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As modernas teorias do delito e suas receptividades no Direito Penal brasileiro.

Desafios da dogmática acerca dos rumos da Ciência Penal

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09/11/2012 às 15:38
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IV – A Teoria Finalista do Delito

O finalismo surge no contexto da II Guerra Mundial, em um ambiente de positivismo jurídico, pregando a busca de princípios e valores que devem ser independentes da vontade estatal e que se tem de fazer-lhes oposição. Critica-se o subjetivismo metodológico e o relativismo axiológico do neokantismo. 

Essa teoria surge com WELZEL na Alemanha da década de 1930 e é posteriormente desenvolvida por KAUFMANN, STRATENWERTH, HIRSCH, NIESE, BUSCH e MAURACH, ganhando força no pós-guerra, justamente pela necessidade de estabelecer limites ao poder estatal que impedissem a repetição dos excessos do III Reich. Representou, então, um verdadeiro rompimento com o Direito Penal nazista.

O critério valorativo fundamental do respeito à dignidade humana, como um princípio de justiça imanente ao Direito e de validade a priori, constituem o elemento essencial e último do Finalismo. Da concepção do homem como pessoa, capaz de agir como ser livre e responsável, exsurge a necessária vinculação do Direito ao conceito finalista de ação, na medida em que as normas só podem mandar ou proibir uma conduta final. O legislador tem a liberdade de eleger e selecionar os comportamentos passíveis de punição, mas não pode alterar a estrutura finalista da ação ou a autodeterminação do homem conforme a um sentido.

A ação humana passa a ser o conceito central da teoria do delito, do ponto de vista ontológico (Ontologismo). 

O método da Teoria Finalista é ontológico (conceitual), ou seja, todas as categorias do delito são referidas a conceitos pré-jurídicos, obtidas por mera dedução, confiando-se na lógica intrínseca do objeto que se vai regular[25]. Essa doutrina não é pura e unicamente metodológica, pois não deixa de considerar o aspecto axiológico e normativo.

Para a Teoria Final da Ação, a vontade não pode ser separada de seu conteúdo, isto é, de sua finalidade, eis que toda conduta humana deve ser voluntária e toda vontade deve ter um fim[26]. A ação é de natureza finalística, ou melhor dizendo, é a ação naturalística do homem dirigida a uma finalidade.

Logo, a ação humana se difere dos acontecimentos puramente naturais, pois é sempre dirigida a um fim. Não é simples série de causas e efeitos. Quando a realiza, o homem pensa em um fim, escolhe os meios necessários para atingi-lo, prevê as consequências de sua vontade e dirige sua vontade de acordo com essa previsão. Domina o fato pelo conhecimento das causas e transforma-o em uma ação dirigida a um fim[27].

Para o finalismo, o indivíduo orienta-se pela realização de um resultado material, abrangendo, inclusive, os meios necessários para atingi-lo, assim como as consequências secundárias indispensáveis.

Segundo Welzel, a conduta humana é orientada sempre por um propósito, um objetivo: a ação humana não é apenas uma mera causa objetiva para um dado resultado, mas sim determina esse resultado; ela contém assim, um elemento subjetivo, isto é, o apetite, o desejo, o conhecimento, etc., de que o ato causal produzirá um resultado determinado. Nesse sentido, a ação final possui "visão", mas a ação causal é "cega" [28].

O Dolo é retirado da culpabilidade e incluído na estrutura conceitual da ação. Passa a ser visto como a consciência e a vontade do fato. Na culpabilidade afere-se apenas a consciência da ilicitude e a reprovabilidade que resulta para o agente haver agido de maneira contrária ao direito, quando lhe era possível proceder em conformidade com a ordem jurídica.

Elimina-se a separação dos aspectos objetivos e subjetivos da ação e do próprio injusto. Transforma-se o injusto naturalístico em injusto pessoal, formado pelo desvalor da ação e do resultado.

Crítica severa direcionada à Teoria Final da Ação é de que o ontologismo finalista parte de um objetivismo essencialista, que desconhece que os conceitos que temos não são puros reflexos necessários da realidade, mas construções humanas baseadas em um consenso social contingente.

Nesse sentido, alguns dos maiores críticos do conceito finalístico foram os adeptos da Teoria Social da Ação, fundada por EB. SCHMIDT, segundo a qual ao Direito Penal interessaria somente o sentido social da ação. O conceito final de ação determina o sentido da ação de forma unilateral em função da vontade individual. Para MAURACH, uma ação em sentido jurídico-penal é uma conduta humana socialmente relevante, dominada ou dominável por uma vontade final e dirigida a um resultado. JESCHECK e WESSELS incorporaram elementos sociais e finais nas suas teorias de ação. A teoria social da ação surgiu com o escopo de corrigir certos lapsos da teoria finalista. Para aquela corrente, o controle de conduta não se esgota na causalidade, e tampouco deve ser determinado individualmente, mas, pelo contrário, de modo objetivo-generalizante, isto é, no âmbito do injusto, as divergências com relação ao padrão estabelecido como objetivo e generalizante tornam-se assunto interno.[29]

Apesar de existirem divergências internas entre os adeptos da teoria social, é possível declinar um conceito mínimo comum de ação, como sendo o comportamento humano socialmente relevante, dominado ou dominável pela vontade[30].

A mais importante crítica direcionada a essa teoria volta-se à indeterminação conceitual daquilo que é socialmente relevante. A utilização de tal expressão amplia demasiadamente o conceito de ação, o que é indesejado para a aferição da conduta jurídico-penalmente relevante.

Uma das grandes alterações da estrutura do delito que surge com o Finalismo foi o deslocamento do dolo e da culpa ao tipo penal, compondo o que se passou a denominar de “tipo complexo”. Desta feita, se houver uma ação, desprovida de dolo ou culpa, o fato será considerado atípico[31].

O dolo passa a ser natural, representando a consciência e a vontade de realizar a conduta e a consciência da ilicitude passa para a análise da culpabilidade.

A conduta humana componente do fato típico precisa estar agregada de elemento subjetivo, consistente no dolo ou na culpa. Caso contrário, seria permitida a responsabilidade penal objetiva, ou seja, punição penal pela mera causação de resultado (ação ou omissão ligada ao resultado pelo nexo de causalidade). Desse modo, imprescindível a existência do tipo subjetivo para a configuração da infração penal.

É crucial advertir, contudo, que a culpa não pertence ao tipo subjetivo. Na realidade, ela configura um elemento normativo do tipo.

A culpa – infração a uma norma de cuidado – é elemento normativo (face normativa aberta) do tipo, não pertencendo a um tipo subjetivo, nem sendo elemento normativo do tipo doloso. Não há, no delito culposo, a bipartição do tipo em tipo objetivo e subjetivo. A culpa, tem, portanto, estrutura complexa, que compreende a inobservância do cuidado objetivamente devido (elemento do tipo de injusto culposo) e também a previsão ou a capacidade do agente prever o resultado (culpa consciente e inconsciente). Na culpa consciente o conhecimento ou possibilidade de conhecer qual o cuidado objetivamente devido – exigibilidade de sua observância –, isto é, o assim chamado aspecto ‘subjetivo’ da culpa, se encontra alocado na culpabilidade.[32]

São conhecidas, tradicionalmente, três formas de violação do dever de cuidado objetivo: a imperícia (afoiteza), a negligência (ausência de precaução) e a imprudência (falta de aptidão técnica para o exercício de profissão, arte ou ofício). Além disso, existem duas espécies de culpa: a culpa consciente (conduta voluntária que realiza fato ilícito não querido ou não aceito pelo agente, mas que foi por ele previsto) e a culpa inconsciente (conduta voluntária que realiza fato ilícito não querido ou não aceito pelo agente, mas que lhe era previsível).

Ocorre que, nos crimes culposos, o resultado se produz de forma puramente causal, não sendo abrangido pela vontade do autor. No fato culposo, não há ação dirigida ao fim punível. É que o fim pretendido pelo agente geralmente é irrelevante penalmente, mas não os meios escolhidos ou a forma de sua utilização[33]. Isso o Finalismo não conseguia explicar de uma maneira razoável.

WELZEL responde às críticas, dizendo que na culpa existiria uma “finalidade potencial”, na qual o resultado seria evitável mediante uma ação dirigida a um fim.

Na ilicitude, o centro do injusto passa a ser a finalidade do crime. Se a ação humana é o exercício de atividade final, e não puramente causal, a finalidade (caráter final da ação) baseia-se em que o homem, graças a seu saber causal, pode prever, dentro de certos limites, as consequências possíveis de sua conduta, de modo a dirigir seus atos de tal forma que oriente o acontecer causal exterior a um fim.

A atividade final é uma atividade dirigida conscientemente em função do fim. A finalidade baseia-se na capacidade de prever, dentro de certos limites, as consequentes da intervenção no curso causal e dirigi-lo conforme um plano à consecução de um determinado fim.

Por isso, uma conduta não finalista (força irresistível, movimentos reflexos e estados de inconsciência) não será jurídico-penalmente considerada como uma conduta humana (função limitadora) para o Finalismo.

Na seara da culpabilidade, remanesceram apenas aquelas circunstâncias que condicionavam a reprovabilidade da conduta contrária ao Direito. A culpabilidade é puramente normativa[34], porque o objeto da reprovação (o desvalor da ação) agora se situa no injusto (ilícito-típico)[35].

Assim, ocorre um esvaziamento de todos os elementos subjetivos que integravam a culpabilidade, que passa a ser definida como um juízo de reprovação que recai sobre o agente do fato típico e ilícito, excluindo-se, portanto, todos os aspectos subjetivos.

A culpabilidade é composta por “imputabilidade”, “potencial consciência da ilicitude” e “exigibilidade de conduta diversa”.

Sendo assim, o Finalismo deu um grande passo rumo a uma concepção do delito mais isenta de interferências estatais, onde a finalidade da ação humana é o principal foco de estudo e estrutura todos os demais elementos do delito. Ainda hoje, esta é a teoria com maior aceitação no âmbito do sistema jurídico romano-germânico (civil law).


V – A Teoria Funcionalista ou Pós-finalista do Delito

No âmbito sociológico, o Funcionalismo consubstancia-se na perspectiva utilizada para analisar a sociedade e seus componentes característicos enfocando sua mútua integração e interconexão, com o objetivo de reduzir a complexidade inerente a todo e qualquer sistema social.

O Funcionalismo analisa o caminho que o processo social e os arranjos institucionais contribuem para a efetiva manutenção da estabilidade da sociedade, colaborando para sua reprodução. A ideia primordial é explicar os mais variados aspectos da sociedade com base nas funções realizadas pelas instituições que nela operam e por seus mais variados segmentos.

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As teorias funcionalistas do delito baseiam-se ora no funcionalismo estrutural de PARSONS, ora no funcionalismo sistêmico de LUHMANN.

Essas construções sistematizam o crime a partir de funções determinadas à pena, representando um retorno ao idealismo neokantiano, como consequência da construção conceitual quanto aos fins do direito penal[36]. Admitem, ainda, a possibilidade de a dogmática jurídico-penal ser orientada por critérios teleológicos de política criminal.

Com base nesses postulados fundamentais, desenvolveram-se correntes funcionalistas bastante delimitadas e, em certos aspectos, diametralmente opostas, com o intuito de dar novas luzes à Teoria do Delito. Na atualidade, as linhas funcionalistas de maior relevo são o Funcionalismo Teleológico-Racional (Dualista), capitaneado por CLAUS ROXIN, e o Funcionalismo Sistêmico (Monista), desenvolvido por GÜNTHER JAKOBS.

A) O Funcionalismo Dualista ou Teleológico-Racional

Nesta vertente Funcionalista[37] desenvolvida por ROXIN,a culpabilidade deixa de ser substrato do conceito de crime para se tornar o limite da pena. O conceito de delito, no entanto, continua tripartido. A culpabilidade é substituída pela “responsabilidade”, composta de “imputabilidade”, “potencial consciência da ilicitude”, “exigibilidade de conduta diversa” e “necessidade da pena”. A conduta, por sua vez, é definida como comportamento humano orientado pelo princípio da intervenção mínima, causador de relevante e intolerável lesão ao bem jurídico tutelado, permanecendo dolo e culpa no fato típico[38].

Na crítica de ROXIN (1962), o conceito final de ação se baseava em uma ótima ontologista inadequada às necessidades do Direito Penal e ao caráter normativo dos elementos do conceito de crime. Nesse sentido, o normativismo de ROXIN se contrapõe ao ontologismo de WELZEL.

A dogmática deixa de ser vinculada a exigências ontológicas, e passa a ser baseada em decisões político-criminais[39]. A preocupação aqui é com os fins do próprio Direito Penal:

De todo o exposto, fica claro que o caminho correto só pode deixar as decisões valorativas político-criminais introduzirem-se no sistema do direito penal, de tal forma que a fundamentação legal, a clareza e previsibilidade, as interações harmônicas e as consequências detalhadas deste sistema não fiquem a dever nada à versão formal-positivista da proveniência lisztiana. Submissão ao direito e adequação a fins político-criminais não podem contradizer-se, mas devem ser unidas numa síntese, da mesma forma que o Estado de Direito e Estado Social não são opostos inconciliáveis, mas compõem-se de uma unidade dialética: uma ordem jurídica sem justiça social não é um Estado de Direito material, e tampouco pode utilizar-se da denominação Estado Social um Estado planejador e providencialista que não acolha as garantias de liberdade do Estado de Direito.[40]

Para ROXIN, é melhor uma decisão justa para cada caso concreto do que uma decisão tecnicamente perfeita[41].  Não basta que haja a subsunção da conduta à letra da lei, mas é necessária que haja uma efetiva lesão ou perigo concreto de lesão ao bem jurídico protegido e que esta conduta caracterize um risco proibido.

O Direito Penal é muito mais a forma, através da qual as finalidades político-criminais podem ser transferidas para o modo da vigência jurídica. Se a teoria do delito for construída neste sentido, teleologicamente, cairão por terra todas as críticas que se dirigem contra a dogmática abstrata-conceitual, herdada dos tempos positivistas. Um divórcio entre construção dogmática e acertos político-criminais, é de plano impossível, e também o tão querido procedimento de jogar o trabalho dogmático-penal e o criminológico um contra o outro perde o seu sentido: pois transformar conhecimentos criminológicos em exigências político-criminais, estas em regras jurídicas, da lex lata ou ferenda, é um processo em cada uma de suas etapas, necessário e importante para a obtenção do socialmente correto.[42]

Obviamente, é possível que as decisões político-criminais do legislador nem sempre respeitem as garantias fundamentais do Direito Penal em um Estado Democrático de Direito. A política criminal depende de cada modelo de Estado. Por isso, as críticas comumente direcionadas a esta corrente, já que a ciência do direito penal não pode presumir que todas as decisões político-criminais são adequadas e orientadas pelos direitos humanos e pelas liberdades invioláveis.

No Funcionalismo Dualista, as penas e as medidas de segurança possuem a função de proteger bens jurídicos, mediante a prevenção de delitos. O Direito Penal está sujeito a limites materiais empíricos, de fora do sistema penal.

ROXIN preconiza que um sistema penal orientado por princípios de política criminal converteria a construção da dogmática penal fora do plano filosófico, para as reais necessidades sociais. O Direito penal não mais poderia permanecer estático, através de valores imutáveis. Pelo contrário, sua literatura estaria marcada pela reformulação do mesmo, através da aproximação as necessidades sociais. Assim, a Ciência penal haveria de indicar quais seriam os valores inseridos na sociedade que poderiam servir de referência para o Direito penal como forma de reestruturação das categorias da teoria geral do delito.

Para ROXIN, não é possível extrair de dados pré-jurídicos soluções para problemas jurídicos,de modo que a teoria do delito tem de ser construída sobre fundamentos normativos, referidos aos fins da pena e aos fins do direito penal, isto é, a política criminal[43].

Cria-se a Teoria Pessoal da Ação, na qual a ação é vista como manifestação de personalidade. Excluem-se, então, todos os fenômenos somáticos-corporais insuscetíveis de controle do ego e, portanto, não-dominados ou não-domináveis pela vontade humana[44]

A finalidade é complementada por critérios de imputação objetiva, onde o que importa saber é se o autor assumiu a realização de um risco permitido.

O dolo é visto como um conceito normativo. Unifica-se a tipicidade e a antijuridicidade sob o conceito de “injusto” (recusa à ideia de tipos abertos).[45]A imputação de um injusto completo depende de que a conduta proibida aumente o risco de produção do resultado, se comparada com a conduta hipotética conforme ao direito,e que o resultado produzido se encontre compreendido no chamado fim de proteção da norma,do qual ROXIN, depois, destacou algumas situações que posicionou num plano por ele denominado de alcance do tipo, em especial as das chamadas “autocolo­cações em perigo responsáveis” e “heterocolocações em perigo consentidas”, ou seja, casos em que um comportamento de vítimas ou terceiros pode excluir a imputação do resultado ao autor. Eis a Teoria da Imputação Objetiva do resultado.

Outra ideia fundamental de ROXIN é a de que o terceiro plano da teoria do delito, a culpabilidade, tem de ser reconstruído com base na teoria dos fins da pena.

A impossibilidade de se constatar ontologicamente a liberdade do sujeito; a indemonstrabilidade do "poder-agir-de-outro-modo" (exigibilidade de conduta diversa) comprovam que o conceito tradicional de culpabilidade é sustentado por premissas que não se podem comprovar[46].

A culpabilidade para ROXIN é limite da pena, e não um elemento do crime. Um princípio limitativo da responsabilidade penal. A tese que o professor alemão defende considera que o conceito de culpabilidade como fundamento da pena não pode mais existir, devendo o conceito de culpabilidade servir como mero limitador da repressão penal, que deve sempre ter por fundamento a prevenção.

ROXIN propõe um conceito de culpabilidade não mais apoiado no frágil fundamento do livre-arbítrio, da liberdade de agir ontológica, de indemonstrável comprovação, mas sim dotado de critérios de exigência político-criminais que devem permear a elaboração da dogmática penal.

Se a pena não se justifica por exigências de retribuição, mas essas só marcam o limite máximo, do qual a pena, que é fundamentada por razões de prevenção, não pode passar, aquilo que tradicionalmente se entende por cul­pabilidade – e que ROXIN precisa, sem se posicionar na discussão sobre o livre-arbítrio, como a capacidade para ser destinatário de normas– não pode ser uma condição suficiente para punir.

É preciso que, além dela, estejam presentes necessidades de prevenção geral e especial, com o que ROXIN propõe uma expansão do terceiro nível de valoração da teoria do delito, que passa a integrar, além da culpabilidade, necessidades de prevenção, e que por isso é rebatizado de “responsabilidade” (Verantwortlichkeit).

Com base nessa reconstrução fun­cional, ROXIN revisita as diversas causas de exculpação e de exclusão da cul­pabilidade e tenta entendê-las não apenas como casos em que falta a capaci­dade de ser motivado por uma norma. O decisivo nesses casos seria, no mais das vezes, que a punição é preventivamente contraindicada[47].

As excludentes supralegais de culpabilidade teriam por fundamento não mais a impossibilidade de poder agir conforme os ditames da norma, mas sim a desnecessidade de prevenção.

Ao reconhecer a impossibilidade de comprovação do livre arbítrio, tal doutrina possui o defeito de reconhecer uma função legitimadora da intervenção estatal na liberdade do indivíduo, quando, em verdade, a função real (e não a do discurso simbólico do direito) do sistema penal não passa a de ser a manutenção de um sistema de poder despreocupado com a realidade de desigualdade social.

A Política Criminal passa a definir o conteúdo do delito no Funcionalismo Teleológico-racional. Ao passo que isso possibilita uma orientação voltada à integração constitucional de direitos fundamentais, também dá novo azo ao arbítrio estatal, com a adoção de medidas invasivas. O domínio do fato como critério de imputação objetiva, o Princípio da Intervenção Mínima como norteador do conceito de “ação” e a culpabilidade como limite da pena consolidam a ideia da subsidiariedade e da individualização da sanção penal. O grau de ofensa ao bem jurídico determina até que ponto há legitimidade na intervenção punitiva, reafirmando o Direito Penal como ultima ratiode controle dos fatos sociais. Não por outros motivos, a teoria adquiriu grande notoriedade e rápida receptividade de diversos penalistas europeus e latino-americanos.

B) O Funcionalismo Monista ou Sistêmico:

A Teoria Funcionalista-radical ou sistêmica, cujo grande precursor é GÜNTHER JAKOBS (1983), discípulo pessoal de WELZEL, constitui-se em uma concepção normativista distinta da de ROXIN para a Teoria do Delito, trazendo de volta a culpabilidade para o conceito analítico de crime e afastando a “responsabilidade”. A conduta é provocação de um resultado evitável, violador do sistema, frustrando a expectativa normativa. Segundo o funcionalismo-sistêmico, dolo e culpa compõem o fato típico[48].

Baseado no modelo filosófico normativista, JAKOBS associa-se às concepções de LUHMANN de que o Direito é o instrumento que serve para a estabilização social. Distinto do abstratismo determinado pelo positivismo de que a norma estaria edificada em conteúdo valorativo, a teoria sistêmica trata a questão não como um ponto crucial, mas como uma consequência da própria norma.

Partindo da premissa de que o mundo está delimitado pelas relações humanas (grau de comunicação entre os indivíduos), a tese de JAKOBS fundamenta-se na impossibilidade de construir determinado ordenamento jurídico sem o reconhecimento desse processo interno social.

Na concepção do funcionalismo sistêmico, Direito Penal e o contexto social são noções indissociáveis. Excluem-se considerações empíricas não normativas de valorações externas ao sistema jurídico-positivo.

A sociedade está estremada pelo alto grau de complexidade entre as relações humanas, pois existem sistemas sociais solidificados em desníveis culturais e políticos. O perfilar individual é praticamente impossível como fonte fomentadora do Direito penal. O reconhecimento do valor humano está intimamente determinado pelo grau de ordem política e social, levando o Estado, obrigatoriamente, através de valores, a dignificar o cidadão no desenvolvimento de sua personalidade. Assim, nesta junção entre indivíduo e Estado, como admissibilidade de formação do cidadão, está o referencial de liberdade. O atuar define-se com a própria liberdade, a qual só perderá sua essência social quando não respeitar os valores de relação entre cidadãos (violação de expectativas sociais e normativas).

Em outras palavras, o Direito Penal não se sujeita a limites externos: é um sistema normativo fechado, auto-referente (autopoiético).

A suposta garantia individual instituída pela ponderação jurídica vai ao encontro da subjetividade individual como o centro do sistema social, o que, segundo a teoria sistêmica, permite uma maior expansão no consenso de valorações éticas. Tal indicativo renova o paradigma abstrato (despersonalização) para um sistema de expectativas de comportamentos[49].

O delito, na concepção de JAKOBS, identifica-se pela quebra de expectativa normativa, sendo convencionado por atos comunicativos, os quais atentariam contra a segurança da sociedade.

O delito passa a ter uma conotação diversa do que foi construído pelo Finalismo (pensamento ontológico), transportando-se conceitualmente como a falta de fidelidade para com o Direito, colocando em risco a validade da norma e, por conseguinte, a confiança que transmite ao cidadão (confiança social). A pena passaria a ter a função de reafirmar o sistema normativo violado.

A teoria das expectativas normativas está previamente delimitada por regras de comportamento entre os cidadãos, onde os contatos sociais são moderados por regras que organizam a vida social. O papel principal desempenhado pela norma penal, na teoria, seria de incitar o cidadão a respeitar a mesma (validá-la).

O grande diferencial da teoria de JAKOBS vem a ser que o Direito penal não se legitima pelo critério teórico material de bem jurídico, e sim pela estabilidade das expectativas essenciais frente a possíveis defraudações (infração penal como ato de significado).

O bem jurídico penal, ou seja, o objeto de tutela do Direito Penal é a própria lei penal. A função da pena, nesse diapasão, se limita à confirmação da validade da norma penal infringida.

O marco da imputação objetiva está na manutenção das expectativas da norma penal sancionadora. Como critério delimitador do fato lesivo, a imputação objetiva do comportamento elege quatro limites, sem os quais não há que se falar em lesão à norma[50]. São eles: “risco permitido”, “princípio da confiança”, “proibição de regresso” e “competência da vítima”, os quais não abordaremos neste espaço para não desviar das finalidades do presente estudo[51].

Habitualmente, a ação é vista como o ponto de partida da dinâmica escalonar que busca a constatação da existência do delito, através da identificação de cada um dos substratos do conceito analítico de crime. Contudo, na construção de JAKOBS, a ação não é o início da caminhada, mas o próprio ponto de chegada, pois reúne em si todos os elementos essenciais à configuração do crime.

Ação é a causação de um resultado individualmente evitável. Ação, conduta e comportamento são tidos como sinônimos, pouco importando se referente a um movimento corporal ou à inércia do sujeito.

O cerne da ideia que emblema a dicotomia ação e omissão se resolve no âmbito da atribuição de deveres. JAKOBS aponta para a existência de duas ordens de deveres dentro das relações sociais: os denominados deveres negativos e os deveres positivos.

Os deveres negativos derivam-se das chamadas relações negativas, e partem do pressuposto de que o indivíduo possui liberdade de se organizar, e por esta razão, deve ser responsável pelas consequências de sua organização. O núcleo dos deveres negativos é o cuidado em não causar danos a terceiros.

Os deveres positivos, por sua vez, desdobram-se das relações positivas, consistentes no reconhecimento do outro como pessoa, e parte da existência de obrigações especiais dirigidas a determinados indivíduos em razão do singular papel ocupado dentro de um contexto social. Sustenta o autor alemão que os crimes derivados da violação de deveres positivos são chamados de “crimes de infração de dever”.

Tem-se, portanto, que os deveres negativos são voltados a qualquer pessoa, enquanto os deveres positivos têm como destinatário pessoas que ocupam um papel específico e irrenunciável dentro da sociedade, ocupando, por esta razão, uma posição de garantidor.

Então, a configuração do conceito jurídico penal de ação exige que o comportamento do indivíduo seja orientado pela vontade de transgredir o ordenamento jurídico vigente[52].

O resultado, considerado como elemento do conceito jurídico penal de ação, limita-se à violação da norma vigente, e a existência de um resultado naturalístico é absolutamente prescindível para esta finalidade. A ação penal jurídico-penalmente relevante já estará perfeita com a mera negação da vigência da norma.

Tanto os fatos dolosos, quanto os fatos culposos, representam a violação pelo agente de um papel a ele atribuído. A finalidade é apenas um dentre vários fatores que compõem o “desvalor da ação”. A principal característica do “desvalor da ação” é a criação de um risco não permitido.

A intervenção do Direito Penal na conduta do cidadão exige que, em última análise, o resultado por ele produzido tenha sido evitável.

A evitabilidade compõe o conceito jurídico-penal de ação concebido por JAKOBS. Não basta que o agente tenha agido em desconformidade com seu papel social, tendo assim confrontado a máxima reitora expressa pela norma vigente. A ação só se torna jurídico-penalmente relevante se, dotado de consciência da sua conduta e das consequências, o indivíduo transgride a norma jurídica, podendo ter agido de outro modo.

A mera aferição do injusto não está apta à aplicação da pena, restando necessária ainda a constatação da culpabilidade. Sob esta justificativa, JAKOBS entende que é necessário trazer a culpabilidade para dento do conceito jurídico-penal de ação.

Se o indivíduo, dentro da sua esfera de compreensão, não constata que seu comportamento infringe uma norma vigente, frustrando as expectativas normativas da sociedade que o cerca, produz o resultado de forma inevitável, o que afasta a imputação penal.

JAKOBS propõe uma concepção de culpabilidade baseada na imputação do autor como um ato de defraudar as expectativas da norma penal. A culpabilidade está intimamente próxima dos valores estruturais da sociedade. Daí a crítica à concepção do livre arbítrio, visto que este conceito carece de quaisquer dimensões sociais. Seu fim se orienta nas perspectivas de reparos no âmbito da responsabilidade, como finalidade de restabelecer a confiança da norma perturbada pela conduta delitiva.

A crítica mais recorrente dirigida à teoria sistêmica é a dificuldade de delimitação do poder punitivo estatal, para atender aos reais interesses da sociedade. Nesse passo, deve-se recordar que JAKOBS é defensor da doutrina do “Direito Penal do Inimigo” (1985)[53].

Em suma, a teoria sistêmica volta-se mais aos fins da pena, às consequências do Direito Penal, do que ao futuro da disciplina. 

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Sobre o autor
Carlo Velho Masi

Advogado criminalista (OAB-RS 81.412). Vice-presidente da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas no Estado do Rio Grande do Sul (ABRACRIM-RS). Mestre e Doutorando em Ciências Criminais pela PUC-RS. Especialista em Direito Penal e Política Criminal: Sistema Constitucional e Direitos Humanos pela UFRGS. Especialista em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra/IBCCRIM. Especialista em Ciências Penais pela PUC-RS. Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal pela UNISINOS. Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela PUC-RS. Membro da Comissão Nacional de Judicialização e Amicus Curiae da ABRACRIM. Membro da Comissão Especial de Políticas Criminais e Segurança Pública da OAB-RS. Parecerista da Revista Brasileira de Ciências Criminais (RBCCRIM) e da Revista de Estudos Criminais (REC) do ITEC. Coordenador do Grupo de Estudos Avançados Justiça Penal Negocial e Direito Penal Empresarial, do IBCCRIM-RS. Foi moderador do Grupo de Estudos em Processo Penal da Escola Superior de Advocacia (ESA/OAB-RS). Coordenador Estadual Adjunto do IBCCRIM no Rio Grande do Sul. Membro da Associação das Advogadas e dos Advogados Criminalistas do Estado do Rio Grande do Sul (ACRIERGS). Escritor, pesquisador e palestrante na área das Ciências Criminais. Professor convidado em diversos cursos de pós-graduação.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MASI, Carlo Velho. As modernas teorias do delito e suas receptividades no Direito Penal brasileiro.: Desafios da dogmática acerca dos rumos da Ciência Penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3418, 9 nov. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22983. Acesso em: 24 abr. 2024.

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