. DOLO EVENTUAL. ATROPELAMENTO COM VEÍCULO PREPARADO PARA COMPETIÇÃO EM EXCESSO DE VELOCIDADE, EM MANOBRAS PERIGOSAS, COM PNEUS CARECAS, QUE OCASIONOU A MORTE DA VÍTIMA. QUESITOS DE AUTORIA E MATERIALIDADE FORMULADOS COM INDAGAÇÃO SOBRE ALTÍSSIMA VELOCIDADE DO RÉU QUE RESULTOU EM RESPOSTA NEGATIVA - ABSOLVIÇÃO PELO CONSELHO DE SENTENÇA. QUESITAÇÃO DUVIDOSA PARA AFERIR AUTORIA E TAMBÉM, NAS CIRCUNSTÂNCIAS, VELOCIDADE EXAGERADA, INCOMPATÍVEL, ELEVADA, ALTA, OU VELOCIDADE SUPERIOR À PERMITIDA PARA O LOCAL. VELOCIDADE REGULAMENTADA, NO CASO EM, NO MÁXIMO 80 KM/H. QUESITO QUE NÃO AFERIU AUTORIA, PREJUDICADA A FERIÇÃO DA EXISTÊNCIA DE DOLO EVENTUAL NEM POSSIBILITOU AOS JURADOS A DECISÃO DE DESCLASSIFICAÇÃO PARA CRIME CULPOSO. NULIDADE DA DECISÃO MANIFESTAMENTE CONTRÁRIA À PROVA DOS AUTOS. RECURSO PROVIDO (TJPR: 6393817 PR 0639381-7, Relator: Roberto Portugal Bacellar, Data de Julgamento: 03/03/2011, 1ª Câmara Criminal, Data de Publicação: DJ: 612, undefined);

e ainda,

PROCESSUAL E PENAL - JÚRI - HOMICÍDIO DOLOSO - ACIDENTE DE TRÂNSITO - MAGISTRADO QUE NA PRONÚNCIA DESCLASSIFICA PARA A MODALIDADE CULPOSA DO HOMICÍDIO - EXCESSO DE VELOCIDADE E ULTRAPASSAGENS FORÇADAS EM LOCAL PROIBIDO - DOLO EVENTUAL EM TESE CONFIGURADO - MATÉRIA DE COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL DO JÚRI - APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO IN DUBIO PRO SOCIETATE - RECURSO MINISTERIAL PROVIDO.Havendo fundada dúvida a respeito do elemento subjetivo do homicídio, a perplexidade deve ser dirimida pelo Conselho de Sentença em observância ao princípio in dubio pro societate (391943 SC 2008.039194-3, Relator: Amaral e Silva, Data de Julgamento: 22/05/2009, Primeira Câmara Criminal, Data de Publicação: Recurso Criminal n. , de Campos Novos)

Importante destacar também, que na sentença de pronúncia, o juiz não deve imiscuir-se profundamente no mérito da causa, pois a análise do dolo eventual é de competência do Tribunal do Júri. Desta feita, na dúvida, decidi-se em favor da sociedade. Assinala-se as seguintes decisões do Superior Tribunal de Justiça:

AGRAVO REGIMENTAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. PENAL E PROCESSO PENAL. HOMICÍDIO. DOLO EVENTUAL. COLISÃO DE VEÍCULOS. EXCESSO DE VELOCIDADE. PRONÚNCIA. PROVA DA MATERIALIDADE E INDÍCIOS SUFICIENTES DE AUTORIA. PRETENDIDA IMPRONÚNCIA OU DESCLASSIFICAÇÃO DO DELITO. IMPOSSIBILIDADE. SIMPLES REEXAME DE PROVAS. SENTENÇA DEVIDAMENTE FUNDAMENTADA. AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO.1. Não há falar em ofensa ao art. 619 do Código de Processo Penal se todas as questões necessárias ao deslinde da controvérsia foram analisadas e decididas, ainda que de forma contrária à pretensão do recorrente, não havendo nenhuma omissão ou negativa de prestação jurisdicional.619Código de Processo Penal2. Não cabe, na via estreita do recurso especial, revisar o entendimento firmado pelas instâncias ordinárias no sentido de haver prova da materialidade e indícios suficientes de autoria para que seja o réu submetido a julgamento pelo Tribunal do Júri pela prática do crime de homicídio doloso (art. 121, caput, do Código Penal).121Código Penal3. No caso, não se trata de diferenciar, em tese, o dolo eventual da culpa consciente, mas sim do mero exame de matéria de fato, tendo em vista que a fundamentação constante da sentença de pronúncia e do acórdão impugnado demonstra a existência de elementos mínimos suficientes para a submissão do réu a julgamento pelo Tribunal Popular, que examinará as questões controvertidas.4. O simples fato de se tratar de delito decorrente de acidente de trânsito não implica ser tal delito culposo se há, nos autos, dados que comprovam a materialidade e demonstram a existência de indícios suficientes de autoria do crime de homicídio doloso. Precedentes.5. A sentença de pronúncia, à luz do disposto no art. 408, caput, do CPP, deve, sob pena de nulidade, cingir-se, motivadamente, à materialidade e aos indícios de autoria, visto se tratar de mero juízo de admissibilidade da acusação. No caso, o decisum foi proferido com estrita observância da norma processual, fundamentando-se em elementos suficientes para pronunciar o réu, tais como o interrogatório, os depoimentos das testemunhas, além do laudo pericial oficial.408CPP6. Tratando-se de crime doloso contra a vida, o julgamento pelo Tribunal do Júri somente pode ser obstado se manifestamente improcedente a acusação, cabendo a solução das questões controvertidas ao órgão competente, devido à aplicação, na fase do judicium accusationis, do princípio in dubio pro societate.7. Agravo regimental improvido (STJ: 850473 DF 2006/0268579-5, Relator: Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, Data de Julgamento: 13/11/2007, T5 - QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJ 07.02.2008 p. 1);

e ainda,

HABEAS CORPUS. TRIBUNAL DO JÚRI. PRONÚNCIA POR HOMICÍDIO QUALIFICADOA TÍTULO DE DOLO EVENTUAL. DESCLASSIFICAÇÃO PARA HOMICÍDIO CULPOSONA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. EXAME DE ELEMENTO SUBJETIVO DOTIPO. ANÁLISE APROFUNDADA DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO.IMPOSSIBILIDADE. COMPETÊNCIA DO CONSELHO DE SENTENÇA. AUSÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL. ORDEM DENEGADA.1. A decisão de pronúncia encerra simples juízo de admissibilidade da acusação, exigindo o ordenamento jurídico somente o exame da ocorrência do crime e de indícios de sua autoria, não se demandando aqueles requisitos de certeza necessários à prolação de um édito condenatório, sendo que as dúvidas, nessa fase processual,resolvem-se contra o réu e a favor da sociedade. É o mandamento do art. 408 e atual art. 413 do Código Processual Penal. 2. O exame da insurgência exposta na impetração, no que tange à desclassificação do delito, demanda aprofundado revolvimento do conjunto probatório - vedado na via estreita do mandamus -, já que para que seja reconhecida a culpa consciente ou o dolo eventual,faz-se necessária uma análise minuciosa da conduta do paciente.3. Afirmar se agiu com dolo eventual ou culpa consciente é tarefa que deve ser analisada pela Corte Popular, juiz natural da causa, de acordo com a narrativa dos fatos constantes da denúncia e com o auxílio do conjunto fático-probatório produzido no âmbito do devido processo legal, o que impede a análise do elemento subjetivo de sua conduta por este Sodalício.4. Na hipótese, tendo a decisão impugnada asseverado que há provas da ocorrência do delito e indícios da autoria assestada ao paciente e tendo a provisional trazido a descrição da conduta com a indicação da existência de crime doloso contra a vida, sem proceder à qualquer juízo de valor acerca da sua motivação, não se evidenciado alegado constrangimento ilegal suportado em decorrência da pronúncia a título de dolo eventual, que depende de profundo estudo das provas, as quais deverão ser oportunamente sopesadas pelo Juízo competente no âmbito do procedimento próprio, dotado de cognição exauriente. 5. Ordem denegada. (STJ: 94916 SP 2007/0273960-4, Relator: Ministro JORGE MUSSI, Data de Julgamento: 04/02/2010, T5 - QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 10/05/2010).

3.3.4 Outros Casos

Superados os pontos mais polêmicos do tema, juntamos neste subitem demais casos de homicídios praticados no trânsito e seus respectivos entendimentos jurisprudenciais.

Contramão da direção:

Ementa Oficial: Procede com insigne culpa, na modalidade de imprudência, e responde pelo crime do art. 302 do Código de Trânsito, o motorista que, faltando ao dever de cuidado objetivo, entra na contramão de direção e intercepta a trajetória regular de veículo, provocando acidente fatal. (TACrimSP) - 779/592 (TJMS: 4436 MS 2001.004436-9, Relator: Des. José Benedicto de Figueiredo, Data de Julgamento: 18/09/2001, 1ª Turma Criminal, Data de Publicação: 05/10/2001);

Homicídio culposo na direção de veículo automotor. Provas evidenciando a responsabilidade da acusada. Perícia técnica confirmando que a ré agiu com imprudência, ao trafegar com seu veículo pela contramão de direção. Imprudência manifesta. Palavras da testemunhas de defesa parciais, revelando clara intenção de inocentar a ré injustamente.Depoimentos desmentidos pela perícia técnica.Condenação de rigor. Penas bem aplicadas.Suspensão da habilitação necessária. Apelo improvido. (TJSP: 990100148460 SP , Relator: Pinheiro Franco, Data de Julgamento: 15/07/2010, 5ª Câmara de Direito Criminal, Data de Publicação: 23/07/2010).

Trafegar pelo acostamento:

HOMICÍDIO CULPOSO NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR - culpa reconhecida - pelas circunstâncias, pelas palavras do apelante e das testemunhas de acusação - manobra de conversão sobre a rodovia, trafegando pelo acostamento pela contramão de direção e no período noturno que por si só já demonstram imprudência na conduta. Recurso improvido (TJSP: 993080157510 SP , Relator: Ruy Alberto Leme Cavalheiro, Data de Julgamento: 31/07/2008, 6ª Câmara de Direito Criminal, Data de Publicação: 14/08/2008);

PENAL. HOMICÍDIO CULPOSO. ACIDENTE DE TRÂNSITO. INOBSERVÂNCIA DO DEVER DE CUIDADO OBJETIVO. CONDENAÇÃO.1. FALTA COM O DEVER DE CUIDADO OBJETIVO O MOTORISTA QUE, DESATENTO ÀS CONDIÇÕES DE TRÁFEGO, FAZ MANOBRA BRUSCA PARA DESVIAR-SE DE OUTRO VEÍCULO E ADENTRA NO ACOSTAMENTO, COLHENDO CICLISTA.2. SENTENÇA CONDENATÓRIA MANTIDA. RECURSO IMPROVIDO (TJDF: 16816020058070001 DF 0001681-60.2005.807.0001, Relator: CÉSAR LOYOLA, Data de Julgamento: 20/09/2007, 1ª Turma Criminal, Data de Publicação: 12/12/2007, DJU Pág. 105 Seção: 3).

Conversão à esquerda:

PENAL. PROCESSUAL PENAL. CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO. ART. 302, § ÚNICO, INCISO IV. DELITO DE TRÂNSITO. HOMÍCIDIO CULPOSO. MOTORISTA PROFISSIONAL. CONVERSÃO A ESQUERDA. CUIDADO OBJETIVO. PROVA PERICIAL. MATERIALIDADE. EXCLUDENTE DE ILICITUDE. INOCORRÊNCIA. SUSPENSÃO DA CNH. RECURSO CONHECIDO E IMPROVIDO 1. O HOMICÍDIO CULPOSO OCORRE QUANDO O AGENTE CAUSA A MORTE DE ALGUÉM, SEM O QUERER, NEM O ASSUMINDO O RISCO DE FAZÊ-LO, MAS POR PROCEDIMENTO IMPRUDENTE, NEGLIGENTE OU IMPERITO, SENDO QUE O INFRATOR CRÊ PIAMENTE QUE O RESULTADO NÃO ACONTECERÁ. NO CASO DOS AUTOS, O ACUSADO TINHA PLENA CAPACIDADE E CONDIÇÕES PARA PREVER O RESULTADO DE SUA CONDUTA, ATÉ PORQUE, SENDO MOTORISTA PROFISSIONAL, ESTAVA BASTANTE FAMILIARIZADO COM O TRAJETO QUE CUMPRIA, HAVENDO VIOLAÇÃO DO DEVER DE CUIDADO OBJETIVO, NO SENTIDO NÃO RESPEITAR A PREFERÊNCIA DO CONDUTOR QUE VINHA A SUA DIREITA, ACABANDO POR CAUSAR O ACIDENTE FATAL. 2. A ALEGAÇÃO DE ESTADO DE NECESSIDADE, NO QUE CONCERNE A EXISTÊNCIA DE UM TERCEIRO VEÍCULO QUE TERIA ENSEJADO A MANOBRA, NÃO MERECE ACOLHIDA, TENDO EM VISTA QUE AS PROVAS DOS AUTOS INDICAM QUE A SITUAÇÃO PERIGOSA FOI DECORRENTE DO PRÓPRIO COMPORTAMENTO DO APELANTE, O QUE EXCLUI A INCIDÊNCIA DE EXCLUDENTE DE ILICITUDE. 3. RECURSO CONHECIDO E IMPROVIDO.CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO (TJDF: 90890720078070010 DF 0009089-07.2007.807.0010, Relator: ALFEU MACHADO, Data de Julgamento: 12/08/2010, 2ª Turma Criminal, Data de Publicação: 25/08/2010, DJ-e Pág. 256);

Homicídio culposo. Acidente de trânsito. Conversão à esquerda. Imprudência. Culpa. Caracterização. Age com culpa pela imprudência o motorista profissional que, mesmo avistando motociclista se aproximando em sentido oposto, na sua normal mão-de-direção, efetua manobra de conversão à esquerda sem adotar as cautelas exigidas para a situação, obstruindo o trajeto do veículo de pequeno porte, dando causa ao acidente (TJRO: 10000720040057832 RO 100.007.2004.005783-2, Relator: Desembargadora Ivanira Feitosa Borges, Data de Julgamento: 03/07/2008, 2ª Vara Criminal).

CRUZAMENTO NÃO SINALIZADO E AVANÇO DE PREFERENCIAL:

Homicídio culposo. Cruzamento não sinalizado. Via preferencial. Omissão de socorro.Sabe-se que, em cruzamentos não sinalizados, impõe-se observar a regra-geral do art. 29, inc. III, letra c, do CTB, de preferência àquele que trafega à direita do outro condutor de veículo.Não tendo o agente prestado socorro à vítima sem causa justificável, é de se aplicar a causa de aumento prevista no inc. IIIdo parágrafo único do art. 302 do CTB.29IIIcCTBparágrafo único302CTB (TJRO: 10000220050014830 RO 100.002.2005.001483-0, Relator: Juiz Álvaro Kalix Ferro, Data de Julgamento: 08/05/2008, 1ª Vara Criminal);

APELAÇÃO CRIMINAL - HOMICÍDIO CULPOSO - ACIDENTE DE TRÂNSITO - INOBSERVÂNCIA DA SINALIZAÇÃO DE TRÂNSITO COM DESRESPEITO À PREFERENCIAL - COLISÃO NA CONTRAMÃO DA DIREÇÃO DO RÉU - QUEBRA DO DEVER OBJETIVO DE CUIDADO PREVISTO NOS ARTIGOS 44 E 186, CTB - PROVA SUFICIENTE PARA A CONDENAÇÃO - PENA APLICADA - QUANTUM IRREPREENSÍVEL - VALOR FIXADO DE FORMA MOTIVADA ATENDENDO ÀS CIRCUNSTÂNCIAS DO CASO CONCRETO - RECURSO NÃO PROVIDO.44186CTB- Da análise da prova dos autos, inclusive do conteúdo do interrogatório do réu, fica evidente a quebra do dever de cuidado exigido pelo Código de Trânsito Nacional, vez que o apelante, além de não respeitar a preferencial, colidiu com a motocicleta, na qual a vítima estava na garupa, na sua contramão de direção, causando, com este comportamento imprudente, homicídio culposo. (TJPR: 5843207 PR 0584320-7, Relator: Luiz Osorio Moraes Panza, Data de Julgamento: 01/10/2009, 1ª Câmara Criminal, Data de Publicação: DJ: 249).

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Sobre o autor
Filipe Soares Alho

Advogado Especialista em Direito Constitucional

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALHO, Filipe Soares. A linha tênue que distingue o dolo eventual da culpa consciente nos homicídios de trânsito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3392, 14 out. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22800. Acesso em: 22 dez. 2024.

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