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Responsabilidade do Estado por atos lícitos: do modelo liberal ao sistema solidarista

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2 RESPONSABILIZAÇÃO OBJETIVA DO ESTADO POR ATOS LÍCITOS

O presente capítulo almeja examinar a possibilidade de que o Estado seja responsabilizado por atividade lícita. Inicialmente, explica-se como deve ser entendido o conceito de licitude na seara administrativa, a partir da evolução história do conteúdo e dos limites do princípio da legalidade, atualmente compreendido como vinculação da Administração Pública ao ordenamento jurídico como um todo. Ademais, expõe-se que o princípio da legalidade apresenta profunda relevância prática, pois tem funcionado como um dos mais importantes parâmetros de controle da atividade administrativa. Em seguida, demonstra-se que a doutrina italiana de impossibilidade de responsabilização do Poder Público por atuação lícita encontra-se superada, em decorrência da própria transformação no que se refere aos fundamentos da responsabilidade do Estado, embora a experiência pretoriana ainda não acompanhe os jurisconsultos no ritmo desejado, eis que numerosos julgados continuam a denegar pleitos indenizatórios com base na licitude do ato administrativo ensejador do dano. Por fim, examina-se se estão presentes os requisitos constitucionais e doutrinários suficientes para que o Poder Público possa ser responsabilizado por atuação lícita.

2.1 O princípio da legalidade e os atos lícitos: correlações entre legalidade e licitude no âmbito da Administração Pública

O princípio da legalidade nasceu na fase liberal do Estado de Direito, constituindo uma vitória da ideologia dos direitos individuais dos cidadãos em face do poder opressivo absolutista, contra o qual não se admitia a oposição de qualquer medida judicial. Como consequência desse processo de valorização da legalidade, o legislador adquiriu o monopólio da produção jurídica, de modo a fazer o direito equivaler à lei. Configurou-se, assim, um panorama de primazia do Poder Legislativo, entendido como único a manifestar legitimamente a vontade geral do povo, sobre o Executivo e o Judiciário, adstritos à tarefa de executar as normas emanadas do Parlamento.

Apesar da importância conferida às normas legais, continuou-se a admitir uma esfera de atuação discricionária da Administração Pública, livre de vinculação legal e de apreciação pelo Judiciário. Diante da dificuldade de compatibilizar o princípio da legalidade e o exercício do poder discricionário da Administração, passou-se a entender que a Administração Pública poderia fazer tudo aquilo que a lei não proibisse.[33]

O dogma do fetichismo legal amparava-se na convicção de que a lei seria a expressão do direito e da justiça, apresentando clareza, coerência e completude na sua previsão de todas as situações da vida. O Estado de Direito surgido na Revolução Francesa baseava-se em dois dos seus três pilares: liberdade, na medida em que a limitação do poder estatal garantia direitos individuais, e igualdade, eis que a elaboração de normas de modo geral e abstrato permitia a previsibilidade quanto às conseqüências jurídicas de cada conduta prevista. Entretanto, o dinamismo dos fatos sociais, verificado ao longo dos séculos XIX e XX, expôs a incapacidade do legislador de antever todos os possíveis conflitos nas relações humanas, fazendo ruir a crença irrefletida de que a justiça é extraída sempre da literalidade da lei.

A reação ao Estado liberal deu lugar ao surgimento do paradigma do Estado Social, em que se objetivou a materialização dos direitos anteriormente formais. Para tanto, como observa Di Pietro[34], o aparelho estatal passou a atuar nas mais variadas esferas da vida privada, inclusive no âmbito das atividades antes exercidas exclusivamente por particulares.

Com essa ampliação na seara de atuação estatal, surgiu a necessidade de rapidez e dinamismo, características incompatíveis com o demorado e burocrático processo legislativo. Ocorreu, assim, o fortalecimento do Poder Executivo, que deixou de ser mero executor das normas emanadas do Legislativo. Igualmente eleito pelo povo, o Executivo passou a ter ampla função normativa, editando decretos-leis, leis delegadas, regulamentos, decretos e portarias. A respeito do fenômeno, Di Pietro vaticina: “[...] o acréscimo de funções a cargo do Estado – que se transformou em Estado prestador de serviços, em Estado empresário, em Estado investidor – trouxe como consequência o fortalecimento do Poder Executivo e, inevitavelmente, sérios golpes ao princípio da separação de poderes. Já não se vê mais o Legislativo como único Poder de onde emanam atos de natureza normativa. O grande volume de atribuições assumidas pelo Estado concentrou-se, em sua maioria, em mãos do Poder Executivo que, para atuar, não podia ficar dependendo de lei, a cada vez, já que sua promulgação depende de complexo e demorado procedimento legislativo”.

Nesse contexto, o princípio da legalidade sofreu uma transformação conceitual, passando a significar a obediência à lei em sentido lato, quer dizer, tanto a lei em sentido formal quanto os atos normativos emanados do Executivo. Ademais, para o novo entendimento doutrinário, que a Administração Pública somente podia fazer aquilo que a lei permitia, em contraste com a situação dos particulares em geral, que podiam fazer tudo aquilo que não lhes fosse vedado por lei. Em suma, tem-se que, no Estado liberal, o princípio da legalidade era enxergado como vinculação negativa à lei, podendo a Administração Pública fazer tudo que não fosse legalmente proibido, enquanto, no Estado social, a legalidade foi compreendida como vinculação positiva à lei em sentido amplo.

No paradigma do Estado democrático de direito, o princípio da legalidade assume marcada relevância. Na Constituição Brasileira de 1988, o mencionado princípio consubstancia-se como o segundo direito fundamental arrolado pelo constituinte no artigo 5°: “ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. No âmbito da Administração Pública, a legalidade revela-se diretriz básica, insculpida no caput do artigo 37. Ademais, o texto constitucional traz diversas garantias contra ilegalidades, como o mandado de segurança, o habeas-corpus e o habeas-data.

Hodiernamente, caminha-se para a construção de um princípio da legalidade não como vinculação positiva ou negativa à lei, mas como vinculação da Administração Pública ao Direito, com destaque para os princípios constitucionais que regem a matéria. A partir daí, cada vez mais administrativistas aderem à mudança de nomenclatura para frisar a transformação conceitual: de princípio da legalidade para princípio da juridicidade, consoante afirma Patrícia Baptista[35]. Não sendo possível prever em leis todas as escolhas do administrador, os parâmetros de controle passam a ser as regras e princípios do ordenamento jurídico, especialmente os de status constitucional, eis que as ações da Administração Pública submetem-se ao Direito em todas as suas expressões.

Da forma como hoje é compreendido o princípio da legalidade (ou princípio da juridicidade), perde sentido a possível distinção entre atos da Administração Pública legais e lícitos. Para que um ato possa ser considerado legal, deve compatibilizar-se com todo o ordenamento jurídico, o que lhe confere também a característica da licitude.

2.2 A legalidade como parâmetro de controle dos atos administrativos

Cada vez mais cidadãos recorrem ao Judiciário para resguardar direitos seus diante de irregularidades na condução da coisa pública. Em resposta aos pleitos, os juízes têm exercido uma cognição crescentemente mais profunda sobre os impasses, especialmente após a aceitação da ideia de o princípio da legalidade deve ser entendido agora de modo amplo, de submissão dos atos administrativos ao Direito como um todo. Nesse sentido, Germana de Moraes ensina: “[...] o controle judicial da atuação administrativa não mais se esgota no âmbito da legalidade, abrangendo também o exame da constitucionalidade, isto é, além de verificar a conformidade do ato administrativo com a lei, o juiz há de decidir também sobre a compatibilidade do ato impugnado com a principiologia constitucional [...] A constitucionalização dos princípios gerais alargou o espectro de sindicabilidade judicial dos atos administrativos. Aplicam-se, por isso, aos atos do procedimento do concurso público tanto os princípios constitucionais gerais e os princípios constitucionais da Administração Pública, quanto princípios e regras específicos disciplinadores deste assunto”.[36]

Destarte, encontra-se ultrapassada a alegação de que a apreciação judicial de atos administrativos encontra óbice no princípio da separação dos poderes, consoante a lição de Paulo Bonavides[37]: “A teoria da divisão dos poderes foi, em outros tempos, arma necessária da liberdade e afirmação da personalidade humana (séculos XVIII e XIX). Em nossos dias é um princípio decadente na técnica do constitucionalismo. Decadente em virtude das contradições e da incompatibilidade em que se acha perante a dilatação dos fins reconhecidos ao Estado e da posição em que se deve colocar o Estado para proteger eficazmente a liberdade do indivíduo e sua personalidade”.

Sendo assim, o controle jurisdicional pode recair mesmo sobre atos discricionários prolatados pela Administração na condução do processo seletivo, sem que isso signifique que o Estado-juiz irá substituir-se ao administrador na apreciação do mérito do ato administrativo, pois a intervenção judicial é apenas restauradora da juridicidade que deve fundamentar a atuação da Administração Pública, tendo como parâmetro os princípios e as regras expressos no ordenamento jurídico.

Miguel Seabra Fagundes[38] explica como se dá o controle jurisdicional em comento: “A Administração não é mais órgão ativo do Estado. A demanda vem situá-la, diante do indivíduo, como parte, em condição de igualdade com ele. O Judiciário resolve o conflito pela operação interpretativa e pratica também os atos consequentemente necessários a ultimar o processo executório. Há, portanto, duas fases, na operação executiva, realizada pelo Judiciário. Uma tipicamente jurisdicional, em que se constata e decide a contenda entre a Administração e o indivíduo, outra formalmente jurisdicional, mas materialmente administrativa, que é a da execução da sentença pela força”.

Nesse contexto, mostra-se crucial o papel do Judiciário, enquanto guardião da ordem constitucional e conformador da ação administrativa ao horizonte hermenêutico do Poder Constituinte, o que enseja, inclusive, a interferência judicial em políticas públicas, tendo em vista a proteção de direitos fundamentais.[39]

Para sua concretização, o ordenamento constitucional exige um Judiciário consciente de seu destacado mister na efetivação das normas constitucionais. Os objetivos, parâmetros e direitos fundamentais insculpidos no texto constitucional gozam de plena força normativa, vinculando todos os poderes constituídos, sendo certo que o Estado constitucional e seus órgãos funcionalmente divididos buscam seu fundamento de legitimidade na Constituição. Inafastável, portanto, a justiciabilidade dos atos da Administração Pública, especialmente em razão do princípio da ubiqüidade da jurisdição. Tal controle, como se disse, não afronta a independência dos Poderes, eis que a distribuição de funções se justifica na medida em que satisfazem os ditames constitucionais, não podendo servir de escudo para a consolidação de práticas ilegais ou ilícitas.

Ante a riqueza de situações ocorrentes no afazer administrativo, é impossível prever todas as hipóteses de irregularidades que podem ensejar o controle judicial de atos administrativos. À guisa de ilustração, no âmbito do controle judicial da legalidade de provas, a jurisprudência admite pacificamente a intervenção do Estado-juiz quando as questões padecerem de erro material ou não estiverem abrangidas pelo conteúdo programático do edital.[40] Para além dessa compreensão, Germana Moraes[41] observa a tendência do STF de superar o mero controle de legalidade e aferir a constitucionalidade do procedimento de correção de provas, inclusive subjetivas, especialmente à luz dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. A depender da fase do concurso em que se insere a prova eivada de vício e do momento em que se encontra o procedimento concursal, a consequência da intervenção jurisdicional pode ser a admissão do candidato a uma fase posterior do concurso, a alteração da lista de classificação ou até a própria nomeação do prejudicado.

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Outro exemplo diz respeito ao controle, por parte do Ministério Público, da probidade administrativa, entendida como dever funcional tanto do ponto de vista interno, inserido na relação jurídica que liga o agente público à Administração Pública, quanto do ponto de vista externo, eis que os agentes administrativos devem observar o preceito nas relações jurídicas com terceiros. Destacam-se como fortes focos de improbidade no Brasil: a aplicação irregular de verba pública, o desvio de verba pública, a falta de prestação de contas, superfaturamento de obras públicas e a frustração de concurso de ingresso de servidores e de procedimentos licitatórios.

2.3 Sacrifício de direito e responsabilidade do Estado: a superação da doutrina de Alessi

Impende consignar que a questão da responsabilidade do Poder Público não se confunde com a obrigação do Estado de indenizar os particulares na hipótese de sacrifício de direitos privados em prol da realização do interesse público, de conformidade com o poder conferido pela ordem jurídica para tanto, como acontece nos casos de desapropriação.

Bandeira de Mello[42] expõe que, para o italiano Alessi, somente poderia haver responsabilidade estatal, a reclamar ressarcimento, quando violado o direito alheio: nos casos de mero sacrifício de direito, devidamente autorizado pela ordem jurídica, sobre o Estado não recairia propriamente responsabilidade civil, mas mero dever de indenização do dano, não podendo existir responsabilidade estatal por atos lícitos.

Em seguida, o autor defende uma posição ligeiramente diferente: não há que se falar em responsabilidade quando o ordenamento jurídico confere ao Poder Público o poder específico de sacrificar um direito particular, mas, se o patrimônio do cidadão resta debilitado em decorrência de uma atividade lícita que não tinha como finalidade primeira atuar sobre a esfera de direitos do particular, configura-se a responsabilidade do Estado por esses efeitos laterais de sua ação lícita.[43]

Assim, nos casos desapropriação, embora exista o dever de indenizar, não há responsabilidade, pois a ordem jurídica confere ao Estado o poder específico de sacrificar um direito do particular, face a uma necessidade ou utilidade pública, ou um interesse social. Diferentemente, quando o Poder Público realiza o nivelamento de uma rua, com evidente prejuízo para os proprietários que ficam abaixo do nível escolhido, surge um dever de indenizar atrelado à responsabilidade do Estado, pois o dano causado é apenas reflexo, mediato, indireto, não especificamente permitido por uma norma jurídica.[44] Em arremate: no primeiro exemplo, o dano é oriundo da atividade estatal, sendo-lhe natural e intrínseco, ao passo que, no segundo exemplo, o prejuízo é meramente decorrente da atuação de agentes públicos, surgindo por via oblíqua.

Para este estudo, será aceito esse discrímen entre sacrifício de direito e responsabilidade do Estado, assim como a tese de que há responsabilização estatal por atos lícitos, como defendido anteriormente. A responsabilidade estatal compreendia, tradicionalmente, apenas a reparação de danos causados por atos ilícitos, porém, mais recentemente, como observa Yussef Cahali[45], entende-se que o conceito desfruta de maior amplitude, compreendendo a indenização de danos injustos advindos de atividade legítima do Poder Público.

Todavia, neste estudo serão empregados indistintamente os termos restituição, ressarcimento, reparação e indenização, de modo a tangenciar discussões terminológicas de pouca relevância prática, a despeito da classificação mais rígida proposta por alguns autores, como Maria Helena D’Arbo Alves de Freitas[46]: “A restituição consiste na devolução de um bem pelo ofensor ao ofendido. É a consequência mais simples do ato lesivo, não chegando a configurar autêntico ressarcimento, exceto em hipóteses muito raras. O ressarcimento é o pagamento do dano ocasionado em toda a sua extensão, incluindo o prejuízo emergente e o lucro cessante. O termo “reparação” é utilizado nos casos em que o dano não tem caráter patrimonial. A indenização, em sentido próprio, surge em Direito Público nos casos em que os atos, embora sendo lícitos, acarretam prejuízo”.

Ilustrando essa controvérsia, e apenas a título de amostragem, mencione-se que Bandeira de Mello[47] não acolhe a distinção terminológica entre indenização e ressarcimento. Para Caio Mário[48], a reparação pressupõe a existência de um dano em geral e constitui um minus em relação à responsabilidade civil: a reparação dá azo à existência de responsabilidade apenas quando o direito positivo identifica o sujeito a quem é atribuível. Carlos Roberto Gonçalves[49], por sua vez, entende que a indenização é gênero do qual o ressarcimento e a reparação são espécies, tendo em vista que a Constituição Brasileira assegura a indenização por dano material ou moral.

2.4 Do modelo liberal à solidariété sociale: a responsabilização do Poder Público por atos lícitos no sistema solidarista

Embora a doutrina admita a responsabilização do Estado por atos lícitos, os tribunais brasileiros frequentemente negam pleitos indenizatórios com base na licitude do comportamento da Administração Pública. Para esses precedentes, somente seria cabível a responsabilidade do Estado caso o ato administrativo impugnado estivesse revestido de ilicitude, de modo a legitimar o pedido de reparação de danos.[50]

O reconhecimento da responsabilidade do Estado até mesmo por atos lícitos associa-se à própria evolução conceitual do instituto da responsabilidade civil, que, conquanto tenha origens mais remotas, figura tradicionalmente como marca do modelo econômico aplicado ao Estado liberal, havendo se agigantado por meio do empréstimo do conceito de reparação patrimonial fundado no liberalismo econômico. Contudo, sob o influxo da evolução do pensamento jurídico, merecem crítica as correntes doutrinárias e jurisprudenciais que continuam a aplicar a responsabilidade civil de modo alheio ao processo de constitucionalização dos diversos ramos jurídicos. 

No Brasil, o Código Civil de 1916 era o estatuto dominante nas relações privadas, a “Constituição do direito privado”, o instrumento legal mais elevado quanto à disciplina das relações de cunho patrimonial. Nascido sob a influência do liberalismo econômico, resultante de concepções individualistas e sob a influência dos Códigos Napoleônico e Alemão, o Código de Beviláqua caracterizava-se predominantemente pela índole patrimonialista. Sua inspiração era o cidadão dotado de riqueza material: a plenitude do homem consistia em ser proprietário de bens móveis e imóveis.

Entretanto, a sociedade experimentou profundas transformações cientificas e tecnológicas, aliadas ao surgimento de uma nova visão jurídica sobre a realidade, especialmente à luz dos desdobramentos do constitucionalismo. O século XX assistiu ao fortalecimento do modelo de Estado Constitucional de Direito, quer dizer, um Estado cujo ordenamento jurídico tem a Constituição como sua fonte primeira.

O novo constitucionalismo surgido pode ser caracterizado esquematicamente pelas seguintes notas: a) mais Constituição do que leis; b) mais juízes do que legisladores; c) mais princípios do que regras; d) mais ponderação do que subsunção; e) mais concretização do que interpretação.[51]

Após a promulgação da Constituição de 1988, os constitucionalistas brasileiros dedicaram especial preocupação ao fortalecimento das seguintes ideias: a) a supremacia da Constituição, que deixou de ser vista como mero estatuto de distribuição de competências, tendo sua força normativa reconhecida;[52] b) a possibilidade de controle de constitucionalidade dos atos normativos (jurisdição constitucional); c) a necessidade de aplicação da técnica de ponderação de valores quando houvesse tensão entre princípios constitucionais no caso concreto.

Assim, a feição liberal, individualista e exclusivamente patrimonial da responsabilidade civil vem se alterando pela influência dos parâmetros da dignidade da pessoa humana, da justiça distributiva e da solidariedade. O enfoque muda dos danos causados para os danos sofridos, e, no intuito de proteção à vítima, vem ocorrendo a flexibilização dos filtros tradicionais da reparação, como o elemento culpa e o nexo causal.

Assim, para adequar-se à complexidade da vida social, o sistema da culpa, marcadamente individualista, evoluiu para o sistema solidarista da reparação do dano. Dessa forma, a responsabilização objetiva do Estado homenageia o princípio da solidariedade, repartindo-se os encargos sociais e promovendo-se a justiça social, como observa Louis Trotabas[53]: “O desenvolvimento da responsabilidade do Poder Público, produto de um longo trabalho da doutrina e da jurisprudência, justifica-se por considerações de justiça e solidariedade social; não é justo deixar a cargo de uma pessoa o dano causado pelo funcionamento do serviço público, que, por definição, traz proveito a toda a coletividade. É a ideia de um direito social, o desejo de defender o indivíduo isolado, ou seja, o fraco, que determinaram esta evolução, e seus resultados, até o presente, têm sido tidos como generosos e conformes ao advento de uma justiça social melhor” [tradução nossa].[54]

Nesse contexto, passou-se a admitir a responsabilização do Estado também por atos lícitos, com fundamento no princípio da isonomia ou da repartição equânime dos ônus oriundos da atividade do Poder Público.[55]

Assim, Bandeira de Mello[56] assevera que o fundamento da responsabilidade objetiva do Estado se biparte: na hipótese de comportamento ilícito, o dever de reparação revela-se a contrapartida do princípio da legalidade, ao passo que, no caso de atuação lícita, a razão jurídica para a responsabilização corresponde à ideia de distribuição equânime dos encargos, a partir do princípio da igualdade. Para o autor, portanto, não há como afastar a incidência da responsabilidade objetiva do Estado mesmo por atos lícitos, pois nessa situação o administrado não pode se evadir da atuação estatal, não se afigurando justo que suporte o prejuízo experimentado. 

No mesmo diapasão, Aguiar Dias[57] defende que essa realidade de objetivização do dever de indenizar acaba ensejando uma modificação até mesmo quanto ao que se deve entender por responsabilidade civil. A eliminação da exigência de culpa atingiria o instituto em seu cerne, de modo que a manutenção da nomenclatura se daria apenas pela conveniência da tradição. Imputar um prejuízo a alguém sobre cuja conduta não recai qualquer juízo de reprovação moral, eis que agiu licitamente, seria incompatível com a noção mais estrita de responsabilidade civil: “Filosoficamente, não é possível conceber responsabilidade sem culpa. A obrigação civil decorrente de responsabilidade civil, se, sacrificados à tirania das palavras, quisermos guardar a significação rigorosa do termo, só pode ser entendida como consequência da conjugação destes elementos: imputabilidade mais capacidade. É disso que se aproveitam os partidários mais ardorosos da doutrina da culpa, esquecidos de que, na verdade, já não é mais de responsabilidade civil que se trata, se bem que haja conveniência em conservar o nomen juris, imposto pela semântica: o problema transbordou desses limites. Trata-se, como efeito, de reparação do dano”.

Convém mencionar importante precedente em que o STF condenou a União a indenizar os prejuízos decorrentes de sua intervenção no domínio econômico, pela qual o poder estatal determinou a fixação de preços, no setor sucro-alcooleiro, em patamar inferior aos valores propostos pela autarquia federal com atribuição para tanto. A Corte considerou que, embora a intervenção estatal tenha sido lícita e legítima, é de se levar em conta os danos injustos experimentados por terceiros: “O dever de indenizar, por parte do Estado, no caso, decorre do dano causado e independe do fato de ter havido ou não desobediência à lei específica. A intervenção estatal na economia encontra limites no princípio constitucional da liberdade de iniciativa, e o dever de indenizar (responsabilidade objetiva do Estado) é decorrente da existência do dano atribuível à atuação do Estado [...] Não se trata, no caso, de submeter o interesse público ao interesse particular da Recorrente. A ausência de regras claras quanto à política econômica estatal, ou, no caso, a desobediência aos próprios termos da política econômica estatal desenvolvida, gerando danos patrimoniais aos agentes econômicos envolvidos, são fatores que acarretam insegurança e instabilidade, desfavoráveis à coletividade e, em última análise, ao próprio consumidor”. [58]

2.5 A presença dos requisitos suficientes para a responsabilização do Estado por atos lícitos

Como se investigou anteriormente, a responsabilidade objetiva do Estado apresenta-se como o dever de indenizar o terceiro prejudicado, independentemente de qualquer atuação culposa ou dolosa do agente responsável, bastando, para a sua configuração, a ocorrência do dano e o nexo de causalidade entre fato e dano, por força da cláusula constitucional de responsabilização estatal. Neste momento, cumpre perquirir se estão presentes os elementos necessários e suficientes para a responsabilização do Estado por atos lícitos.

Inicialmente, consigne-se que o maior foco de atenção deste estudo recai sobre o dano indenizável, considerando que a aferição do nexo de causalidade independe da licitude do comportamento administrativo.

Arnaldo Rizzardo[59] afirma que, no Brasil, adota-se a teoria da interrupção do nexo causal, também denominada teoria do dano direto e imediato. Para o autor, embora extraída do art. 403[60] do Código Civil, que diz respeito à responsabilidade contratual, a mencionada teoria aplica-se também à responsabilidade extracontratual, inclusive a objetiva. Carlos Roberto Gonçalves[61], por seu turno, esclarece que a doutrina dos danos direitos e imediatos é um amálgama das teorias anteriores (equivalência das condições e causalidade adequada), funcionado como meio-termo razoável, que ameniza as consequências extremas que a aplicação das outras propostas doutrinárias poderia acarretar. Assim, a indenização apenas incluiria os prejuízos efetivos e os lucros cessantes oriundos direta e imediatamente do evento danoso. Contudo, o problema não pode ser tratado em termos absolutos. Em verdade, doutrina e jurisprudência não sustentam de modo rígido uma teoria para a causalidade, recorrendo a uma ou outra a depender do caso concreto, como aponta Schreiber[62]. A preocupação em assegurar às vítimas a reparação pelos danos sofridos acarreta uma gradual diminuição do rigor na apreciação do nexo causal.

Assim, como o elemento culpa já sucumbiu quase completamente na seara da responsabilidade do Estado e o nexo causal não logrou substituir a culpa como barreira de contenção do dever de indenizar, o resultado não poderia ser outro: a impressionante expansão das fronteiras da responsabilidade estatal.

Embora esse movimento jurisprudencial atenda ao imperativo social da reparação, em homenagem à dignidade das pessoas prejudicadas, é preciso observar que a discricionariedade excessiva nas decisões judiciais produz um cenário de insegurança e incoerência, podendo estimular pedidos de indenização frívolos e fomentar uma cultura de vitimização social. Mais uma vez, alerta-se para a necessidade de uma revisão sistêmica da dogmática da responsabilidade civil. Até que isso aconteça, o Judiciário deve examinar cautelosamente as lides, para distinguir quais danos merecem ressarcimento.

A maior resistência quanto ao cabimento da responsabilidade estatal nos casos de atos administrativos danos lícitos atrela-se à caracterização do dano: para certa parcela da jurisprudência, o dano indenizável somente seria originado de ações ilícitas do Poder Público. Sendo assim, urge tecer maiores comentário acerca do dano reparável.

Bandeira de Mello[63] expõe que nem todo dano é indenizável: para adquirir esse status, faz-se necessário que o bem ofendido esteja juridicamente protegido e que a lesão seja certa, quer dizer, não apenas eventual ou possível, embora possa ser presente ou futura. Tais requisitos mostram-se suficientes nos casos de responsabilização por atos ilícitos. Exige-se, ainda, nas hipóteses de responsabilidade estatal por atos lícitos, que o dano seja especial, atingindo especificamente um indivíduo ou grupo de indivíduos, e anormal, extrapolando agravos de menor monta, mas sobre esses dois caracteres não pairam dúvidas nos casos de nomeação tardia.[64]

Deve-se investigar, primeiramente, se o interesse prejudicado encontra-se protegido por uma norma jurídica, fazendo ser violada a esfera de direitos do cidadão. De fato, para que se distingam quais são os danos indenizáveis, revela-se fundamental o papel da norma jurídica, pois o ordenamento jurídico seleciona os bens e valores dignos de tutela.[65]

Em outras palavras, para que haja ofensa à esfera jurídica de um indivíduo, faz-se necessário que esse alguém possua um direito assim reconhecido pela ordem jurídica. Justifica-se a importância da caracterização do dano, na medida em que o interesse em restabelecer o equilíbrio econômico-jurídico alterado pelo dano é a causa geradora da responsabilidade civil.

Contudo, em certos casos, talvez não se vislumbre, de forma clara e distinta, a quebra dos deveres consubstanciados em normas jurídicas expressas. Nesse contexto, insere-se o problema: como garantir a reparação aos denominados novos direitos, ainda não claramente delineados no direito positivo?

Para Antônio Carlos Wolkmer[66], os novos direitos são decorrência das necessidades humanas, as quais são inesgotáveis e ilimitadas no tempo e no espaço, sofrendo constantes processos de redefinição e recriação. Portanto, motivações e interesses impulsionariam a conquista de novos direitos, bem como de novos sujeitos sociais, antes excluídos do processo de participação no jogo democrático.

Na mesma esteira, Bobbio[67] discorre sobre uma tendência de multiplicação de direitos, em decorrência especialmente dos seguintes fatores: o aumento da quantidade de bens considerados merecedores de tutela e a consideração do homem não mais como ente genérico e abstrato, mas na concretude das formas que ele pode assumir na sociedade, tais como: criança, velho, doente. Não se trata, contudo, da rotulação do indivíduo enquanto elemento de um grupo, mas do reconhecimento de sua individualidade como sujeito de direitos, com legitimidade para representar sua coletividade.

Pasold[68], por seu turno, vaticina que os novos direitos demandam instrumentos de efetivação, entendidos como o “complexo que abrange os atos e as ações, bem como a dinâmica processual/procedimental que têm por objetivo último o reconhecimento e a materialização de um Novo Direito”. Afirma o autor, ainda, que os novos direitos requerem uma concepção avançada de processo judicial para instrumentalizar a sua concretude, com a incidência das normas constitucionais, de modo a extrapolar a sistemática do processo civil convencional.

Sendo assim, retorna-se à questão: como justificar a indenizabilidade de um dano quando não há amparo legal a caracterizar a existência de um direito violado? A resposta pode começar com a seguinte reflexão: “Impõe-se, por certo, a derrocada do modelo estatal hierárquico-centralizador, uma reformulação das instituições públicas, mas sobretudo, uma releitura dos direitos, suas fontes, requisitos e exercícios [...] É preciso compreender o fenômeno jurídico não apenas como uma relação de poder hierárquico que divide competências e garantias em serviço do Estado, mas sim, como um verdadeiro instrumento de promoção de satisfações e desejos coletivos, a serviço de toda a coletividade”.[69]

É de se entender que toda ofensa do Estado à pessoa (sua dignidade, suas necessidades, seu patrimônio) constitui violação ao ordenamento constitucional, configurando-se a responsabilidade estatal mesmo sem que haja regra específica no direito posto. Considerando que a Constituição Brasileira protege a vida, a liberdade e a propriedade, em sentido lato, tendo como unidade axiológica a dignidade da pessoa humana,[70] o dano causado a um cidadão pela atividade estatal será, necessariamente, inconstitucional, não se podendo conceber que o particular deva suportar o prejuízo, a não ser que se negue o horizonte hermenêutico do Constituinte. 

Convém frisar que a avaliação quanto à proteção jurídica do interesse violado pela atuação do Poder Público nada tem a ver com a licitude ou ilicitude daquela atuação. Vê-se, portanto, que há relação de independência entre os requisitos para caracterizar o dano indenizável e a licitude do ato administrativo que causa prejuízo a terceiros.

Além de garantir a indenização ao cidadão prejudicado por atos do Poder Público, ainda que lícitos, é preciso atentar para o correto quantum indenizatório, que deve corresponder ao total do prejuízo experimentado, pelo princípio da restitutio in integrum. Nesse sentido, Caio Mário da Silva Pereira[71] enfatiza que “em qualquer hipótese, o montante da indenização não pode ser inferior ao prejuízo, em atenção ao princípio segundo o qual a reparação do dano há de ser integral”.

Por outro lado, não assiste razão ao argumento de que a indenização, nos casos de comportamento lícito da Administração Pública, representaria excessivo ônus aos cofres públicos, gerando enriquecimento sem causa para o beneficiário. Isso porque o montante do ressarcimento inspira-se no critério de evitar o dano (de damno vitando), não porém para proporcionar à vítima um lucro (de lucro capiendo), de modo que há de cobrir a totalidade do prejuízo, porém se limita a ele.

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Sobre o autor
Márcio Anderson Silveira Capistrano

Analista Processual do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP); Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC); Pós-graduado em Direito Administrativo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAPISTRANO, Márcio Anderson Silveira. Responsabilidade do Estado por atos lícitos: do modelo liberal ao sistema solidarista. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3530, 1 mar. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23838. Acesso em: 3 mai. 2024.

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