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Justiça Restaurativa II: a vítima - implicações psicológicas

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CONCLUSÃO

Atualmente, nos sistemas de justiça, à vítima é destinada pouca atenção. A única aparente exceção em relação a isso, talvez sejam os programas de proteção à testemunha. No entanto, o objetivo principal destes programas não é a atenção à vítima, mas sim a garantia de acusação.  Nesse sentido a JR (Justiça Restaurativa) propõe uma abordagem diferente. Essa nova proposta objetiva colocar no centro do processo tanto a vítima quanto o ofensor. A vítima de um crime, como a própria designação identifica, foi ‘vitimizada’ (com maior ou menor violência) e, sendo assim, tende a ficar com alguma ‘sequela’ (física e/ou psicológica) (maior ou menor) em relação ao ocorrido. Caso a vítima seja desprezada/negligenciada pelo sistema de justiça, ela estará sendo novamente ‘vitimizada’, agora pelo sistema oficial.

Ser vítima de um crime pode se apresentar como um trauma para o indivíduo. A dimensão dos efeitos desse evento varia de acordo com a intensidade do ocorrido, bem como, com as características individuais das vítimas. No entanto, de uma forma geral uma série de sentimentos e questionamentos se apresentam gerando um desconforto que pode ser mais ou menos duradouro para a vítima. A JR considera que, caso as necessidades das vítimas sejam atendidas (em parte ou totalmente) o seu sofrimento tende a diminuir. Assim, a dimensão dos efeitos do evento varia, também, em função das possibilidades que a vítima terá (ou não terá) para o atendimento às suas necessidades oriundas de ter sido agredida (física e/ou psicologicamente).

Os efeitos de um trauma podem ser devastadores para uma pessoa. A presença de um evento que ultrapassa a capacidade atual da estrutura de lidar ‘tira o chão’ do indivíduo. A partir daí, desencadeia uma série de afetos e comportamentos desagradáveis nas vítimas. Caso exista um responsável direto por tal estrago, um sentimento muito forte (raiva/ódio) será direcionado a este por parte da vítima. Sendo assim é normal certo sentimento de raiva, tanto da vítima quanto da sociedade, direcionados aos agressores.

Os estudos de Bettelhein representando o campo psicológico (psicanalítico), bem como de Zehr, representando o campo dos operadores do direito convergem no fato de que as vítimas de um crime/trauma necessitam de algumas respostas para poderem superar o ocorrido. Caso contrário, considerando as diferenças pessoais, conforme Bettelhein, a vítima de um trauma pode sentir-se incapaz de retomar sua vida assumindo, um quadro semelhante a uma depressão e/ou paranóia ou, então, “optar” pela estratégia da negação a qual lhe trará uma solução precária para o que foi vivenciado. A JR oferece espaços especiais - como, por exemplo, os encontros entre vítima e infrator (entre outros) – que possibilitam uma terceira forma de lidar com o fato vivenciado. Os espaços ofertados pela JR facilitam a troca de informações e esclarecimentos, contribuindo para que a vítima consiga elaborar e integrar em sua personalidade o fato/evento vivenciado. Esta abordagem se caracteriza do ponto de vista psicológico, como um enfrentamento mais saudável/adequado aos danos oriundos de se ter sido vítima de algum trauma/crime.

Assim, a participação da vítima no processo judicial, favorecida pela JR, contribui para sua recuperação, pois lhe permite ‘experienciar/vivenciar’ um sentimento de justiça bem como, obter mais algumas respostas das quais necessita.

JR também favorece a recuperação da vítima na medida em que possibilita ao ofensor assumir a responsabilidade e, a se propor a algum tipo de reparação (real ou simbólica). Nesse caso a vítima além de eliminar a possibilidade da culpa do ocorrido ser sua, tem os sentimentos de ‘humilhação narcísica’ e de ‘aniquilamento do eu’ atenuados. Dessa forma, a vítima tende a diminuir o ódio, pois começa a ter um sentimento de que seus prejuízos (causados pelo agressor) já são menores.

Na medida em que a vítima vai obtendo significado, se reorganizando, superando seu sofrimento, efetivamente o dano causado pelo infrator vai diminuindo. Isso também pode fazer com que o sentimento de raiva direcionado ao infrator (causador do dano) vá se dissipando. A raiva/ódio pode estar funcionando como uma defesa direcionada ao responsável pelas perdas. Porém se não houver mais perdas, ou seja, se ocorrer a reparação (quando possível), a defesa poderá não ser mais tão necessária. Toda essa ‘ressignificação’ contribui, também, para evitar que a vítima, em função da repressão inconsciente do ódio, acabe defensivamente, identificando-se com o agressor.

Assim, a partir desse estudo percebe-se que a proposta da Justiça Restaurativa oferece espaços específicos bem como recursos para que as necessidades das vítimas (que não são poucas nem desprezíveis) possam ser - em parte ou totalmente - atendidas, na direção de contribuir para que integrem em sua personalidade os eventos dos quais foram vítima.

Paradoxalmente, o processo de JR permite a vítima e aos participantes do processo a percepção da realidade atual e histórica do infrator. Podendo, então facilitar a percepção da existência ou não de alguma responsabilidade do sistema social sobre a atual situação deste agressor. Nesse sentido, apresenta-se para a vítima e, principalmente para os demais operadores do sistema a necessidade de oportunizar ao infrator condições para superar o comportamento criminoso. Assim, evidencia-se que não só a vítima possui necessidades, mas também o infrator. Estas preocupações com o ofensor, sob um olhar psicológico, será foco de uma terceira etapa desse estudo.

Em fim, diante da incapacidade do sistema de justiça atual oferecer à vítima e à sociedade  um sentimento de justiça, todos anseiam por novas propostas que possam dar conta desta necessidade individual e social. Não resta dúvida de que a JR se apresenta como uma opção interessante que, em muitos casos, pode oferecer as vítimas mais do que o atual processo de justiça tem oferecido.

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Agradecimento especial: Mestre Ingrid Elba Schmidt, orientadora do TCC (SILVA, J. E. M. & SCHMIDT. I. E [orientadora]) que deu origem a esta série de artigos. 


REFERÊNCIAS

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BETTELHEIM, B. Sobrevivência e outros estudos. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989.

DOURLEN, M. A. Sentimento de humilhação e modos de defesa do eu. Narcisismo, masoquismo, fanatismo. In: Marson, I & Naxara, M. (org). Sobre a Humilhação: sentimentos, gestos, palavras. Uberlândia: EDUFU, 2005. p. 85-101.

KOSS et al. Resposta da Comunidade. Ampliação da resposta da justiça de uma Comunidade a Crimes Sexuais Pela Colaboração da Advocacia, da Promotoria, e da Saúde Pública: Apresentação do programa RESTORE. In SLAKMON, C.; DE VITTO, R. C. P.; PINTO, R. G. (orgs). Justiça Restaurativa. Brasília, DF: Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD, 2005. p.351-386.

NESTROVSKI, A.; SILVA, M. S. Catástrofe e Representação. São Paulo: Escuta, 2000.

SCURO NETO, P. Chances e entraves para a justiça restaurativa na América Latina. In SLAKMON, C.; DE VITTO, R. C. P.; PINTO, R. G. (orgs). Justiça Restaurativa. Brasília, DF: Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD, 2005. p. 227-246.

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ZIMERMAN, D. E. Psicanálise em Perguntas e Respostas: verdades, mitos e tabus. Porto Alegre: Artmed., 2005, 320p


ABSTRACT: Having contextualized the existence of Restorative Justice (JR) through the article "Restorative Justice I: the restoration of the consideration. A movement for human rights "(Silva, JEM, 2010), this step refers to a review psychological (psychoanalytic approach) in relation to 'role' of the victim within the context of Restorative Justice. At the present time where the attention is strongly directed to the offender, at least before it has been sentenced/imprisoned, the study seeks to show that victims of crimes also have needs which, in a traditional process, are often neglected. This lack hinders the psychological recovery of victims and does not contribute to the experience of a justice process that is considered effective, preventive and restorative at the individual and social. While the study evidence how Restorative approaches contribute to bridging this gap in relation to the victim of a crime.

Keywords: Restorative Justice. Victim. Psychology. Crime. Forensic psychology.

RESUMEN; Después de haber contextualizado la existencia de la Justicia Restaurativa (JR) a través del artículo "Justicia Restaurativa I: la restauración de la contraprestación. Un movimiento por los derechos humanos "(Silva, J.E.M., 2010), este paso se refiere a una revisión y un examen psicológico (enfoque psicoanalítico) en relación con el "papel" de la víctima en el contexto de la justicia restaurativa. En la actualidad, donde está fuertemente la atención dirigida al infractor, por lo menos antes de que haya sido condenado/encarcelado, el estudio trata de demostrar que las víctimas de crímenes también tienen necesidades que, en un proceso tradicional, a menudo se descuidan. Esta falta dificulta la recuperación psicológica de las víctimas y no contribuye a la experiencia de un proceso de justicia que se considera eficaz, preventiva y de restauración a nivel individual y social. Si bien el estudio muestra cómo los enfoques de restauración contribuyen a cerrar esta brecha en relación con la víctima de un crimen.

Palabras clave: Justicia Restaurativa. Víctima. Psicología. Crimen. La psicología forense.

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Sobre o autor
José Eduardo Marques da Silva

Psicólogo. Especialização em ACP com experiência em Mediação de Conflitos.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, José Eduardo Marques. Justiça Restaurativa II: a vítima - implicações psicológicas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3505, 4 fev. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23640. Acesso em: 8 mai. 2024.

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