4. PSICOGRAFIA NO PROCESSO PENAL
4.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Como abordado em tópicos anteriores, a psicografia estaria disposta no capítulo referente aos documentos no Código de Processo Penal, no que tange ao direito à prova, que está inserido na garantia do contraditório. É uma questão bastante polêmica na atualidade e suscetível de variados debates em nossos tribunais, vez que implica em reflexões acerca da validade ou não de material resultante de psicografia como prova a ser valorada no processo.
Muito se discutiu sobre a quem atribuir a autoria da carta psicografada: se seria ao espírito ou ao médium. Ora, é evidente que não há a possibilidade de atribuir a autoria desse documento a uma alma desencarnada, tendo em vista que o nosso sistema jurídico não se porta diante de questões extraterrenas, até porque a lei estabelece que a morte extingue a personalidade humana, mesmo em sendo uma ficção jurídica e não propriamente fática. Assim, pode-se conferir a condição de autor ao médium psicógrafo, com a devida utilização de seu inconsciente para a produção do material probando. É fato que o magistrado não se interessaria a discutir como se dá essa percepção extrassensorial, mas sim a confirmação de que o fato probante seja verossímil.
A maior problemática que envolve o tema em comento é a relação da psicografia com a Religião versus Ciência jurídica. Alguns doutrinadores tentam correlacionar o material resultante dessa prática com o Espiritismo, quanto uma religião, o que não pode ser associado tão-somente sob esse enfoque; tem de se abordar, também, o ponto de vista jurídico. O jurista Ismar Estulano Garcia, em seu artigo publicado na Revista Jurídica Consulex, aborda o seguinte:
Do lado religioso, a polêmica é mais nítida, acontecendo com “mensagens psicografadas” o mesmo que ocorre com “curas espirituais”: há os que acreditam, os que não acreditam e os que duvidam da possibilidade de comunicação entre o mundo espiritual e o mundo material. Vale registrar que, admitindo-se a sobrevivência da alma após deixar a roupagem física, existem incursões no campo científico e jurídico.
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Ao abordar a “Psicografia como Prova Judicial”, o assunto não pode, nem deve, ser enfocado sob o aspecto religioso, mas apenas juridicamente. Analisando unicamente sob o aspecto jurídico é que concluímos ser perfeitamente possível a psicografia como prova no direito processual penal brasileiro (Ano X, n. 229, jul. 2006, p. 25).
Denota-se do entendimento do notável jurista que é imprescindível analisar a aceitação de carta psicografada pelo aspecto científico e não exclusivamente religioso, caso contrário não assistiria razão para o questionamento a que esse trabalho de pesquisa direciona, qual seja, da admissibilidade como prova judicial. Obviamente, tem de ser analisada a aceitação desse tipo de prova com certa cautela, considerando-se que, hoje, no Brasil, existem muitas fraudes, principalmente no que tange à confiabilidade do médium, se são reais as suas práticas espíritas ou se passa de um “charlatão”. Alguns casos de repercussão nacional, que serão tratados adiante, tiveram documentos carreados aos autos psicografados por Chico Xavier; é indiscutível tecer considerações acerca da credibilidade mediúnica do espírita brasileiro, mas existem outros que não possuem a mesma “boa imagem”, o que tem de ser constatada, criteriosamente, no momento do magistrado aceitar a prova a ser inserta no processo.
Uma vez psicografado o documento, tem de se determinar, sob o viés científico, se a grafia em questão é da entidade desencarnada, conforme será atestado pelo exame grafotécnico. Conforme explanado outrora, verificar-se-á nesse laudo o confronto do grafismo da pessoa quando viva e da psicografia realizada pela pessoa dotada desse dom extrassensorial, ou seja, contraditar-se-á o documento questionado e o documento padrão, tudo respaldado cientificamente. Não há negar que também, aqui, tem de se levar em conta a aptidão profissional do perito, mesmo o julgador não estando adstrito ao laudo pericial a ser emitido.
Assim, juridicamente, é possível admitir a carta psicografada como lícita no âmbito processual penal, configurada como prova documental em sentido amplo, já que o legislador deixou “em aberto” esse conceito. O que não pode, de fato, é aceitá-la unicamente como prova isolada, vez que, se assim o fosse, poderia ser discutida sua ilicitude, mas quando em conjunto com os demais meios probantes é plenamente lícita e segura para o juiz dar a valoração a que merece.
4.2 OPINIÕES FAVORÁVEIS E CONTRÁRIAS DE JURISTAS À ACEITAÇÃO DE CARTA PSICOGRAFADA COMO PROVA JUDICIAL
Por ser um tema bastante polêmico, importante abordar as posições de juristas, doutrinadores, cientistas e espíritas sobre a aceitabilidade da mensagem psicografada como prova jurídica na seara processual penal. Assim como existem aqueles que afirmam a admissibilidade desse meio de prova, há aqueles que discordam de tal posicionamento, sob o “arcaico” fundamento de que fere, substancialmente, a Constituição da República Federativa do Brasil. Senão vejamos.
O promotor de Justiça do Estado de São Paulo, Renato Marcão, entende que não há como positivar o uso de carta psicografada em nosso ordenamento jurídico, em virtude da laicidade do Estado, mas também não a considera como ilícita. Não há discutir a falta de contraditório quanto a sua produção, tendo em vista que a partir do momento em que é posta em juízo, automaticamente passará a ser contraditado. Assim, concluiu:
No sistema jurídico brasileiro não há como normatizar o uso do documento psicografado como meio de prova; seja para permitir ou proibir. O Estado é laico.
De prova ilícita não se trata. Se não está submetido ao contraditório quando de sua produção, entenda-se, quando da psicografia, a ele estará exposto a partir da apresentação em juízo (2009, p. 153, 154, grifo nosso).
O professor da Universidade Estadual de Londrina, no Paraná, especialista e ex-perito em exame grafotécnico do Banco do Brasil e, atualmente, do Poder Judiciário, doutor Carlos Augusto Perandréa, foi um dos grandes responsáveis pelo estudo da psicografia de Chico Xavier por cerca de 14 (quatorze) anos. Nesses estudos, ele pode verificar, minuciosamente, um grande número de cartas psicografadas por esse médium brasileiro, na qual fez comparações com a grafia da pessoa quando estava em vida e a do próprio psicógrafo, quando não está em transe mediúnico. Durante todo esse tempo, analisou cerca de 400 (quatrocentas) cartas, sendo que 398 (trezentas e noventa e oito) foram confirmadas por outros peritos, justamente para demonstrar a autenticidade desse tipo de perícia, obtendo, assim, uma margem de 99,5% (noventa e nove vírgula cinco por cento) de acerto, ou seja, uma certeza praticamente incontestável.
O perito fez a seguinte observação a uma entrevista realizada pelo Curso de Comunicação Social e Jornalismo da Fundação Edson de Queiroz, da Universidade de Fortaleza, em 2007, quando perguntado até em que situação a psicografia semimecânica – aquela conceituada e classificada por Allan Kardec, na qual a mão do médium age involuntariamente, mas continua tendo plena consciência das palavras e frases na medida em que escreve – pode influenciar na imparcialidade do documento resultante de psicografia, e como ela pode ser utilizada para solucionar casos jurídicos, considerando que o médium pode estar sendo parcial, influenciando, de alguma forma, as informações resultantes da psicografia, in verbis:
Os exames grafotécnicos para a comprovação de autenticidade ou da autoria gráfica são efetuados em grafismos, vocábulos, textos e assinaturas, que devem ser comparados tecnicamente com as escritas autênticas (padrões). Dessa forma, qualquer mensagem psicografada, não sendo uma psicografia mecânica, não terá como conter os elementos grafocinéticos de identificação. Por outro lado, a questão de resolver casos jurídicos com a psicografia é uma questão bastante polêmica do ponto de vista jurídico, envolvendo os mais diversos trabalhos, entre eles os desenvolvidos pelos conceituados professores e mestres em Direito Civil e Penal, com destaque para os trabalhos de Ismar Estulano Garcia, Renato Marcão, Roberto Serra da Silva Maia, Jacobson Sant’Ana Trovão e Flávio Tartuce (2009, p. 144).
Para a Associação Jurídico-Espírita do Estado de São Paulo, o documento oriundo de psicografia é lícito, posto o sistema jurídico vigente não vedá-lo, vez que o Código Processual Penal refere-se a qualquer documento, em sentido amplo, imperando, no ato da aceitação da prova, o livre convencimento do juiz.
Importante aclamar o posicionamento do jurista Pedro Paulo Filho, entendendo a extensão e a importância do tema:
[...] Alguns acham que a psicografia pode ser levada em juízo quando ela está em harmonia com as demais provas; outros entendem o contrário, considerando que as mensagens psicografadas confundem a segurança e as razões jurídicas com a crença religiosa. Modestamente, achamos que estão confundindo alhos com bugalhos, porque o Espiritismo não é uma religião, mas sim uma doutrina de cunho filosófico-religioso de aperfeiçoamento moral do homem por meio de ensinamentos transmitidos por espíritos mais aprimorados de pessoas mortas que se comunicam com os vivos, através de médiuns.
Como católico apostólico romano, achamos que a proibição constitui um preconceito à Doutrina Espírita e aos adeptos de Espiritismo. Se assim for, por que então manter nas salas de julgamento dos fóruns e tribunais a imagem de Jesus Cristo crucificado, se o Poder Judiciário não tem nada a ver com a Religião? (2009, p. 160).
Subentende-se do entendimento afirmativo-interrogativo do jurista em voga que a prova oriunda de psicografia tem de ser admitida como lícita, pois não se deve considerar pelo aspecto da religião, questão já vencida quando se tratou da psicografia sob a óptica da doutrina espírita.
O espírita e médium brasileiro Francisco Cândido Xavier posicionou-se acerca da psicografia como interferência em processos judiciais. Para ele, não há como recusar a comunicação daqueles que querem transmitir alguma notícia, vez que as entidades manifestam-se naturalmente. Afirma (2009, p. 148) que nunca teve a intenção de que mensagens recebidas por ele pudessem atuar em qualquer setor Judiciário, muito menos sendo utilizado como peça de defesa de alguém a seu pedido. Recebe tais entidades com a única finalidade de consolar e reconfortar a família, mas nunca para influenciar no julgamento de um processo. Todavia, acredita que mesmo em sendo utilizada como prova, não pode ser tida como ilegal, posto que a Constituição Federal proíbe apenas as provas ilícitas, e não classifica a psicografia como tal.
Para o juiz de Direito aposentado, doutor Orimar de Bastos (2006, p. 29), que foi um dos magistrados que proferiu uma decisão com base em prova psicografada, analisada no item 4.3.1, desse capítulo, reconhece que a utilização desse meio de prova pode ser levada em conta para a determinação da responsabilidade penal do réu, desde que se trate de prova subsidiária e esteja em consonância com outras provas não ilícitas no sistema geral do direito positivado.
Outro doutrinador, advogado criminalista e professor de Direito Penal e Processual Penal que atua a favor da utilização desse mecanismo é Ismar Estulano Garcia, que, inclusive, é autor de uma obra a respeito do tema. Transcreve-se parte de seu artigo publicado na Revista Jurídica Consulex, abaixo:
Juridicamente, é perfeitamente possível, hoje, admitir a “psicografia como prova judicial”. É por demais sabido que existem crimes cujo julgamento é da competência do juiz singular (Juiz de Direito) e crimes em que a competência para julgar é do Tribunal do Júri (jurados). [...] Os jurados são soberanos em seus veredictos, o que significa que poderão aceitar “mensagem psicografada como prova”, pois decidem por convicção íntima. Já nos crimes cujo julgamento for da competência do juiz singular, deve ele decidir de acordo com o seu livre convencimento [...] (Ano X, n. 229, jul. 2006, p. 25, 26, grifo nosso).
Por derradeiro, há também posições contrárias acerca da admissibilidade, alegando a ilicitude da prova, como já frisado anteriormente, levando em conta a origem dos argumentos virem de pessoa falecida, que não possui mais personalidade jurídica para tanto. Comunga desse entendimento o professor aposentado da Faculdade de Direito da USP, Dalmo de Abreu Dallari, que acredita que o uso da psicografia é claramente ilegal, não sendo reconhecido pelo sistema jurídico brasileiro, e, caso seja, o julgamento seria nulo. Em seu entendimento, o juiz tem plena liberdade de escolha de sua religião, inclusive adotar o próprio espiritismo como filosofia de vida, mas se isso interferir de alguma forma em seu desempenho da função judicante, tornar-se-ia ilegal, ofendendo a tão discutida laicidade do Estado Democrático de Direito.
Outro teórico que sustenta pela ilegalidade da prova psicográfica é o professor de Teoria do Estado e de Teoria do Direito, da Universidade de São Paulo (USP), Marcelo Neves, que diz haver uma descaracterização dos princípios da ordem constitucional moderna com a aplicação de valores relativos ao espiritismo no cotidiano do Poder Judiciário. Afirma o referido professor:
Não podem se definir posições sobre casos jurídicos a partir de uma percepção religiosa do mundo. A partir do momento que esses magistrados não conseguem se desvincular é um problema gravíssimo para o Estado de Direito, que parte do princípio de ser um Estado laico e que posições religiosas diversas não podem ser determinantes no processo de decisão jurisdicional (2009, p. 157).
Acredita, Marcelo Neves, que a utilização da psicografia nos tribunais seria um grande perigo, visto ter significado apenas nos campos pessoal e religioso, e, jamais, na seara jurídica, posto que seria uma forma destrutiva da consistência do Estado Democrático. É o mesmo entendimento adotado pelo Presidente da AJUFE – Associação dos Juízes Federais do Brasil, Walter Nunes da Silva Júnior.
Verifica-se, dessa forma, que as disparidades quanto ao assunto são bem discutidas entre os profissionais da área jurídica. Não há uma verdade absoluta a ser seguida, até porque o Direito é debate, discussão, posições antagônicas, o que sempre ocorrerá em nosso ordenamento jurídico. O que pode ser considerado um fato certo é que o legislador permitiu uma interpretação extensiva do artigo 232, do Código de Processo Penal, ao admitir documento como qualquer escrito, o que faz associar a mensagem psicografada como tal, não sendo caracterizada como prova ilícita, tendo em vista não afrontar nem a Constituição Federal, nem a legislação infraconstitucional. A seguir serão abordados três casos de relevância nacional, na qual a psicografia foi um dos principais elementos para a decisão dos julgados.
4.3 ANÁLISE CRÍTICA E JURISPRUDENCIAL DE CASOS NACIONAIS
4.3.1 Caso Maurício Garcez Henrique
O primeiro caso a ser analisado trata-se de um episódio ocorrido na cidade de Goiânia – GO, em 08 de maio de 1976, envolvendo dois amigos, José Divino Nunes, dezoito anos, na qualidade de réu, e Maurício Garcez Henrique, vítima. Esse tinha apenas quinze anos, estudante do colegial em sua cidade natal, Goiânia, quando houve a tragédia. Consta nos autos que ambos se encontravam na casa dos pais do autor do fato, em uma despensa anexa à cozinha, quando Maurício abriu uma pasta que pertencia ao pai do amigo, retirando cigarros e uma arma de fogo. Como acreditava ter retirado todos os cartuchos do revólver, iniciou uma brincadeira com o objeto, passando-a ao amigo que, acidentalmente, acabou por acionar o gatilho, efetuando um disparo que atingiu o peito de Maurício, sendo, posteriormente socorrido pelos pais de José Divino, que providenciaram o encaminhamento da vítima ao hospital, não chegando sequer a ser socorrido.
O autor do fato, abalado por ter ceifado, por acidente, a vida de seu melhor amigo, além de perder seus pais numa fatalidade automobilística posteriormente ao fato, acabou por ser preso. Após uma semana do ocorrido, os pais da vítima, José e Dejanira, foram conhecedores da possibilidade de comunicação com seu filho por intermédio da psicografia, sendo apresentados ao médium Chico Xavier, que, inicialmente, apenas transmitia mensagens de consolo para a família. Após dois anos da ocorrência do fato trágico, o médium recebeu a primeira mensagem assinada por Maurício, que trazia peculiaridades do acidente, como, por exemplo, que ninguém teve culpa do ocorrido, dado que estavam apenas brincando a respeito da possibilidade de ferir alguém pela imagem do espelho, mas por um descuido, o inevitável aconteceu. Após essa mensagem extraterrena, a família ainda foi destinatária de outra, corroborando o teor da antecedente, o que fez enaltecer a hipótese de acidente.
Devidamente denunciado pelo Ministério Público do Estado de Goiás, e após todo o ato instrutório, o Juiz Orimar de Bastos, proferiu a sentença de acordo com as provas anexadas aos autos, pela primeira fase do rito do júri popular – judicium acusationes –, já que se tratava, em princípio, de crime doloso contra a vida, cuja pequena passagem segue adiante, extraída da obra “Psicografia no Tribunal”, de Vladimir Polízio:
No desenrolar da instrução, foram juntados aos autos recortes de jornal e uma mensagem espírita enviada pela vítima, através de Chico Xavier, em que na mensagem enviada do Além relata também o fato que originou sua morte. [...] o feito teve andamento a passos de tartaruga, quando foi realizada a instrução, com as oitivas das testemunhas indicadas pela acusação e defesa e, finalmente, a apresentação de razões finais.
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Lemos e relemos depoimentos das testemunhas, bem como analisamos as perícias efetivadas pela especializada, e, ainda mais, atentamos para a mensagem espiritualista enviada pela vítima aos pais.
Fizemos análise total de culpabilidade, para podermos entrar com a cautela devida no presente feito sub judice, em que não nos parece haver o elemento dolo, em que foi enquadrado o denunciado, pela explanação longa que apresentamos. O jovem José Divino Nunes, em pleno vigor de seus 18 anos, vê-se envolvido no presente processo, acusado de delito doloso, em que perdeu a vida seu amigo inseparável Maurício Garcez Henrique.
Na mensagem psicografada retro, a vítima relata o fato isentando-o. Coaduna este relato com as declarações prestadas pelo acusado, quando do seu depoimento, às fls. 100/vs.
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Julgamos improcedente a denúncia, para absolver, como absolvido temos, a pessoa de José Divino Nunes, pois o delito por ele praticado não se enquadra em nenhuma das sanções do Código Penal Brasileiro, porque o ato cometido, pelas análises apresentadas, não se caracterizou de nenhuma previsibilidade. Fica, portanto, absolvido o acusado da imputação que lhe foi feita (2009, p. 90, 91, grifos nossos).
Com essa decisão inédita do MM. Juiz Orimar de Bastos na história do Judiciário brasileiro houve inúmeros debates acerca da admissibilidade da carta psicografada como prova lícita, tomando novos rumos o presente processo, vez que, não conformado com a sentença prolatada, o Ministério Público Estadual recorreu, pleiteando a reforma da sentença ou o seu respectivo encaminhamento ao Tribunal de Justiça. Como o juiz a quo não reformou, com plena consciência de sua decisão, o processo seguiu seu trâmite na instância superior. Alguns meses depois, mesmo com o peso da psicografia juntada, o Tribunal, por acórdão registrado, resolveu reformar a decisão de primeiro grau, in verbis:
Temos que dar credibilidade à mensagem de fls. 170, embora na esfera jurídica ainda não mereceu nada igual, em que a própria vítima, após sua morte, vem relatar e fornecer dados ao julgador para sentenciar.
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As provas admissíveis são: oral, colhida através de depoimentos em juízo, a documental e a pericial. São espécies desses gêneros tradicionais as provas gravadas, filmadas, fotografadas e já se pode incluir a prova eletrônica, colhida em computador.
A psicografia é a escrita de um espírito pela mão do médium, segundo o espiritismo, o intermediário entre os vivos e a alma dos mortos ou desencarnados.
Ora, os juízes apreciam a eficácia das provas a eles submetidas, mas não podem estabelecer uma convicção que não lhes tenha sido dada por meio de vias e modos que a lei consagra expressamente. Assim, não pode decidir diante de informações recolhidas pessoalmente, fora das audiências e na ausência das partes [...].
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Pelo exposto, nos termos do parecer da Procuradoria-Geral de Justiça, conheceram do recurso e lhe deram provimento para, reformando a decisão recorrida, pronunciar o acusado José Divino Nunes como incurso nas sanções do art. 121, caput, do Código Penal (2009, p. 91, 92).
Assim, o réu foi submetido a júri popular, instalada pela 1ª Vara Criminal da cidade de Goiânia, ocorrido no dia 02 de junho de 1980. Ocorre que, mesmo o Ministério Público tendo pedido a condenação na segunda fase do rito – judicium causae –, os jurados decidiram, em votação secreta, por seis votos a um, que José Divino é inocente, reconhecendo a mensagem psicografada como da vítima. O promotor até poderia apelar da decisão do Conselho de Sentença, mas reconheceu a soberania dos veredictos, acatando a decisão com humildade. Ocorre que o Procurador-Geral de Justiça do Estado de Goiás, Manoel Nascimento, não aceitando a decisão do Tribunal do Júri, nomeou outro promotor da própria capital para interpor o recurso de apelação. No entanto, o Egrégio Tribunal de Justiça, por unanimidade, negou ao apelo do novo promotor, confirmando a decisão dos jurados, absolvendo, assim, em definitivo, José Divino Nunes, finalizando o processo.
Verifica-se, in casu, que, no primeiro momento da fase inicial do rito, o juiz a quo reconheceu de plano o valor da psicografia como prova jurídica, mas não de forma isolada, e sim com auxílio das demais que corroboraram no entendimento da não culpabilidade do réu. Em grau de recurso, em função da apelação da decisão do Conselho de Sentença, o Tribunal do Estado também reconheceu pela licitude da prova, sob o mesmo contexto, qual seja, a carta psicografada estava em consonância com os demais meios acostados aos autos, tudo para a verdadeira e correta aplicação da justiça.
Há de se destacar que não foi preciso submeter a carta psicografada ao exame grafotécnico, posto que as outras provas foram suficientes para a comprovação do real animus que o agente possuía no momento. E mesmo que fosse submetido, provavelmente, com um grau de certeza quase absoluto, a perícia identificaria que a fonte era da vítima, considerando que os próprios pais reconheceram e confirmaram a assinatura como de Maurício Garcez Henrique, além do que o psicógrafo foi o célebre Chico Xavier, que possui o dom da mediunidade mecânica, na qual sofre influência direta e dependência total dos Espíritos durante a sessão.
4.3.2 Caso Heitor Cavalcanti de Alencar Furtado
O segundo caso abordado no presente trabalho trata-se de um homicídio ocorrido na cidade de Mandaguari, Estado do Paraná, em 22 de outubro de 1982, de grande repercussão, envolvendo o então Deputado Federal Heitor Cavalcante de Alencar Furtado, com 26 anos de idade, ora vítima, e o policial civil, Aparecido Andrade Branco, conhecido por “Branquinho”, autor do fato.
A vítima era filha do Deputado Federal cassado Alencar Furtado, que, em virtude desse episódio político, lançou a candidatura do filho, eleito o mais novo deputado daquela legislatura. Com o fim do mandato eletivo se aproximando, Heitor estava em viagem pelo interior do Estado, na companhia de dois amigos e colaboradores eleitorais, de nomes Dirceu e Fábio, para tentar a reeleição no ano seguinte. Com o decorrer da viagem, por ser muito longa, estavam bastante exaustos e, em função do adiantar da hora, resolveram dormir no interior do veículo a que estavam, estacionado no pátio de um posto de gasolina, localizado às margens da rodovia que liga as cidades de Maringá a Londrina.
Em virtude desse posto de combustível ser alvo de inúmeros assaltos recentes, o policial Aparecido Branco, juntamente com dois companheiros de ofício, faziam a ronda e promoviam a segurança do local, e ao se aproximar do automóvel estacionado por três ocupantes, disparou um único e certeiro tiro, que atingiu o deputado no peito, direto no coração, provocando-lhe morte instantânea, pois acreditava tratar-se de assaltantes. O enterro do parlamentar transformou-se numa das maiores manifestações políticas vistas naquele Estado.
Devidamente denunciado pelo Ministério Público, foi realizada a instrução processual. O Deputado Federal Freitas Nobre, atualmente falecido, líder do PMDB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro) a época, fora ouvido na cidade de Brasília, via carta precatória. Foi conhecedor de uma mensagem recebida e psicografada por Chico Xavier, procedente da vítima, Heitor Cavalcante de Alencar Furtado. Nesse documento, ele reconheceu o disparo da arma que o atingiu como um acidente, uma triste fatalidade. Essa carta foi admitida como autêntica, tanto pela testemunha como pelo pai da vítima, Alencar Furtado, que, inclusive, disse em juízo que esteve pessoalmente com o médium em Uberaba, cidade onde Chico Xavier residia, no Estado de Minas Gerais.
Nessa oportunidade, o juiz responsável pelo processo achou-se sem condições de conduzir o julgamento, por inúmeros fatores, havendo, portanto, a necessidade da presença de outro magistrado de Maringá, doutor Miguel Thomaz Pessoa Filho. O juiz, analisando o caso, pronunciou o réu a júri popular. No dia marcado para a segunda fase do rito, o salão do fórum ficou pequeno para a quantidade de pessoas que ali se encontrava para assistir ao julgamento. O embate na tribuna entre o Ministério Público, os assistentes da acusação e os defensores do acusado foi bastante exaustivo, prolongando-se o rito por cerca de trinta e três horas, após inúmeros tumultos e interferências médicas.
Com a devida autorização judicial, o advogado de defesa, doutor Cylleneo Pessoa Pereira, distribui fotocópias da carta psicografada por Chico Xavier, que muito contribuiu para que o magistrado, no momento da pronúncia, retirasse a qualificadora imputada na denúncia do Ministério Público para homicídio simples. Eis um pequeno trecho da mensagem psicográfica, retirada da obra “Psicografia no Tribunal”:
O que se seguiu sabem todos: os homes armados chegaram com vozes altas. Acordei surpreendido e notei, mais com a intuição do que com a lógica, que os recém-chegados eram pessoas inofensivas, tão inofensivas que um deles tocou a arma sem saber manejá-la. O projétil me alcançou sem meios-termos e, embora o tumulto que se estabeleceu, guardei a convicção de que o tiro não foi intencional. O olhar ansioso daquele companheiro a desejar socorrer-me sem qualquer possibilidade para isso não me enganava.
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Formulo votos aos poderes divinos para que o acontecimento seja assinalado sem qualquer conotação política, de vez que o Fábio e eu repousávamos por alguns momentos ao lado de gente pacífica, mas naturalmente receosa de contato com aventureiros que enxameiam por aí.
Espero que o seu ânimo, pai amigo, prossiga com firmeza para adiante. Vejo-o em companhia de nosso amigo Freitas. Caminhem para a frente contornando as pedras da marcha sem dinamitá-las, enquanto prossigo aqui na direção da frente, rodeando os obstáculos sem a ideia de eliminá-los de vez. O tempo não falha, e o espírito de serviço nunca se engana. Avancemos agora nessas bases de lealdade a nós mesmos, sem desconhecer o espírito de sequência que rege todas as realizações (2009, p. 112, 113, grifo nosso).
No fim dos debates, o Conselho de Sentença reuniu-se na sala secreta, e por cinco votos a dois, decidiu que o tiro disparado contra o Deputado Federal que ceifou a sua vida, feito com a arma portada pelo policial civil, foi acidental, o que possibilitou ao juiz aplicar ao réu, em função da dosimetria, a pena de oito anos e vinte dias de reclusão. O promotor de justiça não se conformando com a sentença, recorreu do veredicto, aduzindo que a decisão contrariava os autos, ao ter como base uma mensagem psicografada, que não tem um sequer valor legal. A defesa, no entanto, em nada se manifestou, e o pedido foi submetido ao Tribunal de Justiça do Estado do Paraná que votou pela manutenção da decisão do Conselho de Sentença, confirmando a pena imposta.
Percebe-se, mais uma vez, que em grau recursal, admitiu-se a mensagem psicografada como meio de prova lícita, o que faz sustentar e enaltecer o argumento que esse tipo de documento tem de ser visto de outra forma, não como uma afronta à Constituição, a qual inadmite apenas aquelas provas obtidas por meios ilícitos, o que não é o caso da matéria analisada no presente trabalho de pesquisa.
4.3.3 Caso Iara Marques Barcelos
O último caso tratado no presente trabalho, e por sinal mais recente na história do Judiciário brasileiro, ocorreu na cidade de Viamão, no Estado do Rio Grande do Sul, no dia 01 de julho de 2003, e julgamento ocorrido em 2006, tendo como sujeitos principais o cartorário Ercy da Silva Cardoso, vítima do ocorrido, Iara Marques Barcelos e Leandro Rocha de Almeida, autores do fato.
Consta nos autos que a corré, 63 anos de idade a época, foi acusada de ser a mandante do homicídio de Ercy Cardoso, 71 anos de idade, com dois tiros na cabeça, com quem conviveu até o ano de 1996, ordenando que o caseiro, o correu Leandro Almeida, executasse o plano ardiloso por ciúmes do cartorário, mediante promessa de recompensa estimada em R$ 20.000,00 (vinte mil reais), dado que mantinha um relacionamento extraconjugal com a vítima, mesmo estando casada. Ambos foram denunciados por homicídio qualificado, insculpido no artigo 121, §2º, incisos I e IV, do Código Penal, processados, e, ao final da primeira fase do rito, pronunciados. Ocorre que a corré interpôs Recurso em Sentido Estrito, pleiteando a separação dos processos, o que foi concedido pelo Tribunal.
No julgamento do caseiro, disse ter sido contratado pela corré para dar um susto no patrão, mas resultou na fatalidade ora descrita. Foi condenado pelo júri popular a 15 anos e 6 meses de reclusão, mesmo tendo voltado atrás em seu depoimento e negado a execução do crime e a autoria de Iara Marques.
Antes da sessão plenária do júri da corré, que se deu em 2006, foram apresentadas duas cartas, assinadas pela vítima, psicografada pelo médium Jorge José Santa Maria, da Sociedade Beneficente Espírita Amor e Luz, sem constar nesse documento a suposta real autoria do crime. Uma tinha como destinatário o marido da corré, amigo da vítima, e a outra a própria acusada. Segue um pequeno trecho de uma das cartas, lida pelo advogado, doutor Lúcio de Constantino, na sessão do Tribunal do Júri, sob os ouvidos atentos da Juíza-Presidente, das partes, do Conselho de Sentença e da plateia que ali se encontrava:
O que mais me pesa é ver a Iara acusada desse feito, por mentes ardilosas como as dos meus algozes. Por isso tenho estado triste e oro diariamente em favor de nossa amiga para que a verdade prevaleça e a paz retorne em nossos corações (2009, p. 122).
A acusação até tentou impugnar o documento, sustentando a tese de prova ilícita, o que de fato é abolido pelo nosso sistema constitucional, e de que a assinatura de Ercy estava com a letra “i”, e não com “y”, mas não foi deferida pelo magistrado essa sustentação do representante do Ministério Público, pois o juiz não verificou por essa óptica, até porque, no documento, a vítima não chegou a atribuir a autoria do delito. E com relação à assinatura, foi explicado que o psicógrafo em questão possuía o dom da mediunidade intuitiva, isto é, tem a função de interpretar a mensagem espiritual, transmitindo-a ao papel de forma mais fiel possível, ao contrário do médium mecânico.
Os jurados, após toda a instrução e debates, tomando conhecimento do conteúdo da carta que inocentava a acusada, e de outras provas juntadas ao processo, absolveram-na por cinco votos a dois. Como de praxe, em decisões dessa natureza, o Ministério Público recorreu da sentença, alegando nulidade após a pronúncia por suspeição de um dos jurados, o mesmo fez o assistente da acusação, sustentando a mesma imparcialidade de um membro do Conselho de Sentença, assim como a ilicitude da prova psicografada.
No julgamento da Apelação sob o nº 70016184012, em 11 de novembro de 2009, sendo relator o Desembargador Manuel José Martinez Lucas, manifestou-se sob o fundamento de que a decisão da Juíza-Presidente do Tribunal do Júri não foi contrária ao texto legal expresso nem à decisão dos jurados, desprovendo, dessa forma, o apelo da acusação. A seguir, parte da decisão do Desembargador-Relator quanto ao recurso interposto pelo assistente da acusação:
[...] fazem-se necessárias algumas considerações em torno da questão da carta psicografada [...] e que foi utilizada pela defesa em plenário de julgamento [...]. A matéria, naturalmente, é interessante, pitoresca e polêmica, mesmo porque refoge ao usual no quotidiano forense, ainda que não seja inédita, e envolve uma provável comunicação com o mundo dos mortos, com reflexos numa decisão judicial.
Desde logo, consigno que não vejo ilicitude no documento psicografado e, consequentemente, em sua utilização como meio de prova, não obstante o entendimento contrário do sempre respeitado Prof. Guilherme de Souza Nucci [...].
Na realidade, o art. 5º, VI, da Constituição Federal dispõe que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.” [...]
Só por isso, tenho que a elaboração de uma carta supostamente ditada por um espírito e grafada por um médium não fere qualquer preceito legal. Pelo contrário, encontra plena guarida na própria Carta Magna, não se podendo incluí-la entre as provas obtidas por meios ilícitos de que trata o art. 5º, LVI, da mesma Lei Maior.
É evidente que a verdade da origem e do conteúdo de uma carta psicografada será apreciada de acordo com a convicção religiosa ou mesmo científica de cada um. Mas jamais tal documento, com a vênia dos que pensam diferentemente, poderá ser tachado de ilegal ou de ilegítimo. [...]
Em outras palavras, não se sabe se, na ausência do documento em questão, o veredicto não teria sido o mesmo, com base nas outras provas produzidas nos autos e nos debates realizados em plenário.
[...] In casu, a participação da apelada na morte da vítima, como mandante e patrocinadora dessa empreitada criminosa, é relatada pelo co-réu Leandro da Rocha Almeida, [...] narrando que a ré Iara lhe teria prometido a importância de R$ 20.000,00 para dar um corretivo na vítima [...]. Posteriormente, em juízo, Leandro mantém a acusação contra Iara, mas nega a prática do crime [...]. Por fim, em plenário de julgamento, Leandro nega tudo, inclusive qualquer participação da ré Iara no fato descrito na denúncia. [...] a verdade é que não se pode considerar tão inconstantes declarações como prova cabal de que a acusada encomendou a morte da vítima. [...]
Em resumo, ainda que existam nos autos elementos que embasam a acusação contra a apelada e que podem constituir uma versão contra ela, não há como deixar de reconhecer que tais elementos são frágeis e se contrapõem a outros tantos elementos que consubstanciam uma outra versão, esta inteiramente favorável à acusada.
Em face do exposto, NÃO CONHEÇO do apelo do assistente da acusação [...] e NEGO PROVIMENTO ao mesmo apelo baseado nas alíneas “b? e “d? daquele dispositivo
(TJRS, Apelação crime n. 70016184012. 1.ª Câmara Criminal, rel. Des. Manuel José Martinez Lucas, 11.11.2009, grifos nossos).
Portanto, com o não conhecimento e não provimento do recurso interposto pela apelação, voltou a valer a decisão do júri popular, que absolveu Iara Marques por cinco votos a dois. O Ministério Público ainda chegou a interpor Recurso Especial e Recurso Extraordinário, em 10 de março de 2010, que foram negados, e, em virtude disso, interpôs Recurso de Agravo de Instrumento em Recurso Especial, sob o nº 70036780591, e Agravo de Instrumento em Recurso Extraordinário, de nº 70036780575, que, atualmente, pendem de julgamento pelos Tribunais Superiores. Foi o processo que teve envolvimento de carta psicografada que está a mais tempo tramitando no Poder Judiciário a espera de uma decisão final, devido a quantidade de recursos que já foram interpostos.
Imperioso ressaltar com relação à mensagem que resultou no documento psicografado pelo médium e acostado aos autos pelo advogado da acusada, o defensor, assim, se posicionou, in fine:
Para quem desconhece, a carta psicografada consiste na escrita feita, em estado de inconsciência ou semiconsciência, por alguém dotado de determinada capacidade espiritual e que recebe mensagem enviada por outro já falecido. Tal poder, exercido pelo médium, revela-se em uma escrita automática e que não se confunde com telepatia (comunicação entre duas mentes vivas), nem com a clarividência (percepção extrassensorial).
De qualquer modo, como o tema é apaixonante, a controvérsia tomou lugar sobre a aceitabilidade em si, da carta, em um processo criminal. Os que não a admitem se firmam, entre outros, no aspecto de que a lei estabelece que a morte extingue a personalidade humana; a psicografia é Religião, e o Judiciário não é religioso; e não haveria forma de se usufruir de ampla defesa e do contraditório (2009, p.124, 125).
Mesmo sob o peso de tais questionamentos desfavoráveis sobre a admissibilidade desse documento como prova lícita, o eminente defensor as rebateu:
[...] a lei sequer traz previsão legal contra a carta. [...] muito embora o artigo 6º do Código Civil estabeleça que a morte é causa extintiva da personalidade humana (quando o sujeito não pode mais ser titular de direitos e obrigações), é indiscutível que esta disposição se revela como uma ficção jurídica e não realidade fática. Já com relação à religiosidade, frise-se que a carta psicografada não se confunde com Religião. Trata-se, sim, de uma consequência da espiritualidade que qualquer humano carrega consigo. Ora, o nosso Estado se funda na laicidade, não pertence a uma ordem religiosa, mas admite a espiritualidade, como se vê do preâmbulo da Constituição Federal.
.......
E mais: a psicografia não viola as garantias constitucionais do contraditório ou da ampla defesa. Veja-se que a carta pode até ser refutada, já que é passível de exames grafotécnicos ou de confrontação de conteúdo (2009, p. 125, 126).
Analisando-se o caso em comento, verifica-se que em plenário, houve, positivamente, a aceitabilidade do documento mediúnico como prova lícita, mas não se pode inferir desse raciocínio que os jurados se valeram dessa questão para absolver a ré, tendo em vista que agem por íntima convicção, o que afasta a motivação de suas decisões. E mesmo que tenham decidido com base na mensagem psicográfica, as demais provas carreadas aos autos levariam à absolvição, o que demonstra que não foi analisada per si, mas em conjunto com as demais.
Em suma, com a decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, formou-se uma forte jurisprudência acerca da admissibilidade da psicografia em Tribunais do Júri, pugnando-se pela licitude e legitimidade desse tipo de prova, embora, como frisado anteriormente, a decisão do Conselho de Sentença não precise de motivação. Todavia, há de se perceber que a temática ainda será objeto de bastante discussão nos tribunais, pelo menos até o julgamento dos Agravos de Instrumentos em Recursos Especial e Extraordinário, para que se possa consolidar um entendimento adequado a que o tema faz jus.
4.4 PROJETOS DE LEI PARA A ALTERAÇÃO DO TEXTO LEGAL
Havia em trâmite em nosso sistema legislativo, alguns projetos de lei que tratavam do tema abordado no presente trabalho de pesquisa. Sabe-se que o Código de Processo Penal, diploma legal instituído pelo Decreto-Lei nº 3.869 de 03 de outubro de 1941, estabelece os procedimentos formais aos assuntos pertinentes ao crime. Está insculpido, precisamente, no Capítulo IX do referido diploma, o acervo referente à modalidade de documentação, como foi tratado no capítulo 02, seção 2.3, subseção 2.3.1. Destacou-se, naquele momento, o teor do artigo 232 da Lei Adjetiva Penal, objeto da alteração proposta que estava em tramitação na Câmara dos Deputados Federais.
Se aprovada tal proposta, sob a numeração PL nº 1.705/2007, apresentada pelo professor de teologia, bispo evangélico e deputado federal pelo Distrito Federal, Robson Lemos Rodovalho, passaria o caput do referido dispositivo legal a ter a seguinte redação: “Art. 232 – Consideram-se documentos quaisquer escritos, instrumentos ou papéis, públicos ou particulares, exceto os resultantes de psicografia” (grifo nosso).
O ilustríssimo deputado justificou seu projeto de lei aduzindo que todo objeto que tenha um certo valor probante deve estar intrínseca e concretamente relacionado aos fatos controversos, tendo em vista que alguns julgamentos a época adquiriram tamanha notoriedade pelo fato dos réus serem absolvidos ou condenados com fundamento em teor de documento psicografado, provocando grande inquietação em função de sua validade ou não pela comunidade jurídica. Assim, extrai-se parte da justificativa do respectivo projeto de lei, ipsis litteris:
Pergunta-se então: pode-se afirmar que os espíritos desencarnados têm os atributos divinos da onipresença, onisciência e onipotência? Não existindo tais tributos, pode-se acreditar nos relatos de um espírito? Há como se garantir que a pessoa que afirma receber um espírito estará dizendo a verdade? Não havendo a possibilidade de responder às variadas perguntas, o juiz poderá absolver o réu em razão do princípio in dubio pro reo, decidindo, pois, na dúvida, a favor do réu? A respeito de tudo isso, sobressai, no campo científico, a majoritária opinião no sentido de não ser possível contato com quem não participa do mundo físico (PL nº 1.705/2007, grifo do autor).
Argumentou, ainda, que não se deve admitir que os litigantes fiquem sujeitos a provas que não tem como ser contraditadas, ou seja, não passaram pelo crivo do contraditório de forma concreta, ficando o magistrado adstrito em sua fé religiosa.
Nessa mesma esteira de alteração legislativa, o deputado federal Costa Ferreira, entendendo que a proposta deveria ser melhorada, decidiu oferecer, também, um projeto de lei sob a numeração PL nº 3.314/2008, cujo trâmite estaria em conjunto com a proposta inicial do PL nº 1.705/2007, no entanto, mantendo o caput do art. 232 do CPP na sua originalidade, acrescentando um segundo parágrafo, com o seguinte teor: “§ 2º - Não se considera documento o texto psicografado” (grifo nosso).
O deputado justificou seu projeto, utilizando-se dos mesmos argumentos outrora esposados pelo parlamentar Robson Lemos Rodovalho, demonstrando que o texto advindo da psicografia não teria o condão de ser submetido ao contraditório, não tendo, dessa forma, como ver obedecido o due process of law.
Foi indicado como relator do Projeto de Lei do deputado Robson Rodovalho na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania o deputado federal do Espírito Santo, Neucimar Ferreira Fraga, que sintetizou sua posição e deu seu voto, in fine:
Com relação à técnica legislativa, a proposição está perfeita, pois atende os preceitos da Lei Complementar nº 95/1998, que dispõe sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis. O pressuposto da juridicidade também está alcançado pela proposição. Quanto ao mérito, entendemos que a presente reforma legislativa deve prosperar. Recentemente ocorreu um caso em que um material psicografado foi levado à discussão e apreciação no plenário do júri, no Estado do Rio Grande do Sul. Tal fato macula os princípios constitucionais que norteiam o ordenamento jurídico pátrio [...] (Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania).
Expôs, ainda, em seu voto que, primeiramente, o Estado brasileiro é laico, devendo, portanto, os Poderes da República serem exercidos separadamente dos preceitos religiosos. Outro argumento é que a prova processual oriunda de psicografia afronta, cabalmente, o dispositivo insculpido no art. 5º, inciso IV, da Carta Magna, que permite a manifestação do pensamento, vedando-se o anonimato. E, por fim, que o material resultante de psicografia não admite contraditório, sendo uma prova adquirida arbitrariamente, não se adequando ao princípio do devido processo legal, concluindo, assim, seu voto pela constitucionalidade, juridicidade, e boa técnica legislativa, e, no mérito, pela aprovação do Projeto de Lei nº 1.705/2007.
Não obstante ao entendimento e voto do ilustre relator, imperioso destacar a posição do deputado federal e delegado de polícia federal pelo Rio de Janeiro, Marcelo Zaturansky Nogueira Itagiba, apresentando seu voto em separado, na mesma Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania. Declara o deputado, em seu voto, que presentes estão os requisitos da competência constitucional e legitimidade para proposta de alteração legal, todavia, materialmente, ao contrário dos posicionamentos do autor e relator do projeto, a proposta fere substancialmente os preceitos constitucionais.
O parlamentar explica que o projeto de lei quando coloca que o juiz fica preso exclusivamente em sua fé religiosa, ao valorar a admissibilidade do documento apenas por ser psicografado, incorre em injuridicidade, porque, de certa forma, está tolhendo o exercício da livre apreciação das provas pelo magistrado, o que vai muito além de seus dogmas religiosos, além de inconstitucional, por restringir a liberdade de pensamento e de credo.
Não há falar em arbitrariedade da prova obtida por psicografia, muito menos de não proporcionar a ampla defesa e o contraditório no processo, que por sinal serão desrespeitados – os princípios – caso haja a aprovação do referido projeto. Assim, consigna-se parte do voto do deputado:
[...] Os princípios decorrentes do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, previstos no inciso LV do art. 5º da Carta Maior, os quais podem ser expressos sob a fórmula da “informação necessária + reação possível”, parecem igualmente arranhados. Isso porque deles se extraem o exercício dos meios e recursos inerentes à ampla defesa: ter conhecimento claro da imputação, poder apresentar alegações contra a acusação; poder acompanhar a prova produzida e fazer a contraprova; e poder recorrer da decisão desfavorável (Constituição de Comissão e Justiça e de Cidadania).
Vale ressaltar o ponto de vista técnico do advogado, professor, administrador de empresas e deputado federal de São Paulo, Régis Fernando de Oliveira, que também deu seu voto em separado ao PL nº 1.705/2007, como fez o deputado anterior, na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania. Entende o parlamentar e jurista que a matéria em xeque não fere o nosso ordenamento jurídico só por violar os dispositivos constitucionais, mas também por reduzir o livre convencimento do juiz em valorar as provas carreadas aos autos, especificamente na admissibilidade do documento psicografado, já que esse princípio é um dos pilares da ordenança constitucional, na qual revela e reforça com magnitude a autoridade do magistrado. Assim, ao final, votou pela inconstitucionalidade, injuridicidade e boa técnica legislativa, e, no mérito, pela total rejeição da matéria.
Após a manifestação dos votos em separado dos deputados federais anteriores, verificou-se que a o entendimento não era tão pacífico assim e que o relator original não estava se manifestando adequadamente na medida em que o projeto voltava a sua mesa, então foi nomeado como novo relator o deputado Antonio Carlos Biscaia, que deu seu voto em 14 de abril de 2009, votando pela constitucionalidade, injuridicidade, boa técnica legislativa e pela rejeição total da matéria, no que tange ao mérito, tanto do PL nº 1.705/2007 quanto do PL nº 3.314/2008, apesar de, mesmo assim, não considerar o documento psicografado como prova jurídica, pois acredita na sua correlação com dogmas religiosos. De toda a sorte, os referidos projetos de lei foram arquivados nos termos do artigo 105 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, publicado em 01 de fevereiro de 2011.
Em suma, percebe-se com o referido arquivamento que a Mesa Diretora da Câmara dos Deputados decidiu, por enquanto, manter as coisas como se encontram, ou seja, sem alterar a legislação processual penal vigente no que se refere a matéria em comento, cabendo, exclusivamente, ao magistrado, no caso concreto, valorar a admissibilidade desse tipo de prova no seu livre convencimento motivado, e aos jurados, por ocasião do júri popular, por íntima convicção.
Destaca-se que, apesar de toda essa discussão legislativa acerca da reforma parcial do artigo retro do Código de Processo Penal, no Estado de Pernambuco, por ocasião da implantação da Constituição do Estado, em 1989, gerou perspectivas acerca do tema em voga; isso porque o artigo 174 da respectiva Constituição Estadual assegura assistência à pessoa dotada de aptidão paranormal, consagrando esse Estado-membro como o precursor em tal reconhecimento. Eis o teor do artigo, ipsis litteris:
Art. 174. O Estado e os Municípios, diretamente ou através de auxílio de entidades privadas de caráter assistencial, regularmente constituídas, em funcionamento e sem fins lucrativos, prestarão assistência aos necessitados, ao menor abandonado ou desvalido, ao superdotado, ao paranormal e à velhice desamparada (grifo nosso).
Vislumbra-se, portanto, que o tema tratado nesse trabalho de conclusão de curso é bem polêmico, pelo fato de mobilizar grande parte das autoridades a discutir sobre a questão, seja em faculdades, nos tribunais ou nas sessões legislativas com projetos de lei, tudo para um saudável debate jurídico. Isso é o Direito.