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Da eutanásia no direito comparado e na legislação brasileira

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A EUTANÁSIA NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

As diversas formas de eutanásia recebem tratamento diferenciado na seara penal. Assim é que a eutanásia pura ou genuína é penalmente atípica, uma vez que se enquadra dentro dos deveres de atuação do médico, já que sua missão não se limita a curar apenas, mas também abrange o dever de aliviar a dor. Em sentido contrário, a omissão de cuidados essenciais por parte do médico implicaria infração do dever de agir derivado da posição de garante por ele ocupada – art. 13, §2º, b do CP (CARVALHO, 2001).

Punível, em todos os casos, porém, é a eutanásia ativa direta. Digna de consideração é a atenuação da pena em razão do consentimento do enfermo e da menor culpabilidade, determinada pelos motivos nobres do agente. O atual CP, com propriedade, não especifica o crime de eutanásia. O médico que mata seu doente alegando compaixão comete crime de homicídio simples (art. 121).

Assim, situa a doutrina o ato eutanásico no art. 121, §1º CP ante a omissão do CP em especificá-la, adequando-o ao tipo homicídio privilegiado, quando praticado por motivo piedoso e para o qual o consentimento do paciente não teria relevância, pois não exclui a ilicitude da conduta.

Portanto, o consentimento do ofendido na eutanásia não retira a ilicitude da conduta do médico e, também, não desqualifica como homicídio, porque tal manifestação não é prevista em lei como causa de exclusão da tipicidade da conduta. Tal conduta será culpável, por sua vez, sempre que o médico pudesse ter agido de outro modo, evitando a conduta ilícita.

O motivo de relevante valor social ou moral que tenha sido considerado pelo médico ao praticar a eutanásia pode vir a ser considerado como causa especial de redução de pena, mas a conduta continua a ser típica, caracterizando o homicídio. A explicação do que venha a ser considerado motivo de relevante valor social ou moral consta da Exposição de Motivos do CP que entende que tal motivo “é aquele que, em si mesmo, é aprovado pela moral prática como, p. ex, a compaixão ante o irremediável sofrimento da vítima (caso de homicídio eutanásico), a indignação contra um traidor da pátria, etc” (DODGE, 1999).

Ressalte-se, ainda, por oportuno, que na aplicação da pena do homicídio eutanásico, o consentimento pode ser considerado, à luz da atual legislação, como circunstância judicial art. 59, que se refere ao comportamento da vítima ou atenuante inominada (art. 66 CP).

No que concerne a eutanásia ativa indireta também não se subsume ao tipo do delito de homicídio, pois não faz parte da intencionalidade do autor o objetivo de abreviar a vida do doente, agindo apenas com o intuito de aliviar o seu sofrimento.

Nesse diapasão, deve ser rechaçada a possibilidade de homicídio culposo, desde que tenha o médico observado o cuidado objetivamente devido, determinado pelas exigências da indicação da medida terapêutica, dentro dos limites de prudência assinalados (CARVALHO, 2001)

Na eutanásia passiva, mister se faz sua distinção das hipóteses de recusa a tratamentos vitais. Nestes impera por óbvio, a vontade do paciente, caracterizando a sua submissão forçada à terapia delito de constrangimento ilegal (art. 146 CP). O médico tem o dever de agir para impedir o resultado, ocupando oposição de garante do bem jurídico vida (art. 13, §2º, b, CP), mas esse dever não subsiste contra a vontade do enfermo.

Presente o risco de vida, a intervenção do médico estaria justificada pelo estado de necessidade (art. 146, §3º, I CP), em casos referentes a incapazes ou inconscientes, sobrepondo o seu dever inclusive sobre o posicionamento dos seus representantes legais (FRANCO, 1993, p.1).

No que concerne ao paciente adulto, por sua vez, não poderá o médico intervir sem o seu consentimento, já que implicaria um atentado à dignidade da pessoa humana uma vez que nesses casos, o direito à liberdade se contrapõe ao direito à vida. Nesse passo, admite-se que o paciente adulto e consciente, se negue às terapias desumanas e degradantes, assim entendidas aquelas que não se guardem qualquer perspectiva de melhorar para a sua saúde (FRANCO, 1993).

Na ortotanásia, estando o dever de assistência do médico limitado à existência de reais possibilidades de prolongamento da vida do enfermo, a desconexão dos aparelhos que mantém vivo o paciente é conduta atípica, não se amoldando ao delito de homicídio, uma vez que para que se perfaça a tipicidade nos delitos omissivos impróprios não bastaria que o autor estivesse na posição de garante, é necessário que tenha capacidade concreta de ação – possibilidade material de evitar o resultado (FRANCO, 1993).

Na distanásia, por sua vez, a conduta médica não será ilícita, nem culpável, do ponto de vista jurídico, exceto se os meios extraordinários forem empregados com o propósito de encurtar a existência, caso em que caracterizará também o homicídio.

Do exposto, insta salientar que o Código Penal não deve ser interpretado isoladamente e sim em conformidade com o texto constitucional, razão pela qual o consentimento do ofendido na eutanásia deveria ser considerado pelos juristas brasileiros como uma hipótese de exclusão de ilicitude. Isto em virtude do fato de que pela Carta Magna o princípio da inviolabilidade à vida não é superior aos demais, ao contrário, tem-se o princípio da dignidade da pessoa humana como princípio norteador de toda a Lei Maior. Dessa forma, conforme será analisado a seguir, ocorre um conflito entre princípios constitucionais que devem ser sopesados no momento da aplicação da tutela penal.


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Sobre o autor
Henrique Viana Bandeira Moraes

Servidor público federal. Bacharel em Direito pela UNEB. Especialista em Ciências Criminais pela UFBA.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MORAES, Henrique Viana Bandeira. Da eutanásia no direito comparado e na legislação brasileira. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3463, 24 dez. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23299. Acesso em: 12 mai. 2024.

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